quinta-feira, 7 de setembro de 2017

O questionamento libertário em Quando não olhamos o relógio, ele faz o que quer com o tempo

*Por Alexandra Vieira de Almeida

    Encontramos neste livro excepcional de Thiago Scarlata, Quando não olhamos o relógio, ele faz o que quer com o tempo (Multifoco, 2017),o descentramento, o deslocamento do que é usual e medido - o que é alcançado pela via do cômico, do humor puro e do humor negro. O riso fere os ponteiros do tempo. A sua obra é um profundo insight bem elaborado que provoca a quebra das barreiras conceituais. O conceito se afiniza com o tempo. Não é pura e simplesmente uma crítica ao senso comum, mas a algo bem mais arquitetado, o nível dos nossos conceitos fechados dentro de um labirinto de enganos, cuja saída revela uma resposta pronta e acabada e não inusitada, como Thiago Scarlata pensa e prioriza. Há um deslocamento dos conhecimentos previstos, conhecimentos de vários campos do saber, da história, da ciência, da geografia, da matemática etc. Pessoa já radicalizara o original do não-saber a partir de sua metafísica que não pensava em nada. Scarlata propõe: “que não pensar em nada/ é pensar em tudo ao mesmo tempo?”. Não agregando um saber específico, esse saber se traduz como sabedoria que questiona e não apenas uma crítica social e moral que cria outra espécie de sistema de códigos aceitáveis. 

         Nos 37 poemas que compõem esse livro rico e original, vemos no poema que abre o livro, “Colômbia”, a quebra de um paradigma da época. Apesar de já ser conhecida a teoria da rotundidade da Terra, Colombo dá força ao movimento de esfericidade da Terra, desconstruindo o que era mais aclamado e aprovado. Acreditava na possibilidade de o mundo ser esférico: “o mundo estava chato/Então Colombo arredondou”. Isso se deu ao fato das rotas, pois chegando ao mesmo ponto quando contornasse de leste a leste ou de oeste a oeste, o ser humano pode comprovar essa teoria, que se tornou prática. Para Colombo, domar o mundo não era apenas uma conquista geográfica. Ele queria dobrá-lo à sua cosmovisão de mundo que era aberta em um círculo. Maior que a conquista física, era a conquista das ideias, a libertação das amarras, do conhecimento fechado; apesar de se ter o lado físico também, uma “Ciência” se inaugurou: “o mundo era pequeno/não bastava ao homem seus castelos,/um reino ou um império/e os tantos seres que domou”. O ir além, ultrapassar as fronteiras do conhecido, dos conceitos é a tônica máxima desse livro, que percorrerá os outros 36 poemas da obra de Scarlata. Seus poemas quebram com os padrões vigentes, com o senso comum e vai até muito além dos conceitos ao fazer um questionamento, trabalhar com as questões que se expandem em aberto sem demonstrar uma crítica minimamente social ou moralista. A problematização enriquece a bela obra de Thiago: “a noite prossegue/uma noite de outra ordem/a que nunca vemos”.

         Em “Pescaria”, percebemos novamente esse olhar questionador que liberta, provoca uma ruptura com o que a sociedade pensa: Sem julgamento moral, culpa, o poeta diz: “Sem culpa, joga a rede o pescador/Sem culpa cai na rede o peixe”. As coisas ocorrem naturalmente na sua inversão de valores, o que é atingido pelo alto nível irônico e complexificante do poema. Há um paralelismo homem-peixe/peixe-homem, em que ambos se intercambiam, trocam de lugares. Há um questionamento a partir disso e não apenas um julgamento simplesmente moral. Vejamos: “após um dia pescando ao sol/o pescador tá até queimado/já o peixe ou tá frito/ou cozido, ou assado”. Aqui, o questionamento do que se faz socialmente é provocado pelo riso. O grande teórico e filósofo francês do cômico foi Henri Bergson (1859-1941). Ele produziu um livro fantástico sobre o assunto. Em O riso: ensaio sobre a significação da comicidade, ele diz: “Ao contrário, na emoção que nos deixa indiferentes e que se tornará cômica, há uma rigidez que a impede de entrar em relação com o restante da alma na qual ela assenta”. O cômico, provocando esse “enrijecimento para a vida social”, faz com que os defeitos e os vícios não sejam levados a sério, provocando o humor. É dessa forma que Scarlata alcança sua magnitude no seu livro.

Poema da 4ª capa do livro
            Mikhail Bakthin tem um livro que revela a força da cultura popular a partir da visão do mundo carnavalesco, que ele encontra no escritor francês Rabelais. No livro monumental A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, ele afirma: “O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época”. Percebemos em Scarlata a carnavalização da realidade, ao quebrar com os níveis identitários, amalgamando tudo num único lampejo de vida, ao afirmar, no poema “Península”: “me chamam homem/mas todo homem/é também mulher,/uma criança e um velho”. Essa quebra de uma essência do ser num único elemento perfaz a imagem do homem múltiplo e carnavalesco do poeta Scarlata que retoma a figura de nosso eterno Mário de Andrade que configurou a partir da personagem Macunaíma esse ser plural e fantasiado de camadas. Num de seus poemas, Mário de Andrade diz: “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta,/As sensações renascem de si mesmas sem repouso,/Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh! caiçaras!/Se um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!”.

