quinta-feira, 29 de junho de 2017

A Hidrografia da Fúria em Corpo de Festim

*Por Thiago Scarlata


         
Antes da leitura de Corpo de Festim (Editora Penalux, 2016), de Alexandre Guarnieri, eu acreditava, assim como a maioria das pessoas, que uma das funções básicas de um poeta fosse a de extrair para uma folha, de modo a disponibilizar a todos que saibam ler, as nuances, sobretudo, de todas as menores coisas, e, com a habilidade de um artífice da língua, tornar essa leitura algo que provoque, entre outras sensações não menos interessantes, prazer e inquietação. Guarnieri, neste livro, mostra que nem só das pequenas coisas vive a poesia, mas também das absurdamente mínimas, que vão desde um átomo de carbono, seu poema abre-alas, carregando a origem de tudo neste “menor ponto de todos”, passando pela explosão do big-bang, o universo do próprio corpo humano até o desaparecimento completo, o que soou como uma analogia ao não-lugar de onde viemos (ou nos encontramos?).

Corpo de Festim é um verdadeiro dicionário poético do corpo humano. Guarnieri, com seu hiper-realismo inserido numa meta-linguagem (que de tão crua flerta com a técnica), provoca, logo de cara, uma perplexidade íntima, uma auto-imersão no leitor, levando-o ao âmago de sua própria máquina, a qual só temos conhecimento, geralmente através de livros de biologia (à exceção dos que lidam com saúde).

Essa verdadeira “endoscopia” que o autor opera ao longo dos três capítulos: “Darwin não joga dados, Mallarmé sim”; “Corpo de Festim” e “Vigiar e punir” (título homônimo ao livro de Foucault), mostra através de uma poética cirúrgica, a dinâmica das coisas químicas contida em tudo. É como se o autor quisesse deixar a mensagem: Há, até no objeto mais estático, muito movimento, ou, como escreveu em no coração, pág. 42, figurar uma “Hidrografia da fúria”.

Um poema que ilustra bem o cerne da obra é o sangue, pág. 47: “no corpo / há tão pouco espaço / entre um osso e outro / só o óleo dos glóbulos / passa (o plasma) / quando não é pálido / (na ampulheta viva / sangue e tempo) / como a graxa / (da máquina / escorre entre / as engrenagens / do relógio / bio lógico.

Foto: Amanda Erthal 
Guarnieri brinca de Deus neste livro, e faz isso como poucos. Entre dissecações, entupimentos, liberação de fluxos, tubos, resíduos, escoamentos, doenças, pílulas, órgãos, micro, macro, célula e universo, o autor vai progredindo por um campo geralmente hostil para a maioria dos poetas: o da construção monotemática, onde, num plano mais geral, o título dita (ou poderia ditar) o conteúdo do poema, o que só faz elevar seu vigor artístico à categoria dos grandes nomes.

O título da obra nos proporciona a maleabilidade da interpretação sugerida nele mesmo. No meu caso, a metáfora extraída foi a do material “festim” unida a outros ponto, que discorrerei em seguida. O cartucho de festim, é comumente utilizado para uma adaptação do sistema nervoso do soldado (leitor) ao estampido do disparo da arma (texto). Aliando isto a toda atmosfera predominantemente corpórea do livro, destacando outro forte trecho, escrito em todo corpo, pág. 65, onde o poeta sintetiza: “todo homem tem o corpo como próprio logradouro” e a figura recorrente de Houdini (um dos maiores, senão o maior, ilusionistas da história), com seu corpo acorrentado, nos fitando como quem provoca , como quem quisesse mostrar a liquidez do corpo e da vida (uma ilusão?), entendi que um dos legados possíveis que Guarnieri nos deixa, é o de “descoisificação” da ciência, é o de decantação poética dos conceitos, tão longe de nós (e da literatura) no alto de prateleiras das especialidades. E seria essa umas das funções mais importantes da poesia? Eu não saberia minimamente responder.

E é num manifesto ao desaparecimento (não por acaso o poema que fecha o livro), em mandala de houdini que o poeta imprime um último sopro: “’ah, se harry houdini voltasse à vida!’ e se pudesse aprender com ele (sem a interferência do medo), nestes dias de cansaço e desastre, na sentença dessas tardes dominicais de tamanha descrença, num ato máximo de coragem, livrar-se dos cadeados e das grades, (como se recebesse dele este presente célere, entregue de uma só vez), num flash, num splash, no zás-trás ou abracadabra, num golpe de mestre, ah se fosse possível simplesmente, e para sempre, D E S A P A R E C E R   D E   V E Z.” 

Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Integra o corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) seu livro de estreia disponível online (ISSUU). Seu segundo livro é Corpo de Festim, vencedor o 57º Prêmio Jabuti em 2015. Em 2016, publicou pela Patuá a antologia Escriptonita (poemas tematizando super-heróis), do qual foi um dos organizadores. Seu terceiro livro é Gravidade Zero (Penalux, 2016). 


*Thiago Scarlata é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas publicados nas Antologias “Âmago” (Editora Regência/SP - 2011) e “Prêmio Sesc de Poesia Carlos Drummond de Andrade 2016” e também nas Revistas “Gueto”, “Escamandro” “Mallarmagens” e “Poesia Brasileira Hoje”, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 , vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017 e finalista do III CONCURSO DE POESIA “PRÊMIO JAYME ROLDON 2011. Após esse hiato de 5 anos, retoma a escrita e agora publica seu primeiro livro de poesia, de título “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo”, pela Editora Multifoco.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Projeto Póstumo - Marina Colasanti


*Poema do livro Fino Sangue (Editora Record, 2005)




Se
quando morta
me fizerem busto
volto
pomba gentil
e
cago nele.





Marina Colasanti nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

José J. Veiga e a Normalidade do Absurdo

Veiga, numa foto da década de 60 no escritório de Seleçőes do Reader´s Digest
*Por Saulo Dourado

        
     Basta que um absurdo se instale e permaneça, e em pouco tempo, por hábito após hábito, o que seria um escândalo até tempos atrás já se torna parte da convivência. Descobre-se que o descontentamento não se tornou uma reação de incômodo para os autores dos absurdos, a revolta se misturou com a resignação da labuta diária, ninguém estaria pelos mais fracos e o escárnio se esvai no esquecimento... É um processo doloroso que os romances e contos de José J. Veiga tornam sempre a apontar.

         Em Sombras de Reis Barbudos, uma empresa é montada por um homem com grandes ideias e de forte agrado para a população de uma cidade. Despertando a ambição de frentes maiores, o dono, tio do narrador, é deposto e obrigado a se retirar para longe. Só se ouve o burburinho nas casas, sem compreender. A nova administração tampouco se revela, e convoca alguns dos cidadãos para vigiar outros, assim girando a roda da própria cidade contra ela mesma. Muros são erguidos lá onde haviam ruas (e em poucos meses, ninguém mais se lembra onde davam esses caminhos), regras são impostas de comportamento, até rir e olhar para cima se tornam proibidos, e nada mais prospera senão a empresa.

Algumas das inúmeras edições da obra, atualmente editada pela Companhia das Letras.

        A cada nova investida, o povo se espanta, mas logo assimila. Mesmo a aparição de urubus, que antes era vista como mau presságio, passa a ser uma constante. As aves pretas pousavam sobre os muros e se tornavam sombras. Perdendo o medo dos humanos, entram nos quintais, roubam comida, e os humanos, afeiçoando-se àquela presença, tornam os urubus animais de estimação. Até a empresa se surpreende com aquela capacidade de acolhimento e passa a perseguir também os animais.


        
Versão espanhola de A Hora dos Ruminantes
Não é diferente em A Hora dos Ruminantes. Um acampamento se instala misteriosamente nas áreas de circunferência de Manarairema e muda a dinâmica da pequena cidade em pouco tempo. Para cada cidadão que tenta ir na usina descobrir as razões da chegada e dialogar, retorna um capanga a serviço dos destinos secretos. Deixando então que as coisas se resolvessem por si só, um dia qualquer aparece uma matilha invadindo as ruas, obrigando as pessoas a se recolherem com medo de mordidas. Passados os cachorros, e esquecido o assunto, um estrondo se dá: surge uma boiada como se fosse um mar, que faz da cidade um curral. Ninguém consegue abrir a porta de casa, e só as crianças sobem nos lombos dos bichos para buscarem mantimentos.



