quinta-feira, 24 de outubro de 2019

O estágio dionisíaco do ser em O sul de lugar nenhum, de Marcelo Frota

*Por Alexandra Vieira de Almeida



Marcelo Frota, no seu livro de poemas, O sul de lugar nenhum (Penalux, 2019), revela-se na ótica de uma longa linhagem de poetas malditos, que fogem às regras da sociedade a partir da revolução e dos vícios que são sacralizados, reunindo o sagrado e o profano. Seus versos são dionisíacos, mostrando-nos os aspectos noturnos e abissais dos seres que se adensam na bebida, no fumo e no sexo que são vistos sem pudor. Como se ao sul, dentro de uma simbologia exótica, se referisse a este estágio de liberdade e convulsão corporal. Arthur Rimbaud, um dos poetas proscritos, disse: “O poeta se faz vidente por meio de um longo, imenso e refletido desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sentimento, de loucura; ele procura nele mesmo, ele esgota nele todos os venenos, para só guardar as quintessências”.

O livro é dividido em cinco partes, tendo um poema como preâmbulo com o mesmo título da obra aqui em questão. Esse poema se fecha em círculo com a última e quinta parte do livro, “Finale”, cujo único poema que a compõe retoma o título do livro com uma diferença que dá todo o sentido ao seu significado feérico e onírico: “O sonhar ao sul (de lugar nenhum)”. Esse não lugar é o espaço do dionisíaco na vida dos seres, que acendem a tocha, a clareira em meio à noite de uma floresta urbana e petrificada pelas vozes e pelos silêncios ao mesmo tempo. É constante essa imagem no seu livro de reunir, numa mesma metáfora paradoxal, o pleno e o vazio, o transbordante do dionisismo e a retenção dos líquidos de um rio caudaloso no esvaziamento da luz que cega os sentidos para o transporte a um estágio em um mundo de sombras e escuridão: “Adentro a noite nua de estrelas/Um pouco de uísque entorpece/O corpo fatigado pela guerra/Um amor quente e um campo/De batalhas/Do que mais/Precisa um homem”.

São constantes as referências às suas paixões descritas na orelha do livro: a literatura, a música e o cinema. Há uma parte no livro só dedicada aos grandes nomes da música internacional e nacional, como David Bowie e Renato Russo entre outros. A música e o silêncio, dois símbolos opostos se casam numa unidade perfeita, revelando-nos a própria ambiguidade do literário que é feito de vazio e preenchimento. A potencialidade das palavras cavalga as páginas brancas do nonsense e do caos, dando-lhes rédeas ao que é desnorteante: “Na louca hipnose rítmica...” A loucura, o amor, o desamor, a vida e a morte, grandes temas universais, ganham singularidade na pena afiada e cortante de Frota.

A beberagem poética, os ébrios de amor estão presentes nesse livro magistral de Frota, com uma sexualidade rompante que corta as veias do real com suas imagens inebriantes. Para o grande pensador Bachelard, na sua Psicanálise do fogo, o álcool “é a água de fogo, a água que arde”, reunindo os elementos da natureza. Como elementos tão contrários se encontram presentes na obra de Frota, ou seja, a luz e a escuridão, o sol e a lua, o dia e a noite? Existências múltiplas se casam, mostrando uma pluralidade simbólica em seu livro, que atinge um semantismo uno que se quebra, de forma experimental e revolucionária, nos cortes abruptos de seus versos que revelam o poder de um vulcão em constante ebulição: “Bebo algumas cervejas argentinas/Enquanto as estrelas me acompanham na noite”. Aqui, Frota reúne o intelecto à sensibilidade de um poeta maior, a razão e as sensações estão juntas num mesmo abraço lapidar. Temos em seus versos longos e extensos, paradoxalmente, uma linguagem ágil e vertiginosa a assombrar o lado frenético da experiência humana. Frota tem a difícil proeza de reunir o vício ao lirismo mais sutil da beleza, dando sutileza ao que nos pareceria repugnante. Do abjeto sentimos o perfume de uma flor delicada. Isso, só os grandes poetas conseguem, como um escritor do porte de Marcelo Frota.