         Num dos poemas, o poeta por ora aqui estudado nos revela: “a matemática de meu avô,/vejam só,/até ela me falta/suas certezas cirúrgicas”. Não é num mundo de certezas e redundâncias, que Scarlata vai se pautar. Ele vai buscar o tropel dos cavalos selvagens em sua viagem natural e desvairada. Rompendo a linguagem da decadência, dos escombros: “cumprindo toda a decadência/que escorre no mundo”. Ele busca o momento vivo da linguagem poética, que é tecida por imagens originais, não nomeadas pelo universo insosso da realidade sem a sua poeticidade: “a graxa do sol lambe a casa”. O que não é nomeado, identificado é o sol de seu lirismo, não carcomido pelo tempo, mas que ultrapassa todos os ponteiros do mundo, o relógio mortífero das horas: “e aquela coisa que não sabemos o nome”. Também temos a explosão da melancolia em meio ao riso, alternando a vida com seu paradoxo: “desde que deixei meu quarto/minha mãe vela ali/ a ausência de um menino”. É deste signo feito de ausências que se constrói a linguagem poética da obra em questão. O signo marca uma presença e uma ausência. Thiago coloca em pauta a força das ausências, dos interditos, de lembranças feitas de nuvens aéreas.

Foto de divulgação. @2017

         Em “Turista”, confrontamo-nos com o olhar estrangeiro, que é o lado cômico de nossa natureza, um lado repleto de grandiosidade e reflexão: “o olhar turista/é um olhar/faminto//de cômica violência//retina atônita//lambendo tudo/que o guia/aponta//rindo//pelos//olhos//levam na mala//outra cidade/que não a nossa.” Se em Thiago Scarlata há uma supervalorização do questionamento do cômico e seu valor ricamente social, nos primórdios da Comédia encontramos a concepção aristotélica, em sua Poética, de desvalorização desse gênero literário. Só na modernidade é que o cômico ganha com muita força sua dimensão grandiosa, principalmente, a partir das concepções de Bersgon, com sua teoria do riso, e Freud, com sua ideia dos chistes. Em Aristóteles, na sua Poética, temos: “A comédia, como dissemos, é imitação de pessoas inferiores; não, porém, com relação a todo vício, mas sim por ser o cômico uma espécie de feio. A comicidade, com efeito, é um defeito e uma feiura sem dor nem destruição; um exemplo óbvio é a máscara cômica, feia e contorcida, mas sem expressão de dor”. Em Scarlata, a comicidade é rica em mostrar sua face outra, estrangeira, como um turista que está aprendendo a amar a outra cidade, trazendo sua diferença, seu gosto outro, que requer um olhar perspicaz. O violento, o agressivo eo sério convivem com o lado cômico, revelando sua multiplicidade em não ser apenas um riso fácil, mas estratégico, bem urdido na sua tessitura poética e lírica.

         No poema “Desencanto”, temos a imagem da criança como crítica aos modelos, com a revelação do inusitado, do novo: “só criança entende mágico//a recusa do método//o bom do espanto”. O mundo adulto é visto como redução do mundo mágico e imaginário, com a rigidez dos conceitos fechados, sua cristalização:“enquanto a nós, desgraçados/muito adultos,/não basta a alegria/plena, crua//a nós o truque/é má fé/que hoje vende-se/na rua”. Esta desconfiança dos adultos constrói tudo num sistema organizado sem ter o mundo mágico e curioso do infantil. Esse é o que está na origem, nos primórdios, fonte de rio e riso.


Foto da 4ª capa do livro, "Casa de Passarinho", do próprio autor. Petrópolis/RJ, 2015.

         Para finalizar nosso estudo, podemos perceber também, na obra de Scarlata, doses de humor negro. Como exemplo, temos a seguinte passagem: “após sua leitura este poema/deve ser cremado e distribuído/ no mais próximo mato/[mini morte de métrica poesia]/fermentado, assim, de alguma maneira o devir do parto”. No riquíssimo dicionário online, organizado por Carlos Ceia, “E-Dicionário de Termos Literários”, temos uma concepção de humor negro: “Manifestação de humor desconcertante e com caráter libertário em que elementos macabros, absurdos ou violentos se associam ao cômico. O conceito de humor negro foi introduzido pelo surrealista André Breton...”. Nesse poema de Thiago, encontramos a subversão do cômico a partir de seu elemento oposto, em que, contra toda sentimentalidade e conformismo, encontramos um texto que explode em significados vastos e contraditórios, o que é triste, macabro e sombrio renasce na força potencial do cômico, no seu devir de vida, o parto. Morte e vida se mesclam, formando o paradoxo inaugural da poesia. Portanto, nesse livro original, que quebra com os parâmetros socialmente aceitos, temos um poeta-mestre, que faz de sua poesia o lugar do não-lugar, que ultrapassa o tempo, a memória, com o degredo de todas as concepções fechadas. E é a partir do questionamento do humor, que o poeta aqui em questão revela sua face mais sólida, não deixando a liquidez das águas afundar o que ele tem de mais visceral, que é seu canto poético traduzido em filosofia e reflexão. Um poeta que vai deixar marcas na nossa poesia nacional.




Thiago Scarlata é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas GuetoEscamandroMallarmagensMonolitoJanelas em RotaçãoPoesia Brasileira Hoje, Poesia AvulsaMOTUS, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 e JAYME ROLDON 2011, e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).



*Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.