         Se podemos ler os dois romances com a ótica do realismo fantástico, no qual o estranho se instala sem explicações, ou pela referência ao sufocamento social e existencial de Franz Kafka, escritor das predileções de Veiga, também se soma uma alegoria da brasilidade enquanto gente política. O próprio autor, em entrevista em fevereiro de 87, diz: “As populações de Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas etc. têm sido submissas e aceitado todas as opressões desde que o Brasil existe (as revoltas que a história registra foram tentadas por pouquíssimas pessoas esclarecidas, por isso fracassaram). Qual será a atitude verdadeiramente revolucionária de um escritor: mostrar ficcionalmente uma população oprimida reagindo e acabando com a opressão (uma mentira), ou mostra-la sofrendo resignadamente? Esses livros foram escritos para desassossegar, e achei que se mostrasse os oprimidos derrubando as bastilhas, o leitor fecharia o livro aliviado, e não desassossegado.” 

         Não seria de hoje, por esse leitura, que estaríamos nós, povo brasil, a nos acostumarmos com o puro escândalo, até um ponto que os inimigos acima instalam fábricas fantásticas e fazem dos princípios inconstâncias e oscilações do que vale e do que não vale. A leitura de José J. Veiga desassossega, no sentido de Pessoa, que assim torna viva a questão, que instaura a angústia enquanto abertura e evita o fechamento da novidade como fato banal. Com o desassossego, não esqueceremos.  


Veiga na BBC no final da década de 40.
José J. Veiga nasceu no dia 2 de fevereiro de 1915, em Corumbá de Goiás. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde estudou na Faculdade Nacional de Direito. Foi comentarista na BBC de Londres e trabalhou como jornalista d’O Globo e da Tribuna da Imprensa, entre outros veículos. Aos 44 anos, estreou na literatura com Os Cavalinhos de Platiplanto. Seus livros foram traduzidos para diversos países, entre eles Portugal, Espanha, Estados Unidos e Inglaterra, e pelo conjunto da obra ganhou o prêmio Machado de Assis, outorgado pela Academia Brasileira de Letras, além de três Jabutis. Faleceu no dia 19 de setembro de 1999.





*Saulo Dourado é escritor e professor. Mestre em Filosofia pela UFBA, é autor dos livros de contos "O mar e seus descontentes" (2016) e "O autor do leão" (2014), além do infanto-juvenil "Mailon, o cão late para o espelho", adotado em escolas de Salvador, Bahia, onde vive. Colabora com contos para o Jornal A Tarde desde 2010 e escreve em portais literários como Homo Literatus.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Trapaça não é blefe

*Por Thiago Scarlata


    Se você está naqueles momentos em que ficamos secos por um livro de poesia, leia Trapaça (Oito e Meio, 2017). Mas se o dia for daqueles em que hesitamos ler qualquer coisa, sem saco algum para absolutamente nada, exceto uma garrafa de vinho ou cerveja, também leia Trapaça, aliás, mais ainda neste último caso.

Tratamos aqui de um livro versátil, líquido, que dialoga e penetra facilmente, sem a carga de uma linguagem pesada, que em muitos casos, é só casca estética. Contudo, não podemos confundir versatilidade com aleatoriedade fraca. Apesar da leveza e fluidez que sentimos ao longo do jogo poético que Marcelo Labes rege, movimentando o leitor conforme sua dança, quem supor que a jogada do autor é só blefe, não terá a experiência plena do livro, no que nele há de melhor.

      Trapaça é dividido em quatro partes. O que norteia a primeira, é o próprio ofício (nome de um poema, inclusive). O que é um poema? E, mais ainda, “Por que poemas? Volta e meia me perguntam.”, caso o poeta respondesse, não estaríamos falando de Labes, que então saca um “[Eu me faço essa pergunta / todo dia]”. A inquietação segue e então surge Despoema: “Se os poemas ao menos / dissessem que a gente / nunca chega, de fato, / a ganhar. / Então os poemas / seriam sinceros / [e já não haveria / mais que escrevê-los]”. Labes, nessa abertura, manuseia a pré-poesia, a pré-coisa, o que aliás, não é uma prática limitada ao livro, pois o autor também é criador e editor do site O poema do poeta, onde recolhe e publica manuscritos de escritores e poetas novos e consagrados, marginais ou mesmo os que frequentam os chás da ABL, sem restrições, expondo a manufatura, o artesanato da língua, o garrancho, a rasura, o desenho distraído no canto da folha, enfim, o crescimento de um original antes de passar pelo crivo do editor e transformar-se em livro, ou não.

