domingo, 25 de fevereiro de 2018

besouro - Demétrios Galvão

Demétrios Galvão @2016




besouro


os besouros
são mestres
de lições incomuns.

preferem o silêncio
e o passo arrastado.
não sofrem de ansiedade
ou com a angústia dos homens

habitam uma espessa carapaça,
uma caixa forte,
para proteger um segredo
sem voz.

desembrulham no ar
um impreciso movimento,
um voo sem conciliação.

- são covencidos
do seu estranho
lirismo.




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*Poema do livro o avesso da lâmpada (Editora Moinhos, 2017).



Editora Moinhos @2017







Demetrios Galvão, Teresina/PI. É poeta, professor e historiador, com mestrado em História do Brasil. Autor dos livros de poemas Fractais Semióticos (2005), Insólito (2011), Bifurcações (2014), o Avesso da Lâmpada (2017) e do objeto poético Capsular (2015). Participou do coletivo poético Academia Onírica e foi um dos editores do blog Poesia Tarja Preta (2010-2012) e da AO-Revista (2011-2012). Edita a revista Acrobata, o blog Janelas em Rotação e colabora no site LiteraturaBr.



quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Outro dia de folia: carnaval, ex-poesia e o ovo

Capa: Leonardo Mathias @2012
*Por Thiago Scarlata


      Estava colhendo o material para essa publicação. Pedi ao autor o envio, dentre projeto gráfico do livro (do excelente Leonardo Mathias, por sinal) e foto, uma minibiografia, como faço sempre. Então me deparo com o seguinte texto: Editor de livros, produtor cultural e ex-poeta. Editor da Editora Patuá e garçom do bar Patuscada. Esse é Eduardo Lacerda, um homem bem humorado, de singelezas e que se autodenomina “ex-poeta”. Um cara simples que nos faz refletir de que, no final das contas, todos nós (que já escrevemos um livro de poesia) somos ex-poetas. O poeta “acaba” no ato da conclusão de uma obra ou de um poema. Depois disso, recobramos nossa banalidade no cotidiano, e, contra isso nada podemos fazer. Poesia, então, seria um lugar “fora da poesia” e o que entendemos por poeta, uma pessoa absolutamente comum, antes de qualquer coisa. Aliás, Eduardo, com isso, sugere que não há “poeta”, só poesia. Sendo esta fruto da mediação do homem/mulher inserido(a) num mundo pulsante, indo de encontro a um pequeno poema de W.H.Auden: “Não pretendo de passional/enforcar-me no próprio verso/nem tampouco publicá-lo/na gramatura do ego/Não existe poeta/Só poesia”.

         Outro dia de folia (Editora Patuá, 2012) é isso. É vivência. É calor. É música, amizade e festa. O escape de temas “duros” para um plano mais “líquido”. Uma obra onde fluidez e leveza ditam o ritmo de uma dança coletiva. Essa, aliás, é uma importante marca deixada por Eduardo. A sensação que se tem é a de que este é um livro coletivo escrito por somente um autor, que insere, retira e troca (e se confunde com) seu elenco de amigas e amigos ao longo das páginas. E pelo visto, Eduardo é uma pessoa muito bem acompanhada.



Ilustrações: Leonardo Mathias @2012



         Graça e desgraça. Gargalhada e riso cínico. Infância e juventude. E vigor. Sempre vigor. O ex-poeta nos brinda com esses elementos em poemas como A Última Ceia (pág. 23): Há regras à mesa/como em um brinquedo/de quebra-cabeça./E eu não entendo/os dispostos à esquerda/dos pais./Restos do pequeno/que sentavam ao meio/da mesa (como prato/que se enche/e procura lugar entre/as pessoas)./Já não me encaixo/depois que aprendi/a olhar de lado/e sair por baixo, onde rompe com os parâmetros da família tradicional; Candelabro (pág. 36): Já à primeira vez que foi a um/cemitério, a mãe cobriu seus/olhos que choravam e sussurrou:/- Nunca acenda velas em casa,/que os espíritos acostumam/e não raro no acompanham -/Nunca mais acendeu/velas em casa, tinha era/medo dos espíritos./Teceu-lhe a vida muitos passados,/outras passagens ao cemitérios. (Das/últimas vezes já as trazia roubadas.)/Nunca quis acender velas em casa,/tinha era medo dos espíritos. Teve/depois, muitos, muitos anos depois/medo da solidão. E acenderia estes/presentes: a gift to the gost, pois/os espíritos acostumam e, não raro,/nos acompanham, apontando uma versatilidade do autor em lidar com temáticas mais “pesadas” como a solidão, dando-lhe um tom poético que é só seu, e Reflexos (pág. 53): Eu e/meus amigos,/tão sozinhos/que derramaremos/(aos litros)/ácool/aos/santos/e/espíritos./Tão sozinhos que nos indagaremos:/- Eles também nos verão em dobro?”, um toque de humor refinado e competente que sinaliza bem a pegada de grande parte da obra, que acaba assumindo, também, um efeito de resposta (mesmo que não intencional) ao moralismo nosso de cada dia.