Num dos poemas, apesar do desespero, da morte, da partida, das ideias suicidas e dos vícios, o poeta tem uma fortaleza que é a família. Marcelo Frota nada lindamente nas águas do caos, trazendo-nos o alento e a esperança no sangue, no nome e no sobrenome que os familiares carregam. O alicerce em meio ao aspecto noturno e inebriante é um conforto para um ser que busca ultrapassar as fronteiras da loucura dionisíaca. Sua linguagem árida e impactante é suavizada pela beleza de versos extremamente líricos que ultrapassam os escudos do peso e da sordidez. Vemos isso perfeitamente em “Aridez”: “A árida melodia suave”. O deserto e o oásis das palavras encantam os leitores ávidos que são pelas expectativas das horas que sobrevoam o que se tece pela voz das metáforas que conseguem unir num mesmo labirinto urbano um jogo de duplos, gêmeos que se parecem e diferenciam pela semiótica do silêncio. Temos em seu livro a força paradoxal do prazer e da dor, lição aprendida com Freud, a partir de Eros e Thánatos.

O aspecto noturno de sua obra é iluminado pelos raios de sol de seus versos belos e originais. Ele também fala da solidão, da ausência, um esvaziamento. É preciso esvaziar os copos cheios para que novos sentidos sejam submersos na aridez da vida, que se torna um mar de palavras significativas e necessárias, como são seus versos. Há uma harmonia notívaga com sua melancolia noturna em meio ao desconhecido e ignoto. Assim, o poeta se pergunta: o que virá depois? As referências a nomes de pessoas reais como na poesia, na música e no cinema, misturam o fato e a ficção. O real e o imaginário são outras dobras que se elevam nos seus versos.

Na parte destinada aos ídolos, há uma simbiose, um parelhamento perfeito entre o amado e o amante, o ídolo e o fã. Há um abraço entre a dissonância e a harmonia, revelando-nos o corte abrupto e matrimonial entre as imagens, ora as distanciando, ora as aproximando: Da poesia entre batidas eletrônicas e guitarras/Distorcidas”. No final do poema dedicado a David B., temos (I’m a Blackstar/You’re a Blackstar/I’m a Blackstar)”. Os parênteses delimitam os espaços da afinidade e da relação simbiótica entre o eu e o outro. É necessária a busca da outridade, da vizinhança com outros seres para que a vida faça sentido no sem sentido do mundo que nos cerca. Esse adoçamento da vida em sua delicadeza em meio ao deserto urbano cria música aos ouvidos do ser que traz o relevo e a segurança à solidão, onde existe e sobrevive a expansão e descentramento do eu: “Sou esse mistério amoroso/Uma rosa solitária no coração de Paris”.

No seu livro excepcional há a transposição do nervo denso do real para a escrita dos versos cortantes e ao mesmo tempo doces em sua magia linguística. O seu livro balança na corda do equilíbrio e desequilíbrio dos seres. No poema “Escuridão”, a claridade vai iluminando tudo, deixando ver a nudez de uma sociedade moralista: “Na luz,/são todos hipócritas”. Em “o corpo gelado ou a inocência da morte”, a morte do mundo vai sendo vivificada pela chama da poiesis. A nostalgia de seus versos nos encanta. O silêncio é a morte. A vida é a imensidão de vozes. A palavra e o vazio, a vida e a morte tremulam pelo viés e pelos vãos das palavras. Temos, assim, o silêncio e o ruído, a estaticidade e o movimento dos seres e das coisas, dançando num bailar de signos. Encontramos a nulidade dos sentidos e a busca pelo não sentido das coisas.

Outro elemento forte na sua poesia é a presença da natureza. Mas o poeta não representa o exotismo da natureza singular brasileira e sim esta como leitmotiv para a reflexão interior como no Romantismo alemão. Portanto, em Marcelo Frota temos um afogar-se na chama quente das palavras inaugurais que sintetizam a busca do homem pelo sorriso inebriante do cosmos, em que o elemento dionisíaco representa a procura pela expansão do eu e fragmentação do ser em meio ao caos que nos circunda no meio urbano. A sua urdidura poética se faz pelo excesso e alongamento das palavras que prolongam nosso despertar pelas coisas noturnas, mas que são iluminadas pelo sol de Apolo que traduz o sentido do ser em uma semiótica unitária que invade nossos sonhos de encontrar no sul o não lugar, o lugar mesmo de um outro, de uma face dupla que nos acolha e nos tire de uma solidão profundamente melancólica. Que seu livro conquiste cada vez mais leitores interessados que são por belas leituras que nos satisfazem pelo gosto das coisas inventivas e impactantes como essa obra por ora aqui analisada.


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*A resenhista: Alexandra Vieira de Almeida é poeta, contista, cronista, resenhista e ensaísta. Tem Doutorado em Literatura Comparada (UERJ). Atualmente é professora da Secretaria de Estado de Educação (RJ) e tutora de ensino superior a distância (UFF). Tem cinco livros de poesia, sendo o mais recente “A serenidade do zero” (Penalux, 2017). Tem poemas traduzidos para vários idiomas.