Contato: alealmeida76@gmail.com

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

O garimpeiro das formas mágicas, em Do mundo, suas delicadezas

*Por Alexandra Vieira de Almeida

O livro Do mundo, suas delicadezas, de Erre Amaral (Penalux, 2017), é um verdadeiro aprendizado épico-epistolar de formação de uma mulher. A voz feminina, como narradora, conduz um leitor específico, um homem, seu amado mágico. A narradora se dirige a este leitor impossível e não mais existente, criando-se um leitor imaginário, como se uma carta bem elaborada fosse escrita, se dirigindo a ele num tom épico em que vai contar suas vitórias e agruras de uma heroína que é, paradoxalmente, uma anti-heroína. As figuras masculinas conhecidas da tradição tanto bíblica quanto mitológica, comparecem, sendo subvertidas e transformadas pela ótica feminina. O olhar feminino é o tom maior que se dá nesta narrativa de Erre Amaral. Por exemplo, quando a narradora-personagem Pretinha fala de sua prima que se prostitui, sai de casa e volta como filha pródiga ao lar, como não nos lembrarmos do “Filho Pródigo”, do relato da Bíblia? Ou quando, no canto das sereias, relembrando Ulisses, em sua odisseia, a narradora e personagem principal deste livro magnífico, apelidada de “a minha preta do meu amor”, pelo seu amado mágico, escuta os sons externos com seus “ouvidos cegados” que “Ouviram o que quiseram ver,”.

A inversão de valores bíblico-mitológicos só reforça este diálogo intertextual, revelando a originalidade da força poética de uma voz feminina como narradora e personagem principal, que pelo seu lirismo encantador suaviza a miséria, a crueldade e maldade humanas. Temos neste livro uma voz que tanto eufemiza como hiperboliza a realidade, dando um tom mimoso, carinhoso, ou, como o próprio título define, delicado (com diminutivos, dando numa linguagem familiar, íntima), ao real, mas que aponta para uma ironia sagaz, como na imagem da serpente que se enrosca em coisas doces e belas, a questão do mal em sua narrativa nos mostra o lado demoníaco e subterrâneo em toda a humanidade. Do lado angelical da menina-moça Pretinha, temos sua transformação que toma corpo pelo viés erótico, mas também cruel, pelo seu desejo de vingança ao violador Reinaldo de sua inocência erótico-amorosa pelo mágico. Temos uma descrição belíssima e poética da cena de amor entre Pretinha e seu amado mágico, em que o implícito prepondera sem nos ferir com uma pornografia chula, como estamos acostumados a ver na contemporaneidade, mas com um erotismo de alto nível que só os grandes poetas conhecem.

Temos para cada parte do livro escrito (duas) todas as letras minúsculas e, no final, uma vírgula, e não ponto final, dando ideia de continuidade, de que a narrativa vai ter prosseguimento e deve continuar. Encontramos, no entanto, durante todo o corpo da narrativa (com o título dos capítulos-poemas das duas partes) os versos escritos com inicial maiúscula e também terminando sempre com vírgula, isto nos dá ideia de um tom maior, a narradora quer dar grandiosidade ao que se quer narrar no método poético através da característica épica da narrativa, como se o título, também, que termina com vírgula e os capítulos também fizessem parte do poema, parte do constructo poético. Neste livro, convivem gêneros variados, em que o autor subverte a ótica clássica de gêneros estanques. Temos um romance em forma de versos, mas que não deixa de ter seu tom epistolar. Se nos lembrarmos da origem do gênero épico ou narrativo, nos deparamos com as grandes epopeias que eram escritas em formas de versos. A forma mágica de Erre Amaral nos conduz a partir de sua originalidade que produz um verdadeiro monumento literário, mesclando formas e estilos diversos, dando grandiosidade à sua narrativa, As vírgulas constantes criam um rico paradoxo. Além de revelarem uma pausa, um respiro, a uma história de fôlego, pujante; dão a ideia de que as histórias devem ter um motor contínuo, não demonstram algo acabado, suspenso, parado, mas da continuidade de todas as histórias. Uma progressão milimetricamente pensada e elaborada com grandeza por Erre Amaral.

Essa ideia de movimento, progressão através das formas se adequa belamente ao conteúdo, pois as borboletas, sempre presentes no livro nos levam para o mundo do imaginário, que não tem a placidez da estátua, mas a flexibilidade de uma borboleta, como sua própria narrativa, como nos conduz ao belo e flutuante movimento das borboletas, suas metáforas. A imagem para o símbolo da narradora, ágil, arguta, vivaz, flutuante, transformadora e para a própria narrativa, que se mesclam (narradora e narrativa) é a da borboleta. No Dicionário de símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: “Graça e ligeireza, a borboleta é, no Japão, um emblema da mulher; (...) Ligeireza sutil: as borboletas são espíritos viajantes; sua presença anuncia uma visita ou a morte de uma pessoa próxima.” Por outro lado, o avesso das belas borboletas coloridas e benfazejas que percorrem o externo e o interno, o “ventre”, de Pretinha, é a azougada mariposa que aparece para dar tragicidade ao tom épico. O drama também convive nesta mistura de gêneros, que vai desde o épico, o poético, o epistolar e o dramático, numa riqueza de formas excepcional produzida por Erre Amaral, que só pode ser reinventada por quem conhece e tem domínio da técnica escrita como este escritor de Porto Velho (RO).

As diversas formas colhidas pelo autor, na sua conciliação de opostos, mostra a força do olhar, dos olhos. Esta é uma imagem recorrente na narrativa. A imagem poética concilia opostos, como vista pelo grande crítico e poeta Octávio Paz, que dizia que o pesado pode ser o ligeiro. A conciliação da delicadeza com a crueldade neste livro fantástico recria a imagem poética em toda sua força, conduzindo-nos a um olhar inaugural da narradora-personagem Pretinha. No texto “Janela da alma, espelho do mundo”,  Marilena Chauí diz: “Porque cremos que a visão se faz em nós pelo fora e, simultaneamente, se faz de nós para fora, olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si”. Neste sentido, Pretinha carrega um mundo dentro de si que precisa ser projetado para fora, pelo seu olho mágico e encantador, revelando o peso e a leveza da vida. A força dos afetos em Pretinha é imensurável e revela a delicadeza do poético que pode suavizar o mal que adentra os poros da humanidade, do mundo.