Marcelo Labes, em Espaço Plural - 2017 - Blumenau/SC

     Labes não atende a uma caretice organizacional, a uma tendência limitadora vista em algumas recentes obras “ganhadoras de prêmio”, onde nota-se a entediante necessidade de uma coleira temática “cool”, enforcando em maior ou menor medida o conteúdo. O que percebemos aqui, é muito mais um ajuste ou um filtro do que uma divisão brusca de capítulos, algo que só faria algum sentido mais sério em qualquer outro gênero, só em último caso para poesia.

      O lirismo da Parte II é seguido pelo peso melancólico do tempo, seduzindo a memória até o chão da velha infância, como em Daniel: “naquele tempo a gente / enterrava os pássaros / e ainda não sabia que / iria enterrar os amigos” e cravando em Reviravolta: “recitar lembranças como se amanhã / rever fotografias / como se o foco / como se a luz / reestruturar: / relembrar / para / esquecer.”, da terceira parte.

      A “trapaça” de Labes está nessa capacidade de pintar, rasgar a tela e fazer disso, quem sabe, uma obra de arte, ou um ponto de introspecção e prazer, está nesse florir a armadilha na qual gostamos de cair.

      No meio desse armar e desarmar, nos deparamos, então, com o último ato da peça. Nele, o poeta dirige competentemente o desfecho do livro, como ilustro agora através dos trechos de Receita de Bolo Estragado: “Um poema mais perverso / do que ratos / eu queria / e não consegui escrever / nada que não coubesse / nesse dia.”; Paus e Pedras: “Na primavera das datas, / mais do que arco e flecha / havia ali um silêncio / trancado” e Pindorama: “esta terra / não pode ter nome / a não ser que se chame / terra-que-nunca-foi / mas ia.”.

      Não acredito em notas ou classificações de obras, sobretudo de poesia, que possuam raízes minimamente maduras, e por isso não abrirei nesta uma exceção. Entretanto, me sinto empenhado em afirmar que Trapaça é um livro, sem dúvidas, indispensável para quem gosta da boa e velha poesia.
     

 “Que o poema fale por si”, disse Labes. E que nós o deixemos em silêncio, pois é dali que sua voz, presente em cada verso, vai construindo lentamente sua sonoridade até o grito pleno, que é o seu poema. 


Marcelo Labes é poeta nascido em 1984 em Blumenau-SC. Autor de Falações (EdiFurb, 2008), Porque sim não é resposta (Antítese/Hemisfério Sul2015), O filho da empregada (Antítese/Hemisfério Sul 2016) e Trapaça (Oito e Meio, 2016). Participa da mostra Poesia Agora (edição carioca). Publica no blog http://mmlabes.blogspot.com e mantém a revista O poema do poeta (http://opoemadopoeta.wordpress.com), onde publica originais manuscritos de autores vivos e mortos, do Brasil e do exterior.


*Thiago Scarlata é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas publicados nas Antologias “Âmago” (Editora Regência/SP - 2011) e “Prêmio Sesc de Poesia Carlos Drummond de Andrade 2016” e também nas Revistas “Gueto”, “Escamandro” “Mallarmagens” e “Poesia Brasileira Hoje”, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 , vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017 e finalista do III CONCURSO DE POESIA “PRÊMIO JAYME ROLDON 2011. Após esse hiato de 5 anos, retoma a escrita e agora publica seu primeiro livro de poesia, de título “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo”, pela Editora Multifoco.


quinta-feira, 8 de junho de 2017

A deep web poética em Mecânica Aplicada

   
Por Thiago Scarlata*    


   Mecânica Aplicada (Patuá, 2017), de Nuno Rau, é um daqueles livros em que tudo foi cuidadosamente montado. Particularmente, trata-se do primeiro livro dessa formidável Editora Patuá que chega em minhas mãos e o qual tive o privilégio de desfrutar, e, ao que me pareceu, foi um casamento perfeito entre autor e editora. Nas palavras do próprio Nuno: “O Edu (Eduardo Lacerda – Editor) me deu total liberdade para o projeto gráfico. Tive ainda, a co-elaboração de um amigo, Pepe Donato, publicitário e músico, e seu parceiro Ítalo Freitas, artista gráfico”. Adicione neste processo, onde a construção foi desenvolvida até o último minuto antes de ir ao forno, uma das equipes de arte e editoração mais sofisticadas que dispomos no país. Notamos aí, que o resultado não poderia ser outro: Um livro onde tudo harmoniza.