O autor: Marcelo Frota é professor, tradutor, crítico literário e cinematográfico. Nascido no Rio Grande do Sul em 1979, é um apaixonado por cinema, literatura e música e tem apreço especial pelo jazz e pelo blues, sem deixar de lado o rock clássico e a chanson francesa. Se considera um cinéfilo devoto e apaixonado pelo cinema brasileiro, europeu, americano e latino-americano. No seu coração literário os espaços são ocupados por autores que vão de Shakespeare a Saramago, sem deixar de lado os romances policiais baratos e a poesia marginal. Estreou na literatura com Compilação Poética das Margens.


Link para compra do livro:







quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Entrevista com Tiago Franco - Tão fútil e de tão mínima importância

*Por Thiago Scarlata  

Tiago Franco nasceu em Niterói, em 1974. Escritor e psicanalista, publicou dois livros de contos e o romance Onde os paranoicos fracassam. Seus contos já lhe renderam prêmios literários, entre eles o Off FLIP. Tão fútil e de tão mínima importância recebeu o 1o lugar no Prêmio Rio de Literatura 2016, na categoria “novo autor fluminense”.






CROQUI – Conte-nos sobre como se deu a construção de F., o protagonista do livro e sobre como ele surgiu?

TIAGO FRANCO: A ideia original era acompanhar o desenvolvimento moral e psicológico do protagonista desde a infância à fase adulta, passando pelas experiências e situações que moldaram o caráter de F., como um romance de formação. Para isso, me inspirei no processo analítico, onde alguém se deita num divã e conta para um analista a própria vida no intuito de que, assim fazendo, possa saber mais sobre si mesmo. Na verdade, mais do que ao analista, essa narrativa que se elabora progressivamente durante a análise serve mais ao paciente. Em “Tão fútil e de mínima importância”, ela vai servir ao personagem principal para que enfim ele se torne aquilo que se é, para que ele se aproprie de uma parte obscura de si mesmo que insistia em negar.
         Todavia, ao contrário dos romances de formação, que mal ou bem desde sua origem têm um caráter moralista e conservador, eu quis subverter  um pouco essa ordem, tentando que o fútil, o ilegítimo, o infame pudessem paradoxalmente se transformar em algo sublime. “Tão fútil” é o negativo de um romance de formação. Em outras palavras, desde a epígrafe do livro tomada a Montaigne, na qual Os ensaios são lugar de uma investigação privilegiada do Eu, se meu romance se inspira nessa mesma linhagem de desbravadores do sujeito fundada pelo ensaísta francês, não o faz pela via da cultura e da civilização, mas da profanação.
         Então, para dar conta de F. e de seus avatares, foi preciso encontrar um narrador impessoal, que se refere ao anti-herói por meio do pronome ele, o que aproxima a narrativa do relato de um caso clínico, mas ao mesmo tempo instala o foco narrativo na intimidade do personagem, para que não haja garantia ao leitor de uma distância estética segura. Não se trata de um mero recurso técnico, pois ao final da narrativa percebe-se com mais clareza a razão da escolha de tal procedimento.



CROQUI – No sua visão, porque F. é considerado um anti-herói?

TIAGO FRANCO: Eu poderia lhe responder que F. é um anti-herói porque lhe faltam os atributos morais característicos de um herói. Sim, isso é em parte verdade, mas eu não estaria sendo totalmente sincero. No começo da narrativa, F. é uma criança. E as crianças muito pequenas não têm consciência moral, não têm noção de certo ou errado, o que lhes guia é fundamentalmente a busca por prazer. Depois é que elas vão assimilar a noção de interdito, a figura de um terceiro (o pai ou o seu substituto) que se interpõe entre a criança e a mãe, representando o não, a lei. A passagem edipiana da natureza à cultura, como alguns psicanalistas diriam.
         Nessa situação, além de criança, F. é bastardo. Desde a origem, a ausência do pai permitirá que ele seja governado apenas pelo próprio desejo, subtraindo-se à inibição de forças morais que atuam sobre os indivíduos. Essa condição irá perpassar toda sua existência e irá marcar todos os seus relacionamentos. Na verdade, é como se F. guardasse dentro de si, apesar de adulto, a criança que ele foi, como se ela continuasse atuando livremente, com a mesma inocência e a perversidade que só as crianças têm.
         Se por um lado, essa parte obscura de sua personalidade irá torná-lo vil e abjeto aos olhos da sociedade, por outro, isso que renegamos em nós mesmos F. irá assimilar, fazendo disso algo essencialmente seu, digno de admiração e enlevo. 