Erre Amaral - 2017

Se no início do livro temos as funções bem delimitadas do homem (mais bruta) e da mulher (mais delicada), como de Eliezer e a mãe de Pretinha, Santinha, isso vai se desmanchando ao longo da narrativa a partir do dom pela escrita de Pretinha. Esta é conhecedora da natureza, de suas espécies e minuciosidades. Como uma pessoa letrada ela ganha um Almanaque do seu amado mágico, o livro sobre todas as coisas e, aqui, invenção e realidade se mesclam, pois ela se pauta na sua vida por este livro maravilhoso. Apesar de Pretinha ser descrita por sua fragilidade, ela vai ganhando força e malícia com relação à vida. Ela se torna uma excelente observadora do externo e do interno, percebendo suas minúcias, seus detalhes. A narradora-personagem no início do livro enumera as várias espécies de borboletas e depois se especifica numa, a maldita mariposa. Esta é internalizada na vida das tristes histórias de seus familiares, com o sofrimento, a loucura, a dor. É tamanha a força poética e lírica de Pretinha que o mal pode ser domado, amenizado. A força poética eufemiza o mal, Pretinha busca a utopia, outro mundo, uma utopia de amor num mundo cruel. Mas é, paradoxalmente, pela realística da crueldade, que o mal ganha sua dimensão hiperbólica, sendo domesticada, no entanto, pelo lirismo.

Neste romance-canção, que tem ritmo, musicalidade, o seu lado lírico, encontramos a feiura, a crueldade, no peito de Pretinha, com sua vingança de morte e também pela busca da prostituição. Mas este caminho anti-heróico é dosado pela força redentora e conciliatória no final pelo próprio viés da escrita, pela força do literário. Em certas descrições, a narradora-personagem ressalta a cor da pele, mostrando todas as cores multifacetadas, uma realidade múltipla e complexa como requer Erre Amaral. Temos neste escritor fascinante, um livro dentro de um livro, Pretinha dentro do Almanaque e da vida, um verdadeiro labirinto linguístico de variadas formas. A narradora enumera coisas na horizontal e na vertical, para mostrar a multiplicidade das formas e a quebra do nivelamento artificial de posturas estanques. Pretinha descreve como se estivesse lá, no passado da narrativa, traz o presente para o passado. E Pretinha utiliza justamente os versos começando por letras maiúsculas para dar a grandiosidade do ato de narrar por uma voz feminina.

O poder de invenção da menina, desde a infância, o dom de criar, justifica a narrativa atual. A partir do relato bíblico do tio Zé, cria sua narração adequada a sua vida e pessoa numa parte do livro. Isto revela a capacidade de narrar, a potência de sua narrativa. A linguagem de Pretinha é riquíssima em paradoxos como na imagem da bolha de sabão que é do “...tamaninho imenso do nosso amor,”.  A narrativa carrega caixinhas dentro de caixinhas, e surpresas acontecem a todo tempo, quebrando nossa expectativa. O final é surpreendente, milagroso e epifânico. São histórias dentro de histórias, como caixinhas mágicas. E como não nos lembrarmos do poder do ilusionismo? O livro é uma garrafa de afetos, Erre Amaral garimpa também as formas dos afetos que são construídas pelas afinidades, como entre o cego Omerinho e Pretinha a partir das semelhanças pela invenção de histórias e pelos desafetos, como entre ela e Reinaldo, o seu violador, e o violento Ferreira que chicoteia um negro livre até a morte.

Erre Amaral é um garimpeiro de formas e de símbolos, produzindo uma obra do tamanho do mundo e suas estranhas “delicadezas”. Mescla o sofrimento com alegrias, a dureza com a leveza, como a forma da imagem requer. A miudeza, a minúcia, é sua delicadeza. A narrativa produz uma circularidade, como o próprio ritmo da poesia. O seu olhar é enigmático. “Quem mais olha menos vê,” como dito pelo mágico revela a agilidade de sua narrativa, que misturando diálogos como parte da narração não segue o padrão tradicional do discurso direto dramático. A sua narrativa bem revela o dom do mágico, o de fazer desaparecer e aparecer a caixa. São inúmeras caixas que se abrem em sua narrativa. O diálogo entre Pretinha e o mágico no abrir-se para o sexo é uma das partes mais belas do livro. Como não nos lembrarmos do erotismo do “Cântico dos Cânticos”, do rei Salomão? Não é algo explícito, aberto e agressivo que revela um contraste com o recato anterior no livro. É algo extremamente lírico, belo e poético. O sexo serve como amadurecimento de Pretinha, o passar do tempo, a transformação de menina-moça em mulher.

A força da ambiguidade que carrega sua narrativa é ímpar. Da crueldade à delicadeza, Erre Amaral consegue ir de um extremo a outro com maestria. Mistura também o sagrado e o profano, como na imagem da Santa Pretinha após a prostituição e no Almanaque profano, espécie de bíblia que contém o segredo de todas as coisas. A riqueza da urdidura da ordem e do restabelecimento (redenção) metaforizada no trabalho de tecelagem da mãe de Pretinha que impõe uma ordem ao caos da menina com a figura das três fiandeiras que remontam ao mito grego. O livre-arbítrio que fere o destino das fiandeiras e impõe uma ordem outra por Pretinha que controla sua própria vida-sina. É a escrita o dom maior que desconstrói o destino imposto. Pretinha se vê na “inteireza de sua imperfeição”. No espelho que ela ganhou do mágico, um dos seus presentes, como o Almanaque, ela se mira e percebe a multiplicidade de suas faces. A relação com as cores branca e preta, na narrativa, é outro recurso que ocorre, mostrando os seus inúmeros entrelaçamentos. Temos, assim, nesta narrativa de Erre Amaral o garimpo certeiro de pedras preciosas e mágicas com um livro que vai fincar raízes na história de nossa literatura.