        Como já demonstrado, neste livro nem tudo é só festa. Eduardo lida com a perda. Trata em A dentadas (pág. 78) sobre como o tempo vai nos subtraindo amigos (não necessariamente através da morte), dentes e sonhos (utopias?). Segue um trecho: Perco amigos/como/quem perde/dentes./Como/quem/ mastiga,/perco amigos..



     Contudo, como Quebrar o brinquedo/é mais divertido, frase de Orides Fontela utilizada de epílogo em Domínio (pág. 86), retornemos a face de folia do livro. Uma verve carnavalesca que transborda e como febre, contagia o leitor. Eduardo, que definitivamente não tem medo de ser feliz, encerra o livro com o capítulo Despachos, uma reunião de seis grandes poemas, todos dedicados a amigas e amigos, com títulos de nomes de Orixás, que me fez lembrar uma frase de um antigo professor, em que dizia: "No Brasil, reza-se pra todos os santos. Pratica-se todos cultos. Do candomblé ao catolicismo. Assim, temos mais chances de ter a prece atendida", que expõe bem o sincretismo religioso no país. Destaco aqui, um trecho de Oxossi, ou Farmácia de manipulação (pág. 112): Esquentar o termômetro/no fogo do fósforo:/e fabricar/febre/delírio/e/mercúrio

     Outro dia de folia não poderia ser outra coisa senão seu próprio autor. Uma ode à espontaneidade. Uma poesia que faz o caminho contrário da grande maioria: vem de fora para dentro. E para finalizar, transcrevo este que considero um dos grandes poemas brasileiros deste século, que congrega da melhor forma possível o que é o ex e futuro poeta (nos promete um novo livro há tempos) Eduardo Lacerda. Senhoras e senhores, os deixo com Ovo (pág. 93):


A manhã. A solidão. A fome
O ovo.

A tarde. A tristeza. A fome.
O ovo.

A noite. A dor. A fome.
O ovo.

Os dias todos. A fome.
O ovo.

Os anos voam. A saudade. A fome.
O ovo.

As bodas de ouro. A despedida. A fome.
O ovo.

A velhice. A morte que chega,
Oferecendo um último banquete.
Peço ovo.

Se pudesse faria tudo de novo.
Como ler de trás para frente – ovo.









Eduardo Lacerda é 

editor de livros,

produtor cultural

e ex-poeta.

Editor da Editora Patuá e 

garçom do bar Patuscada.





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*Thiago Scarlata é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, Poesia Avulsa, MOTUS, Jornal RelevO, Literatura&Fechadura, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA entre outros e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017). E-mail: scarlatatts@gmail.com / croquiliteratura@gmail.com


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

O Adágio de Crisântemos depois da ausência

*Por Thiago Scarlata



         Crisântemos depois da ausência (Giostri, 2017), do premiado poeta Airton Souza, é um livro, antes de tudo, sobre o tempo. Uma ciranda de vida e morte, de perda e saudade rodeia versos de um lirismo quase épico, que através de uma veia altamente memorial, dá vigor a uma melancolia madura, de uma beleza única: “a impiedade dos dias/caminha para dentro/de mim”.

         A impressão que se tem é que Airton não escreve exatamente em português, mas que seu texto foi traduzido de alguma língua ainda desconhecida. E aqui não falo meramente de estilo, mas de uma estrutura comunicacional distinta, com sua própria mecânica e fluido, não se tratando de enxertos de linguagem como, por exemplo, neologismos, construções herméticas, eliminações de artigos ou inversões predicativas (nada contra quem os utiliza). Os poemas de Airton soam como enigmas inscritos numa língua mista, isto é, estão em português, mas há algo ali que nos instiga. Que, apesar da leitura, vai além da leitura. O poeta parece ter alcançado, se me permitem um clichê necessário, a verdadeira voz de sua alma: “se pudéssemos eleger telhados/sombras retiravam as imagens mudas que os/espelhos sempre identificam/mão fosse o assombro dos dias”.