CROQUI – Acreditamos que, apesar da forte carga psicanalítica presente no livro, você conseguiu mesclar e dosar muito bem com a dimensão ficcional, suavizando um possível peso hermético de uma linguagem mais técnica e ao mesmo tempo ampliando as perspectivas do horizonte literário, criando com isso, um estilo forte e bem demarcado. Fale um pouco sobre esse processo de configuração da sua linguagem.

TIAGO FRANCO: Como a narrativa se aproxima ao relato de um caso, era preciso que o vocabulário da psicanálise atravessasse a linguagem da ficção, dotando a narrativa de uma condição intermediária, potencial, que criasse uma área de ilusão para o leitor.
         Para ser honesto, quando comecei a escrever o livro, esse artifício não estava presente, não de maneira consciente. É possível refletir sobre o que fiz agora, com o livro já publicado e, ainda assim, somente até certo ponto, porque acredito que nós autores não somos as melhores pessoas para avaliarmos nosso trabalho. Assim como os psicanalistas, os escritores também têm pontos cegos, áreas que escapam ao nosso campo de visão,  zonas de sombra, que os críticos e leitores poderão iluminar melhor que nós.
         Em razão da economia da narrativa, havia a necessidade de um narrador que ao mesmo tempo se identificasse com o protagonista, e tivesse certa empatia por ele, mas que também o analisasse com um ponto de vista clínico, como se buscasse extrair alguma verdade secreta que o próprio F. desconhecesse.





CROQUI – O que a divisão do livro nos três capítulos contribuiu para a narrativa? Teve algo a ver com algum procedimento presente na psicanálise, algo mais ligado ao ritmo do livro, ou algum outro fator?

TIAGO FRANCO: Se fôssemos tratar das razões manifestas para tal escolha, eu diria que a divisão ternária do livro contribuiu para situar o personagem primeiro em relação a ele mesmo, depois em relação à mãe e ao pai (ou seus substitutos), os personagens mais importantes depois de F., e por último, em relação àquilo que ele virá a se tornar. A primeira parte irá tratar da matéria do livro, essencialmente daquilo que o compõe, do que lhe dá substância, digamos assim. A segunda parte irá esmiuçar as razões determinantes para a formação do caráter de F., como as vivências da infância o transformaram naquilo que ele é então. A terceira e última parte irá criar as condições para que o protagonista vá de encontro a si mesmo, com a parte sombria que o constitui e que até então ficava de fora, assimilando-a e tornando sua afinal.
         Agora, se fôssemos tratar das motivações latentes, eu diria que o três remete ao complexo de Édipo, que está subjacente ao longo de toda a trama, às vezes de maneira mais evidente, às vezes de maneira sub-reptícia. É como se F. encenasse novamente, com outros personagens e noutra época, esse mito fundador da civilização, que impõe penas atrozes a quem não respeita o interdito do incesto e comete o parricídio. Freud se apropriou dessa tragédia criada por Sófocles há mais de vinte séculos para postular que toda criança nutre sentimentos amorosos em relação à mãe e hostis em relação ao pai, embora hoje saibamos que existem variações desse esquema clássico. O autor de O mal estar na civilização foi o primeiro a perceber os efeitos psíquicos dessa triangulação entre a criança, a mãe e o pai.
         Em “Tão fútil”, achei que essa divisão em três tempos podia funcionar como suporte para a narrativa que, em outro plano, desenrolava-se paralelamente ao redor das três figuras (F., a mãe, o pai) ou de seus substitutos (o analista, o avô, os patrões), criando um jogo de espelhos, que que não multiplicasse as imagens, antes as deformassem.



CROQUI – Um leitor desavisado pode crer que seu livro é meramente sobre o fetichismo (o que já daria muito pano pra manga, de modo positivo). Nós entendemos que a sua obra ultrapassa isto. O fetichismo está ali também como um instrumento para se chegar a embates morais e metafísicos, por outro lado, este mesmo elemento exibe força o suficiente na narrativa e se ramifica em diversos outros pontos através do narrador. Comente sobre essa relação.