“Do mundo, suas delicadezas,”, romance (2017). Autor: Erre Amaral. Editora Penalux, 272 págs. (18x26), R$ 50,00.
Disponível em:
https://www.editorapenalux.com.br/loja/product_info.php?products_id=548



Erre Amaral nasceu em Porto Velho (RO) em 1965, é escritor, poeta e ensaísta. Autor de Do mundo, suas delicadezas, (romance, Editora Penalux, 2017), 54 [+ uma] mulheres do baralho (poemas, Editora Cousa, 2015) Contos extraviados (contos, Butecanis Editora Cabocla, 2015), Uma Denise (romance, Editora Cousa, 2014), Le mot juste (romance, Orobó Edições, 2011) e Paul Ricoeur e as faces da ideologia (ensaio, Editora da UFG, 2008). Assinou a coluna ‘O mal-entendido universal’ na Germina – Revista de Literatura e Arte, e assina a coluna ‘Memorabilia’ na Revista Pausa. Editor de Palávoraz – Literatura e Afins. Coordenou o Projeto de Cultura Café Literário em Diamantina (MG). Curador do Projeto Caravana Rolidey – Literatura na Estrada. Despacha na blogue literário piERREmenardiando. Doutor em Educação (UFG) e professor de graduação e pós-graduação do Curso de Filosofia da UFT, em Palmas (TO).


Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.
Contato: alealmeida76@gmail.com

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

A Incandescência de O Avesso da Lâmpada

*Por Thiago Scarlata


Abro o texto com o primeiro poema do livro, de nome Recanto, pág 19: “ergo um museu de silêncios / entre besouros cegos e esporões perdidos / em uma praça que fica no coração da memória. / aprendi que a verdade é um signo inflamável, / que os bares vendem ausências / e que as pessoas estão cheias de vazios. / meu recanto é uma varanda no hipotálamo / ateliê onde rumino um orfanato de cartas / e rabisco pequenos infinitos. / carrego sempre um peso a mais / um insólito equilíbrio, uma poética selvagem / para me defender do grito sanguíneo do tempo suicida / - escondo minhas relíquias no avesso da lâmpada / onde as palavras têm febre e a matéria se bifurca.”.

Como uma inscrição na entrada de um templo, o poema abre-alas sintetiza bem toda a arquitetura e estrutura do livro. O avesso das coisas é a morada da poética de Demetrios Galvão. Não espere em Avesso da Lâmpada (Moinhos, 2017) nada puramente descritivo ou literal. O poeta não confunde, em nenhum dos poemas, prosa com poesia, e, para além da forma, sabe que não basta o formato de um poema para um poema ser poesia. É preciso outros elementos, muitos deles sem nomes, e que tampouco podem ser “ensinados”, como algumas oficinas de escrita criativa tentam, mas que Demetrios sabe manejar, através de uma mão que é só dele.

Senti no primeiro capítulo, que possui o mesmo título do livro, uma forte pegada fílmica. Musculatura Cinética, pág 23, fez-me recordar do cinema russo clássico, com sua valorização da pura imagem, de tomadas longas em pontos fixos, sem fala alguma (apesar do texto e da brevidade do poema), como um transcorrer das águas de um rio num filme de Eisenstein, um dos pioneiros do que poderíamos chamar de “filmagem poética”. Vejamos a seguir, o poema o qual me refiro: “os rios seguem um curso imaginário / em uma parte do corpo, as águas transbordam / em outra, elas se afogam / na margem do silêncio esférico / as árvores frutificam / uma espiritualidade indomável / reviro a linguagem / à procura de um amuleto / - palavras que alimentem a vida. / resisto com todas as manhãs / - não tenho tempo para envelhecer.”

Demetrios Galvão - 2017

Em Silêncio das Formas, segundo capítulo do livro, o autor prossegue com seu ritmo característico e a ele adiciona algo, o qual eu não seria capaz de nomear, mas que faz drenar mais substância ainda das coisas. Em trechos como os dos poemas Sonho Hereditário, pág 43: “os cactos / tem a paciência / os gatos / a elegância”, e de Voz Vegetal, pág 44: “desvendar / a memória / das plantas / - suas raízes / mais profundas”, já nos fornecem os fragmentos necessários para seguirmos no enlaço do mais fino dessa vigorosa arte que Demetrios nos proporciona, entretanto, eu não poderia fechar o meu comentário sobre este capítulo sem transcrever, na íntegra, o meu poema predileto do livro. Falo de O Besouro, pág 47: “os besouros / são mestres / de lições incomuns. / preferem o silêncio / e o passo arrastado. / não sofrem de ansiedade / ou com a angústia dos homens. / habitam uma espessa carapaça, / uma caixa forte, / para proteger um segredo / sem voz. / desembrulham no ar / um impreciso movimento, / um voo sem conciliação. / - são convencidos / do seu estranho / lirismo.”.