         A poesia airtoniana é altamente sinfônica. Um adágio em consonância com o que há de mais valioso num poeta: a capacidade de provocar reflexão, espanto ou simplesmente a extração da beleza oculta das coisas.

         “deus e sua cicatriz no olho destro/construíram o estranhável mundo/e tudo aquilo imperceptível/na afiançada língua/ardil de perda e busca”. Os poemas de Crisântemos depois da ausência me remetem muito a mesma essência e ritmo presente nas preces. Aqui, um rogo feito a um deus errante. Não precisamente um pedido ou um questionamento a este, mas a feitura de algo com a matéria-prima (quase sempre devastadora) que Ele deixou ao poeta que, diante da impossibilidade humana de reaver o amor cimentado pela morte, faz de seus poemas flores acomodadas em lápides: signo perpétuo da saudade.

         Crisântemos depois da ausência é tudo isto e mais. Ele é como uma anti-Bíblia. Uma resposta indireta ao livro sagrado, mas não por uma via óbvia, antagônica, ateísta ou qualquer outra coisa de fira a fé alheia. Diria até que são livros complementares. Airton aqui, revela apenas uma outra face de Deus. Um contorno que é só dele. Cada um, aliás, possui uma experiência distinta do divino, negando ou não a religiosidade.

         O poeta, nesta indispensável obra, tece um inventário sensitivo e biográfico. Mostra que, o passado é indissociável do presente. Que estar no mundo, é viver acumulando tanto ausências quanto novas permanências. Assume, em vários momentos, a própria voz do morto, que é a personificação do não-ser, nos deslocando para lugares em que a mera razão não é, nem nunca será, capaz de alcançar. Airton não foge ao seu ofício mais urgente: ser poeta.

         A melhor forma de terminar um texto sobre este poeta, que já se firma como um dos principais nomes da poesia no país, e a obra presente, não é com um parágrafo crítico, mas com um de seus inevitáveis poemas:


  não tenho ramagem para o amanhã
                  contrai espera pela boca
                         que não desperta risos       

             também não antecipo instantes
                      vou até depois das flores
                                   a tanger o canto
 [inaudível verdade sem importância]

                                     tingido de cova
                 lanço o tombo resguardado
           na herança de forjados ombros

                                sou só impassível!

           se nos resta ainda alguma coisa
              entre elas a mão & o mistério
                     a lavar os joelhos difusos
              a calar os murmúrios oclusos

            onde estará, depois da nervura,
                            o naufrágio que cura
                          a véspera da loucura?









Airton Souza é poeta e tem publicado 30 livros entre poemas e literatura infanto-juvenil, além de ter participação em mais de 70 antologias literárias. Venceu diversos prêmios literários, entre eles: Prêmio Proex de Literatura, promovido pela Universidade Federal do Pará – UFPA, 5º Prêmio Cannon de Poesia, Prêmio LiteraCidade de Poesia 2013, Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura 2013, IV Prêmio Proex de Arte e Cultura, com o livro de poemas manhã cerzida,  III Prêmio de Literatura da UFES, promovido pela Universidade Federal do Espírito Santo, com o livro de poemas Cortejo & outras begônias, Prêmio Nacional Machado de Assis, promovido pelo Canal 6 Editora, 1º Lugar no Prêmio LiteraCidade Prosa 2014, 1º Lugar no Prêmio Gente de Palavra 2017, organizado pela Editora Litteris, do Rio de Janeiro, 5º SFX de Literatura 2017, Prêmio Carlos Drummond de Andrade 2017, promovido pelo Sesc de Brasília, I Prêmio CAPT de Literatura 2017, obteve ainda menção honrosa no Prêmio Letrinhas do Brasil, com o livro infantil Os dias dentro da saudade, foi finalista no Prêmio Kazuá de Literatura 2016, com o livro um acenos aos girassóis e só em 2017 esteve entre os vencedores de mais de vinte prêmios literários, entre os quais: 1º Lugar no Prêmio de Poesia Cruz e Sousa, promovido pela Editora Do Carmo, de Brasília, o Prêmio Vicente de Carvalho, da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro, com o livro crisântemos depois da ausência, o Prêmio da Academia Ferroviária de Letras, o Prêmio Clóvis Meire – categoria monografia e o Prêmio Vespasiano Ramos – categoria poesia, da Academia Paraense de Letras de 2017 e o Prêmio Nacional de Literatura da Fundação Cultural do Pará 2017, com o livro o tumulto das flores. Atualmente é mestrando de Letras, pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará.