TIAGO FRANCO: Se eu chegasse a escrever um romance sobre o fetichismo, me daria por plenamente satisfeito, porque teria a ilusão da companhia de Sade, Bataille e Sacher-Masoch. Todavia, ainda que o fetichismo compareça quase como um personagem à parte, o que me interessava mais do que o aspecto erótico  propriamente eram as relações que estabelece com o culto de objetos. Não é menos verdade que a admiração irrestrita, incondicional por uma coisa ou pessoa e, em última instância, a parcialidade, isto é, o ato de tomar partido a favor ou contra alguém, sem que importe a justiça ou a verdade, como o narrador faz do princípio ao fim, também eram aspectos que me interessavam relacionados ao tema, que procurei incorporar ao livro.



CROQUI – Quais são suas influências literárias mais importantes e o que está lendo atualmente?

TIAGO FRANCO: Eu não saberia dizer quais são minhas influências literárias, acho que nunca sabemos na verdade. Mesmo quando os escritores se põe a desfiar suas influências, eles mais erram do que acertam, porque os autores que mais os influenciam são os que parecem não ter tanta importância assim em sua formação.
         Nessa questão de influência, acho que quem melhor definiu esse assunto foi Borges, naquele assombroso ensaio sobre Kafka e seus precursores, que em muito se assemelha a um de seus contos, onde ele vai revelar que um escritor cria seus precursores, pelas múltiplas relações e afinidades que estabelece com os outros escritores e pelas modificações em nossa concepção do passado e na avaliação do futuro.
         No momento, estou lendo O caso Mersault, uma investigação que se propõe a dar uma outra versão de O estrangeiro, de Albert Camus. Um homem chamado Haroun recebe em Orã, na Argélia, um universitário de Paris interessado em conhecer a história subterrânea da obra-prima, cuja abertura já se tornou clássica: “Hoje, minha mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem”.



CROQUI – Está trabalhando em um novo livro? Caso sim, o que já nos pode adiantar?

TIAGO FRANCO: Já escrevi alguns começos em falso, agora tenho um prólogo e uma abertura, mas não sei aonde isso vai dar. Pode ser que não leve a nada, ainda é cedo para dizer, ou talvez seja o início de alguma coisa, vamos ver.
         Aprendi que a história que vou escrever não está ali desde o princípio ou, melhor, está, mas não exatamente da maneira como imaginava. No entanto, aos poucos, as coisas vão se revelando para mim, vou descobrindo o que fazer, mais do que propriamente ter conhecimento do que escrever de antemão. Nem sempre isso é fácil, ao contrário, às vezes é muito inquietante.
         Nesse caso, seria bom seguir o exemplo de Karen Blixen, autora de A festa de Babette: “Escrevo um pouco todos os dias, sem expectativas, sem desespero”, mas se não me falta disciplina, me sobram angústias.



CROQUI – O que é literatura para você?

TIAGO FRANCO: Eu diria, como Voltaire, que é aquilo que “ninguém encontrou nem jamais vai encontrar”.


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*Thiago Scarlata nasceu no Rio de Janeiro em 1989. É autor de Quando não olhamos o relógio, ele faz o que quer com o tempo (Multifoco, 2017), salobre (Urutau, 2018) e mantém o site de crítica literária Croqui. Em 2016 foi finalista do Prêmio SESC de Literatura e em 2017 venceu o Concurso MOTUS – Movimento Literário Digital (UNIPAMPA). Participou de antologias e teve poemas publicados e traduzidos em diversas revistas, jornais e sites literários.





sábado, 19 de janeiro de 2019

O Sal do Leviatã - Alexandre Guarnieri


*Por Waldemar José Solha 


“::: e agora, Vasco, Pero Vaz de Caminha? a quantas anda nosso Caminho das Índias?”

Essa é a pergunta que se lê neste livro e que também me faço, ao terminar de lê-lo.

O SAL DO LEVIATÃ é muito estranho. Senti-me, diante deste novo lançamento de Guarnieri, como alguém do círculo mais próximo de Picasso ao ser um dos primeiros a ver, em 1906, o LesDemoiselles d´Avignon, no qual se saca de imediato que, em meio à criação da tela, sem a mais mínima preocupação com a famosa e sempre exigida unidade, o espanhol mudara duas vezes de estilo. A primeira, ao introduzir naquele espaço, algo como uma página do Tratado Elementar sobre a Geometria das Quatro Dimensões, de EspritJouffret – em cima das visões de Poincaré que tinham virado a cabeça de Einstein. A segunda, ao transformar as caras das moças nuas d´Avignon em máscaras africanas, atônito com o que acabara de ver numa exposição delas, em Paris.