Metais Pesados, aloca-se na ideia integral do livro, como uma ramificação impressionista, e, como o autor já havia provado pelos outros capítulos, sua obra pode funcionar tanto num paralelo com um filme, quanto com uma tela. Os oito poemas que o integram, pensados em conjunto, acrescentam uma luz necessária à beleza do livro, como podemos exemplificar em Correspondência #1, pág 56: “houve um tempo / que meu coração / não tinha o infinito / dos dias de hoje. / - estadia no subsolo - / não era permitido / o cheiro do café e / o sabor das palavras. / não existia varanda / visita da lua / música iluminando os ouvidos. / - colecionava planos de fuga / para um apocalipse inesperado - / no fundo do aquário / os peixes desenterram o passado / como exercício de memória. / - me acostumei a enterrar cadáveres / dentro de livros.”.

No epílogo de Cidades Rabiscadas , parte final da obra, o autor escolhe competentemente um forte trecho de Afonso Henrique Neto, que agora compartilho com vocês: “desenterrar uma cidade é surpreender uma fábrica de espaços. [...] desenterrar uma cidade é uma montagem de abismos.”, e é isso que Demetrios faz neste desfecho. Nos traz, dessa vez, não mais um “filme” ou um “quadro”, mas um álbum com trinta distintas “fotografias”, com seu olhar tão peculiar sobre a cidade, das quais destaco a décima, pág 73: fechar as janelas diante do simulacro e / se derramar pelos diversos andares da cidade / “pelo hipertexto de suas entranhas / de suas tripas magnéticas / de sua fauna nervosa e / sua flora deserta em seu rizoma de concreto.”; a décima oitava, pág 77: “buscar uma fenda onde se esconder / no paradoxo luz/sombra / um itinerário desconhecido nos bastidores do trânsito / sob as sobrancelhas das janelas.” e a última, pág 83: “todo poema esconde uma cidade: / rostos dopados, entorpecidos de vertigens. / e para lá... / para além do arame farpado / para além da janela de tinta / para além do mau humor ou da felicidade da palavra / ecos telepáticos da cidade subterfúgio / ecos subterrâneos da cidade nômade.”.
        

         As analogias que fiz com outros gêneros artísticos, não devem ser tomadas como fixos a cada capítulo que deleguei, mas de uma maneira perceptiva completamente livre. A poética de Demetrios Galvão é de uma liquidez absurda e foi isso que busquei apontar neste breve texto. Ler O Avesso da Lâmpada é a prática do exercício dos contrários. Uma imersão profunda em pequenos infinitos, personificados nos versos deste grande poeta piauiense. Uma experiência, sem dúvida, transcendental. 




Foto: Emanuelle Chaves - 2016
Demetrios Galvão, Teresina/PI. É poeta, professor e historiador, com mestrado em História do Brasil. Autor dos livros de poemas Fractais Semióticos (2005), Insólito (2011), Bifurcações (2014), o Avesso da Lâmpada (2017) e do objeto poético Capsular (2015). Participou do coletivo poético Academia Onírica e foi um dos editores do blog Poesia Tarja Preta (2010-2012) e da AO-Revista (2011-2012). Edita a revista Acrobata, o blog Janelas em Rotação e colabora no site LiteraturaBr.






*Thiago Scarlata é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas publicados nas Antologias “Âmago” (Editora Regência/SP - 2011) e “Prêmio Sesc de Poesia Carlos Drummond de Andrade 2016” e também nas Revistas “Gueto”, “Escamandro” “Mallarmagens” e “Poesia Brasileira Hoje”, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 , vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017 e finalista do III CONCURSO DE POESIA “PRÊMIO JAYME ROLDON 2011. Após esse hiato de 5 anos, retoma a escrita e agora publica seu primeiro livro de poesia, de título “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo”, pela Editora Multifoco.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Entre a máscara e a revelação no romance Veneza

*Por Alexandra Vieira de Almeida


            Ao ler o esplendoroso e arrebatador romance de Alberto Lins Caldas, Veneza, recordo-me da imagem da Terra como paraíso, o Éden de Leibniz, com seu dizer de que habitamos o melhor dos mundos possíveis. Alberto Lins Caldas vai além, revelando um mundo tenso, denso, em que convivem a beleza paradisíaca da cidade do coração do narrador-personagem Pierre Bourdon, Veneza, com suas águas, cheiros, alimentos apetitosos, numa revelação sinestésica, em que os sentidos aguçados na narração nos levam ao corpo saboroso desta cidade ímpar, com o inferno da miséria dos seres, os desvalidos, os viciosos, e a melancolia do próprio Pierre que tenta captar a imagem de sonho/pesadelo da realidade. No conto de Voltaire, “Cândido ou o otimismo”, em que o filósofo-escritor francês ironiza Leibniz, o personagem passa por todos os infortúnios e mesmo assim é otimista. O autor deste belo Veneza, mostra-nos um personagem que passa por vários problemas devido à sua paixão por mulheres casadas e, por isto, caminha para a iminência da morte: “Livros e mulheres foram sempre o meu fraco...” Logo no primeiro livro do romance por ora aqui estudado, a narrativa se constrói como uma preparação para a morte, como podemos encontrar na história dos grandes filósofos: “...e nesses extremos se delineia a ironia da minha vida e a razão da minha morte”.