Numa ambientação visual futurista, Mecânica Aplicada exibe a força de sua poética logo nos primeiros versos: “Não é um espelho o mundo / nem moído / cerol colado na meada”. Injeta-nos, no mesmo poema, a distopia, finalizando gravado em aço, e não em outra superfície, o seu manual, que bem cabe como um tutorial da obra: “Escreva num livro / o inventário de técnicas / para quebrar os espelhos / agredir os espelhos violentamente / mesmo cortando os punhos”.

Falando em socos, logo após me entregar um exemplar, o poeta envia a seguinte mensagem: “Espero que goste do “punch” dele”, mal sabendo que eu já havia tomado os primeiros cruzados – já estava no quarto ou quinto poema – tamanha, aliás, tinha sido a química.

Típico dos grandes escritores, Nuno mete uma lupa, melhor dizendo, um microscópio sobre a nossa contemporaneidade, arrancando algumas máscaras que, por estarmos tão entorpecidos pela banalidade do sistema, cobrem-nos o rosto com um filtro de mediocridade. Mais ainda, o autor nos empurra para uma espécie de deep-web poética, apontando que o inferno pode esconder-se, por exemplo, na tela de um tablet ou smartphone.

O livro é dividido em cinco partes: Subversio machinae (manual)entreato: imago mundi; Fenomenologia dos materiaisentreato: opera mundi e mecânica apliacada. Como foi dito, nada em Mecânica Aplicada foi construído à toa. Nuno, sagazmente, separou essas cinco peças, cabendo a cada leitora ou leitor, a liberdade de montá-las à sua maneira, ou deixá-las como estão. Definitivamente, Nuno criou sua própria máquina, seu próprio timing de poesia, restando a nós admirá-la e absorvê-la da melhor forma.

A quem possa ser enganado no meio das luzes disparadas por cabos de fibra óptica, touch pad’s, ou sinais de wireless, um alerta: trata-se de uma obra híbrida. Ela é tanto digital, quanto analógica. Não nos referimos aqui, a um livro de poesia “temático”. Há sempre um confronto. Há ali um autor talhando manualmente uma alegoria em madeira, e não em outro material, como quem provoca um mundo de formas cada vez mais pré-fabricadas.

Numa época em que o ultramoderno começa a conviver crescentemente com o vintageMecânica Aplicada chega, não para cumprir o papel de fio condutor ou engrenagem, de força-motriz ou mesmo eletricidade, mas sim, do próprio óleo a dar fluidez a toda essa parafernália que homens e mulheres criaram e se encontram (perdidos?). Uma poesia, antes de tudo, global.


Nuno Rau é carioca, arquiteto e professor de história da arte, mestre e doutorando em história da arquitetura, e tem poemas publicados em revistas e sites como Cronópios, Germina, Sibila, Zunai, Mallarmargens, Diversos e Afins, RelevO, em diversos blogs e nas antologias ‘Desvio para o vermelho (13 poetas brasileiros contemporâneos)’, pelo CCSP | Centro Cultural São Paulo, ‘Escriptonita: pop/oesia, mitologia-remix & super-heróis de gibi’, que co-organizou, e ‘29 de Abril: o verso da violência’, ambas pela Editora Patuá e, em fase de organização, a antologia 'Poemáquina'. Autor do livro ‘Mecânica aplicada’ (2017). É um dos editores da revista eletrônica Mallarmargens.




*Thiago Scarlata é poeta, músico, escritor e criador do Blog Literário Croqui. Teve poemas publicados nas Antologias “Âmago” (Editora Regência/SP - 2011), “Prêmio Sesc de Poesia Carlos Drummond de Andrade 2016” e também nas Revistas “Gueto”, “Escamandro” “Mallarmagens” e “Poesia Brasileira Hoje”, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 , vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017 e finalista do III CONCURSO DE POESIA “PRÊMIO JAYME ROLDON 2011. Após esse hiato de 5 anos, retoma a escrita e agora publica seu primeiro livro de poesia, de título “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo”, pela Editora Multifoco.

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