Assim, Guarnieri faz a abertura de seu livro com um estilo que me lembra muito a pintura de Ivan Albright e sua temática macabra - cores mórbidas, meticuloso estilo tipo realismo fantástico, em que cada detalhe tem enorme destaque, como quem quer que se veja tudo ao mesmo tempo, do macro ao micro e, de um fôlego, num curto período, vemos, com poesia de alta voltagem, “um engenho de espelhos”, “câmaras do horizonte, iluminadas”, “minério aberto, puro, casto: flor de cálcio”, “lágrimas na zona fronteiriça entre os alumínios do azul e a amarelidão molhada da areia fina”, “navalhas da erosão”, etc. Allright: Albright.

Mas eis que na página 34 “o clima declina em crise física (toda altura é esta estranha úlcera convulsa como se fosse ininterrupta a pintura de William Turner)”. Pois bem, Turner. E aí se dá que na página seguinte, damos com outro Guarnieri. Que se pergunta:

“::: e agora, Vasco, Pero Vaz de Caminha? a quantas anda nosso Caminho das Índias?”

É a questão que também me faço, ante esse novo Guarnieri, que tem a força daquele sermão de Orson Welles no Moby Dick de John Huston.


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O Sal do Leviatã será lançado este ano e sairá pela Editora Penalux.






Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta, historiador da arte (UERJ) e mestre em tecnologia da imagem (ECO-UFRJ). É um dos editores da revista eletrônica Mallarmargens. Lançou Casa das Máquinas (2011), Corpo de Festim (2014), livro ganhador do 57o Jabuti (categoria poesia) e Gravidade Zero (2016).









*Waldemar José Solha (1941) é escritor, ator e artista plástico.

sábado, 12 de janeiro de 2019

olhos que fecham, noite que abre

Foto: Maria Olívia Santos
*Por Thiago Scarlata


E
m noite que abre (volta d’ mar, 2016), o poeta Jorge Vicente traz ao leitor as entrelinhas do consenso que se tem do que seria a noite. Cada poema funciona como um filtro distinto sobre nossos rituais, nossos microcosmos sociais e mentais, mostra como somos tão diferentes e ao mesmo tempo tão repetidos, tão animais e iguais.

Jorge sugere nesta forte obra que as noites (e coisas) de Portugal – sua pátria – podem também ser as nossas, propõe que o paganismo ou a umbanda, apesar de diferentes seja em nomeclaturas, moral, contexto histórico e origens, na verdade fazem parte do sonho do homem e da mulher universal, deste espírito de significar os dias através das paixões advindas da imaginação artística (que para o autor tem valor de ciência e assim deve ser para todos, se bem interpretadas) e da contemplação noturna, esse eterno “olhar para o céu estrelado” que nunca perdeu seu fascínio, mesmo após o desencantamento trazido pelas certezas da astronomia moderna. Para Jorge, nenhum livro de ciência é capaz de desnutrir os olhos mágicos de uma criança ao verem o espaço, pois ele mesmo, afinal, é um poeta, logo, um homem que não se deixou envenenar completamente pelo mecanismo pragmático do mundo adulto. Seus olhos não enxergam só em cinza, como os da maioria das pessoas maduras.

“nada existe mais glorioso
que derramar sangue em
estado de graça:

assumirmos que somos aquilo
que deus nos fez. seres de
terra e não de fogo.
com mãos que crescem
e que sentem prazer”

Neste trecho do poema que abre o livro (os poemas não possuem títulos e o livro não tem capítulos, o que dá uma ideia de continuidade e complementação gradual e certeira no fluxo entre os textos e no ritmo da obra), notamos que através de uma concisão poética original e madura, Jorge Vicente imediatamente desloca a subjetividade frágil dos jovens (ou não) pretensiosos - típica de quem faz da arte uma diversão vazia e/ou objeto de experimentalismos de gaveta - e a finca no chão. É a partir dos joelhos ralados, pernas cansadas de correrem e pés calejados que, para o poeta, se inicia os voos verdadeiramente altos. E assim são os poemas de “noite que abre”. Poemas de baixo para cima e não o contrário.

“ontem matei um homem. nada mais do que isso.
nenhuma cintilação dos ossos. nenhuma ânsia em
experimentar o que quer que fosse. apenas o
desejo íntimo de descriar através do sangue.”

e continua:

“nada, mas mesmo nada é deixado ao acaso. a
sombra é o reflexo do astro. e o astro é o reflexo
da faca deixada no lugar da humanidade”

No poema acima conseguimos ter ciência do tipo de caminho que o poeta propõe: do seio do banal, desmoralizando estruturas sociais criadas, até chegar a algo mais macro, ampliando subjetividades e por fim as colocando ao sol. Jorge trabalha assim: um malabarismo lúdico entre a fantasia e o concreto.