            De um lado temos, no início do livro, a vivacidade de um personagem que busca o prazer a qualquer custo. A poeticidade e lirismo com que o narrador-personagem narra a beleza idílica e a exaltação do local vista do interior do quarto em Veneza se alongando para as imagens vistas pela janela, acrescentando cores, como se estivesse revelando uma bela pintura, reproduzem a máxima horaciana “Ut pictura poesis” (A poesia como pintura). A força descritiva de Caldas, com constantes adjetivações e enumerações, só reforça esta realidade icônica de sua obra. Esta realidade pictórica de sua escrita é uma estratégia narrativa para reter a memória, pois sua escrita é uma rememoração dos momentos paradisíacos e infernais da história de Pierre Bourdon. Se desde a apresentação com o achamento de um Códice onde estaria esta narrativa encontrada no lixo pelo editor-autor, temos a falta de precisão, o romance em questão fruto deste Códice impreciso, revela um paradoxo rico de estética. A constante adjetivação do narrador-personagem, que não sabemos se ele é real, é uma forma de acobertamento também da falta de precisão que a própria memória pode levar, já que ela, segundo Derrida, em seu livro Farmácia de Platão, seria exterior à escrita ao analisar uma passagem de Fedro, de Platão; pois a escrita é pharmakón, tem seu remédio, mas também traz o veneno. O papel do editor-autor foi ordenar, colocar ordem no que é caótico do próprio Códice, num processo de organização composicional, inserindo epígrafes em cada um dos sete livros, que por sua vez, são divididos em três capítulos.

               Ao longo do romance, temos um amadurecimento de Pierre Bourdon, em que a bile negra - a melancolia - se manifesta com o passar dos anos, num processo de autoconhecimento e autorreflexão, cujo primeiro motor é o espelho da ilha em que ele se mira. Ao ver aquelas pessoas paradas na ilha, após a viagem de navio com seu fiel criado, o Mouro, compara tudo num amálgama só (pessoas, árvores, animais). É neste espelho da ilha, que Pierre observa o rosto do mundo mais de perto e a falta do espaço interno, o lar, o joga para o mundo, percebendo os contrastes dele, a vida-morte, dor-prazer, miséria-riqueza, revelando a intensa compaixão dele pelas coisas do mundo, levando-o a partir daí a seus delírios e melancolia. O quarto de Pierre é o mundo, em sua miniatura-metonímia, a cidade de Veneza, ao invés do quarto minúsculo do autor francês Xavier de Maistre, com sua Viagem ao redor de meu quarto, com suas constantes digressões, que influenciaram Machado de Assis. O espaço do externo inebria Pierre com suas sensações, desde o mais belo ao mais repugnante. Em Pierre, o amadurecimento no ato da escrita revela um narrador excepcional: “...e que no tempo não entendia em sua extensão, mas hoje ecoa bem fundo e com plena verdade em todo o meu ser...”

              O Mouro, o que dizermos do criado fiel amigo de Pierre Bourdon? Ele é o equilíbrio em meio ao desequilíbrio, o silêncio em meio ao discurso e livros do amo, a cura em meio à doença, a realidade em meio ao delírio e loucura de Pierre, Sancho Pança e Dom Quixote. Em meio à melancolia do narrador-personagem, o Mouro traz o riso. Em meio aos unguentos, ervas medicinais, banhos, Pierre vai estendendo sua vida num cobertor de vida e morte. Pierre tem o poder de ironizar-se, é sarcástico consigo mesmo, culpabiliza-se num mundo gestado pelo Mal, como ele chama. Se o universo está longe do bem, com a fome, o abandono, a morte, o sofrimento, a velhice, a humilhação, a espera, como explicar o problema do Mal e Deus, uma questão dos filósofos? Guimarães Rosa mostrou, em Grande sertão: veredas, este poder demoníaco na natureza, nas coisas. E como escapar dele? Pierre num processo de esvaziamento de sentido, de Deus, diz: “Pela primeira vez não senti Deus nem neles nem mais em mim”.

                   Pierre não entende aquilo que não diz respeito à sua vivência. Por isto, para ele, escrever é rememorar, uma luta contra o esquecimento e a própria morte. Por isto ele fala antes de morrer: “...recordar antes de esquecer”. No seu viés mimético, ele deve deixar algumas coisas na obscuridade, não quer saber tudo, aquilo que não lhe apraz ou condiz com seu elemento. Ele conversa consigo mesmo e com o leitor no seu processo de escrita, revelando seu livro como um grande monólogo narrativo com intensa dose de dramaticidade, beirando ao trágico, sem ter, paradoxalmente, diálogos diretos entre personagens: “Por que? então querer me enfronhar em imprestáveis minúcias, cansando minha cabeça, sem nenhuma utilidade, sequer servindo, como agora, para a revivescência dessa escrita.”

Veneza, de Alberto Lins Caldas (Editora Penalux, 2017)

               A imagem de Pierre é como a própria Veneza, um abismo, um mistério, um segredo, como as águas, o mar. Ele é sem chão, sem firmeza, desconhecido para ele mesmo. A água seria este batismo de esquecimento? O caos em meio ao ordenamento da escrita? Na viagem no mar, no navio, Pierre alcança este vazio. O vazio do quadro branco e das cores carregadas do início do livro. Este vazio é o riso do Mouro. Se Pierre é carregado de linguagem, livros, o Mouro é a não-linguagem, o esquecimento, o vazio, o silêncio, as duas faces, paradoxalmente de Pierre Bourdon e da sua escrita: “Todo mundo é um ator” (Mundus universus exercet histrioniam). O prazer da vida leva o narrador-personagem ao prazer e gosto amargo da tinta. Enquanto o Mouro tem medo do mar, das águas profundas, Pierre é todo água, flutuante e conflitante. Ele se adensa na água. Pierre é caracterizado como vírgulas, pontos e interrogações. O Mouro é reticente. No mar, Pierre poderia morrer, mas o Mouro não teria o corpo da mulher. O Mouro vê a fatalidade iminente e Pierre provoca a Desdita por nada, brinca com a Sorte, o Destino. Isto demonstra no romance de Caldas uma dramaticidade plástica, icônica. Ele cria no mundo uma intimidade de sentidos. Ele utiliza uma linguagem visual, dos olhos, mas que não deixa de ter um processo analítico para as mentes.