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Thiago Scarlata é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, Poesia Avulsa, MOTUS, Jornal RelevO, Literatura&Fechadura, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA entre outros e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).


sábado, 10 de fevereiro de 2018

A Harmonia do Caos em A Serenidade do Zero

*Por Thiago Scarlata
Em A Serenidade do Zero (Penalux, 2018), Alexandra Vieira de Almeida constrói um surpreendente e pressuroso apelo: precisamos voltar ao zero, ao nada.

Para além das resignificâncias do habitual, verve pictórica, quase épica de seus poemas, há neste livro uma gama de signos que não podem ser comentados pela mera via das convenções literárias, estilísticas e de linearidade lógica. Ao invés de respostas morais, acalanto poético pela via do belo (e olha que ela utiliza muito bem seu lirismo, digno de um Bruno Schulz ou uma Adélia Prado), ou a inscrição de perguntas filosóficas meio tachadas, como vemos muito por aí, Alexandra nos dá simplesmente o zero para lidarmos.

O zero da autora é uma espécie de faca que vai, ao longo do livro, cortando absolutamente tudo que é consenso, libertando a língua da relação simbiótica que hoje ela tem com a razão, como podemos notar no trecho do poema Silêncio (pág. 19): “O marasmo das palavras/faz acordar preces/sem um único som”.

Apesar de lidar com o silêncio, o “menor que o pouco” e todo esse relicário de subtrações, a poesia de Alexandra é abundante, deixando a impressão de que cada poema é, na verdade, vários ao mesmo tempo, carregando a cada estrofe e verso uma infinidade de imagens, apontando que sim, há muito que se dizer sobre o nada e a brevidade poética, neste caso e antes de tudo, seria, no mínimo, redundante.

Alexandra é profética, quase apocalíptica. Contudo, ao escrever em A Delicadeza do Silêncio (pág. 32), “O mundo já deu o que tinha de dar”, não faz disto uma ode a pura destruição, mas uma bandeira do antiperfeccionismo, do “homem do outro lado da rua/cúmplice de uma história sem grandes finais”.

Por tudo isso, quando ela escreve “não quero ser o centro nem a periferia/o vazio me basta” em Sem Histórias, Por Favor (pág. 46), não está, dessa maneira, assumindo uma postura “isenta” em relação a sociedade, ao contrário, a poeta se desloca para o núcleo das coisas, onde reside o inaudito. Essa última frase citada, inclusive, me lembrou muito uma contida num dos poemas de Adélia Prado, que diz: “Não quero faca nem queijo/quero a fome”. Essa “fome”, essa “falta” que é o “antes” é a tônica crítica e poética deste belo livro.

Os astrônomos dizem que depois da Grande Explosão, o universo começou a se expandir e não parou mais. Em A Serenidade do Zero, Alexandra propõe o contrário: um Big-Bang invertido em meio a um caos harmonizado regido pela arte, e, encarnando a voz de um menino que conversa com Deus em Gênese do Nada (pág. 69), sacramenta: “A poesia/vem antes da palavra”.



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Alexandra Vieira de Almeida é poeta, contida, cronista, resenhista e ensaísta. É Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Trabalha como professora na Secretaria de Estado de Educação  e tutora de ensino superior a distância na UFF. Publicou quatro livros de poesia: "40 poemas", "Painel" (Multifoco, 2011), "Oferta" (Scortecci, 2014) e "Dormindo no verbo" (Penalux, 2016). Neste ano, publicou seu primeiro livro infantil, "Xandrinha em: o jardim aberto" (Penalux).Publica suas poesias em antologias, revistas, jornais e alternativos por todo Brasil e também no exterior. Tem poemas traduzidos para vários idiomas. Tem um blog de literatura: www.malabarismospoeticos.blogspot.com.br




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Thiago Scarlata é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, Poesia Avulsa, MOTUS, Jornal RelevO, Literatura&Fechadura, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 e JAYME ROLDON 2011, e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017). croquiliteratura@gmail.com 

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Entre Ratos & Outras Máquinas Orgânicas: a poética sem saídas de Richard Plácido

*Por Thiago Scarlata

Após a leitura de Ratos & Outras Máquinas Orgânica, me deparei com uma comparação daquelas de jornalismo meio chulo, onde elenca-se uma figura contemporânea a uma clássica, feita seja para vender jornal, ganhar cliques a partir das manchetes,ou simplesmente falta de alusão melhor. Todavia, tanto por se tratar de um blog de literatura, que naturalmente tem poucos acessos (do mais famoso ao mais tímido), o que me livra de ser tachado de “sensacionalista” ou algo que valha, quanto pelo fato desta associação (meramente interpretativa, é verdade) se colocar inevitável ante a mim, obrigo-me de fazê-la: Richard Plácido é uma espécie de  Kafka da poesia.