Para finalizar, escolhi o último poema do livro que diz: “no interior de cada um dos / órgãos do corpo anoitece / o sexo e a terrível vertigem / das casas. / o que morre deixa-se ficas nos / olhos que não fecham.” noite que abre é esse convite a abrirmos mais do que podem os olhos acinzentados da nossa hipnotizante rotina. É um despertar noturno: chamamento à contemplação do que se perde nas madrugadas ocultas.




Jorge Vicente nasceu em 1974, em Lisboa, e desde cedo se interessou por poesia. Com Mestrado em Ciências Documentais, tem poemas publicados em diversas antologias literárias e revistas, participando, igualmente, nas listas de discussão Encontro de Escritas, Amante das Leituras e CantOrfeu. Faz parte da direcção editorial da revista online Incomunidade. O seu primeiro livro de poesia, Ascensão do Fogo, foi publicado em 2008, sendo seguido por Hierofania dos Dedos, editado sob a chancela da Temas Originais em 2009, e pelo livro Teoria do Movimento, editado em 2014 em edição de autor. noite que abre,  publicado em 2016, é o seu quarto livro de poemas.

Contacto: jorgevicente.seacarrier@gmail.com




*Thiago Scarlata nasceu no Rio de Janeiro em 1989. É autor de Quando não olhamos o relógio, ele faz o que quer com o tempo (Multifoco, 2017), salobre (Urutau, 2018) e mantém o site de crítica literária Croqui. Em 2016 foi finalista do Prêmio SESC de Literatura e em 2017 venceu o Concurso MOTUS – Movimento Literário Digital (UNIPAMPA). Participou de antologias e teve poemas publicados e traduzidos em diversas revistas, jornais e sites literários.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Tua voz dos outros - Marcelo Labes

Team of Fishermen pulling the fishing nets out from the sea in Kovalam -  @Lorenz Berna



*Por Marcelo Labes


Eles podem tentar nos ensinar do que se trata a poesia, mas imagino que nunca se alcance um veredito, um final – feliz ou infeliz – para esta pergunta. Do que se trata? Acho que os poetas nos perguntam isso muitas vezes, quando nos apresentamos e somos apresentados como, deve surgir a questão: sou poema , mas do que se trata isso?

Estes poemas de Thiago Scarlata não nasceram escritos, tenho certeza. Não me detenho em questões particulares para tal afirmação, se são concisos, se têm rimas internas, se tiveram sua métrica contada nos dedos das mãos. Não. Os poemas de salobre vêm de outra fonte, que não as palavras. Sorte a nossa, penso, ter calhado a Thiago a poesia. Sorte a nossa.

Se são tempos duros, precisa a poesia ser endurecida também? Por que não podemos manter aquele conforto antigo, interior, de falar a partir dos poucos graus de alcance na órbita de nossos umbigos? Estes poemas surgiram antes, muito antes das palavras: são filhos de um olhar atento e preocupado, são fruto de uma necessidade de gritar denúncias. São poemas destes tempos.

Das paisagens injustas dum sertão que espera a chuva que não vem, da fome que sabe que o tempo é o antagonista, da baleia que espera se irmanar e então percebe que se trata de uma embarcação de caça. Não há maneira de escapar a este olhar, de se querer ignorado por ele, simplesmente porque não adianta: os olhos do poeta têm fome e a paisagem que eles têm é esta.


Fresh sea fish on a fishing net. On a black chalkboard. @srapulsar38

salobre é atravessado por medições de tempo (uma preocupação nada recente de seu autor) e por tentativas de calcular a humanidade de pessoas e eventos comuns. O resultado dessas operações é infiel às leis da lógica. Este é um livro de poemas, afinal. Mas há algo que não se perde, que perdura, que endurece à maneira das pedras de sal. Este é um livro de poemas ou um grito contínuo.



E não porque estes sejam tempos ruins. E não porque agora a sociedade seja injusta, as pessoas sofram em trabalhos ingratos, os bichos nos abracem mais dignamente do que os amigos. Thiago vai buscar no que perdura, no que havia desde antes, desde o sal até os moluscos, para mostrar com sua poesia endurecida que não, não estamos certos, estivemos sempre errados.