                     Se Pierre faz do externo um lar, o interior; o Mouro faz do lar um mundo como vemos na banheira no final da narrativa. O narrador-personagem faz questão de mostrar as diferenciações dos ambientes, dá destaque a cada parte, enfatizando marcas em cada descrição de sua narrativa como num caleidoscópio colorido e multifacetado, como podemos ver no contraste entre o branco e o negro no estábulo dos escravos e das múltiplas cores na fazenda, revelando no ambiente a tensão que ocorreria depois entre ele e o estranho desconhecido. Há uma grande tensão na linguagem, no romance de Caldas. Aqui de novo, no duelo, há a iminência da morte. Esta é o fim da memória e do tempo, da escrita, portanto. O esquecimento é o processo de rasura, de descascamento do ser. Pierre é um ser que hesita, se tensiona. As impressões do narrador se misturam aos delírios e o leitor se pergunta – isto é real ou delirante?

Veneza, Itália, vista de cima (2015)

                    O Mouro é a consciência de Pierre. Ele sempre o está advertindo. É um dique em meio ao transbordamento de Pierre, que vê Veneza como um ser vivo, pronta a ser devorada, num verdadeiro devaneio-degustação da cidade – o corpo de Veneza – como uma mulher, numa verdadeira relação entre amante e amada. A sua real amada, por assim dizer. Numa topografia corporal, Pierre diz: “As tão drásticas mudanças no meu corpo e na minha alma são reflexos dessa cidade...” E o mouro o tira de seus devaneios. No final da vida, em meio à chuva, paradoxalmente, Pierre ri, dá uma “gargalhada sem fim”. Neste sentido, ele incorpora o Mouro. A luz e a sombra, os opostos convivem no final. Após ver a putrefação do irmão mais velho, Pierre se depara com a estátua de um anjo, mostrando a convivência entre o belo e o feio, o nobre e o asco, o alto e o baixo.


              Portanto, temos em Alberto Lins Caldas, um estilo lírico e ácido ao mesmo tempo. E o grande mistério, no final, a grande questão é a própria vida nas muitas faces do ser. Pierre é um ser flutuante, como as águas de Veneza, que transmite admiração e maravilhamento, mas que reflete também a dura realidade, como as pistas que o narrador nos dá no início do livro, quando descreve suas águas cheias de peixes mortos e fezes, distante do lirismo dos poetas. Se o narrador revela a ótica da perversidade, da crueldade, também temos a cura, pois pensar sobre este estágio de desequilíbrio, de doença, é uma forma de equilíbrio, mostrando a forte dramaticidade desta relação. Assim, fica a questão de Alberto Lins Caldas, a linguagem é máscara ou revelação? A resposta cabe ao leitor inteligente como o narrador assim o quer.



“Veneza”, romance. Autor: Alberto Lins Caldas. Editora Penalux, 184 págs., R$ 40,00, 2017.
Disponível em:
E-mail: vendas@editorapenalux.com.br



Alberto Lins Caldas é pernambucano de Gravatá, onde nasceu em 1957. Colabora em jornais do Recife (Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio e Diário da Manhã) com artigos de critica literária e poesia. Fundador do grupo informal Poetas da Rua do Imperador. Cursou Historia e Arqueologia na UFPE. Ensaísta proustiano e poeta. Autor dos contos de Babel (2001), dos romances Senhor Krauze (2009) e Veneza (2017), e dos livros de poemas Minos (2011), De corpo presente (2013), A perversa migração das baleias azuis (2016) e A pequena metafísica dos babuinos de Gibraltar (2017).



*Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.
Contato: alealmeida76@gmail.com

domingo, 16 de julho de 2017

O Cometa - Bruno Schulz

A época estava sob o signo da mecânica e da eletricidade, e todo o exame das invenções se derramava sobre o mundo das asas do gênio humano. Nas casas burguesas apareceram estojos de charutos equipados com isqueiro elétrico. Girava-se o interruptor, e inúmeras centelhas elétricas acendiam o pavio embebido em gasolina. Isso despertava esperanças enormes. A caixinha de música em formato de pagode chinês, logo que lhe davam corda com uma chave, começava a tocar um rondó em miniatura, girando feito carrossel. Pequenos sinos soavam a cada volta, pequenas portas se abriam, mostrando no cerne do realejo que girava um trioleto de tabaqueira. Em todas as casa se instalavam campainhas elétricas. A vida doméstica decorria sob o signo do galvanismo. A bobina de arame isolado tornou-se um símbolo dos tempos.







Bruno Schulz (1892 - 1942) foi um novelista e pintor ucraniano de religião judia, reconhecido como um dos expoentes da prosa polaca do século XX. Autor de As lojas de Canela 1934), ao qual lhe seguiu Sanatório baixo a Clepsidra três anos depois. Também traduziu O Processo de Kafka ao polaco em 1936. Em 1938 a Academia Polaca de Literatura concedeu-lhe o prestigioso Laurel de Ouro. O estalar da II Guerra Mundial em 1939 tomou Schulz vivendo em Drohobycz, que estava ocupada pela União Soviética. Há informações de que estava a trabalhar numa novela chamada O Messias, mas não há rasto deste manuscrito. Depois da invasão alemã da União Soviética foi forçado, por ser judeu, a viver no gueto de Drohobycz, mas alguns relatos dizem que estava "protegido" por um oficial da Gestapo que admirava os seus desenhos. Durante as últimas semanas da sua vida pintou um mural em sua casa de Drohobycz no estilo que o identifica. Pouco depois de acabar o trabalho, foi fuzilado por um oficial alemão, rival do seu protector, e o seu mural escondido.