Não vou prosseguir este texto gastando tempo confrontando os dois autores, mesmo porque quero me ater somente a este inquietante livro de poesia, tampouco antes perguntar ao poeta (que é meu amigo) se Kafka o influenciou, pois isso realmente não importa. “Kafkiano” é uma expressão. É a cidade, a desesperança, o espanto, a resignação, etc... Mas ninguém precisa ler Kafka para ser “kafkiano”. De qualquer modo, para além da obra geral de Kafka, separei e compartilho agora, antes de entrar no livro em questão, um breve texto do escritor tcheco muito pertinente e que pode ser tomado como uma chave importante para discorremos sobre a poética de Plácido, chamado Pequena Fábula, escrito no início do século passado:

‘“Ah”, disse o rato, “o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro”. -“Você só precisa mudar de direção”, disse o gato, e devorou-o.”

O “rato” de Richard, sendo máquina e orgânico ao mesmo tempo, é o próprio feeling. Como se o medo tivesse patas. A fome um nariz que fareja o podre, os restos indesejados. E a cidade olhos de rato, apontados pra cada beco, para o underground das coisas. Disse o autor numa entrevista: “Máquinas não tem sentimentos e o rato não tem sentimentos, mas existe uma racionalidade nele que me assusta”. Ao longo da leitura dos três capítulos do livro, “Entre Ratos”, “&” e “Outras Máquinas Orgânicas”, a figura do rato vai se aproximando da nossa. Fui, gradativamente, me identificando com este rato-homem, que através de uma poética anti-lírica, seca, stoner, cheia de punch, vai se alinhando e traçando os mesmo passos que os nossos: um caminho sem volta. Essa “bifurcação” que dá no mesmo lugar: o nada.


Richard Plácido @2017. Foto: Wilker Melo.



Em A Tal Iluminação, fica clara essa confluência entre homem, cidade e  animal, como se todos fizessem parte de algo único e inevitável. Vamos ao poema: “merda de pombo/caiu na boca do cachorro/o cachorro cagou na minha porta/não mereço tal iluminação/boca do cachorro/me mordeu na porta/o pombo se aninhou no telhado/não mereço tal iluminação/o rato roeu a asa do pombo/a pata do cachorro/e a minha boca cagada”.

Richard Plácido é daqueles poetas que dizem mais com menos (particularmente, meus prediletos). Ele, em momento algum, confunde prosa com sua poesia. É daqueles escritores que gasta mais tempo elegendo meia dúzia de palavras (certas) do que geralmente se perde escrevendo um conto, uma crônica ou um capítulo de um romance, por exemplo. É meticuloso. Me confessou que possui somente doze poemas para seu novo livro e que não tem pressa. Entre Ratos & Outras Máquinas Orgânicas segue essa linha enxuta e vigorosa, com um ritmo em que um poema puxa o outro e te leva como numa correnteza sem volta. E realmente, depois de Richard não há volta.
Ilustração: Gustavo Morais




Finalizo com um dos meus poemas prediletos do livro, de nome O Mar: “o barco sempre afunda/pode demorar/mas/afunda/afunda o barco/sempre afunda/como ontem o barco afundou/hoje pode/o barco sempre afunda/mas ontem/sempre o barco/à margem afunda/mar no mar o barco/ontem hoje o barco afundou/no fundo do barco/o mar fere o peixe-boi”.






Richard Plácido é poeta e contista. Em 2016, publicou o livro entre ratos & outras máquinas orgânicas (Imprensa Oficial Graciliano Ramos). É mestrando em Estudos Literários pelo PPGLL/UFAL, integrante do grupo de pesquisa Literatura & Utopia e do coletivo literário ELISA. Em 2015, foi aluno do Laboratório Sesc de Criação e Expressão Literária, ministrado pelo escritor Nilton Resende. Publicou nas revistas de literatura Alagunas, Mallarmargens, Gueto e Escamandro. Foi premiado em três edições do concurso de contos Arriete Vilela e na primeira edição do concurso Poesia & Utopia. Contato: richardplacido.com | placidorichard@gmail.com.



*Thiago Scarlata é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, Poesia Avulsa, MOTUS, Jornal RelevO, Literatura&Fechadura, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 e JAYME ROLDON 2011, e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).

E-mail: scarlatatts@gmail.com
Telefone: (21) 96962-2336