Assim me sinto ao ler sobre a fuga da seca, sobre o cheiro da boca do peixe, sobre levar a casa para o trabalho dentro da marmita. Assim me sinto ao ler sobre o motorista de ônibus, sobre o coveiro que se isola do lado de fora, sobre o gari, até que no poema ensaio, deparo-me com a imagem central desta minha leitura muito pessoal, quando o poeta diz “dormimos pela insônia / dos outros”.

Se não sabemos responder àquela pergunta antiga sobre do que se trata a poesia, ouso dizer que encontro a resposta acima nestes poemas de Thiago. Que não são poemas de sal, deixemos claro, pois demonstram resistir – e hão de resistir, meu caro, pois somos mais fortes do que eles – às chuvas e toda intempérie mais que houver.

Ouso dizer que descubro aqui o que já devemos todos saber, mas precisa ser enunciado: poesia é escrever pelo silêncio dos outros. Já que me permito a paráfrase, ressalto que uma poesia para fora é mais do que necessária, pois a realidade está aí, à espera de nada, nem mesmo do poeta. Thiago vem, enxerga melhor do que ninguém esta realidade, e a atravessa.

E a exalta.



Capa/foto: @WladmirVaz


*Marcelo Labes é poeta nascido em 1984 em Blumenau-SC. Autor de Falações (EdiFurb, 2008), Porque sim não é resposta (Antítese/Hemisfério Sul2015), O filho da empregada (Antítese/Hemisfério Sul 2016), Trapaça (Oito e Meio, 2016), Enclave (Patuá, 2018) e O poeta periférico (Independente, 2018). Participa da mostra Poesia Agora (edição carioca). Publica no blog http://mmlabes.blogspot.com e mantém a revista O poema do poeta (http://opoemadopoeta.wordpress.com), onde publica originais manuscritos de autores vivos e mortos, do Brasil e do exterior.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

tutorial para caçar baleias - thiago scarlata

The B.C. Cetacean Sightings Network is partially funded by the Government of Canada




*Poema do livro salobre (Urutau, 2018).





para caçar uma baleia
o homem deve antes
descarnar completamente o amor
deixar em casa
o terço e o que ainda
lhe resta de cor nos olhos
na imagem fria do filho

um bom caçador de baleias
sabe onde elas dobram
e sobretudo
o que elas gritam
perseguem-nas até o fim
de sua compaixão

apesar de tudo
a baleia sempre crê
no casco cinza
não julga o aço
acredita em sua sombra
de baleia perdida

até que vem o atordoamento

é exatamente aí
que a baleia perde
a sua fé

entende que aquilo ali
não é uma baleia
e que aquele imenso
avatar à sua imagem
e semelhança
possui um motor
no lugar do coração

esse é o ponto-chave
para o acionamento dos arpões:
principal e secundários

a trinta metros do animal
já não há espaço
para fugas
ou interpretações
ele salta, pega ar
e você aperta o botão

agora a embarcação
é contrapeso
(após o arpão
ultrapassar as primeiras camadas
e abrir-se
como um guarda-chuva
nos interstícios da carne viva)

o mamífero, então,
já sem forças,
vira uma extensão
da própria navegação
por isso cautela
reduzir os nós
(manobras bruscas podem rasgar a pele
e condenar a mercadoria às profundezas do sal)

a essa altura
o navio-fábrica
já tem de estar circulando
nos arredores do arpoador
para que quando
sua enorme boca abrir,
a vitima seja içada
por cabos inoxidáveis,
vendo seu fio de dignidade
escorrido numa esteira

para nós, caçadores,
essa é a parte fácil

pois nesse instante,
carniceiros profissionais
assumem a responsabilidade
de enfrentar o olhar
dilacerado da baleia

vem o esquartejamento:
a serra
do osso
a ceifa
de toda cartilagem
e o ultrapocessamento

seu óleo e carne
são reservados,
seu sangue
escoado direto no mar
deixando o oceano, a cada abate,
um pouco menos azul
e mais escarlate






           *







*Lançamento do livro: 19/10/2018, às 19:00 na Rua do Resende / Lapa.


 


Thiago Scarlata nasceu no Rio de Janeiro em 1989. É autor de Quando não olhamos o relógio, ele faz o que quer com o tempo (Multifoco, 2017), Salobre (Urutau,2018) e mantém o site de crítica literária Croqui. Em 2016 foi finalista do Prêmio SESC de Literatura com o poema “Rio Velho” (presente neste livro) e em 2017 venceu o Concurso MOTUS – Movimento Literário Digital (UNIPAMPA). Participou de antologias e teve poemas publicados e traduzidos em diversas revistas, jornais e sites literários.