segunda-feira, 28 de maio de 2018

Entrevista com Rique Ferrári - Rocketman

*Por Thiago Scarlata

No meu mundo, é isso. Sozinho, numa esquina, olhando o mundo, eu tenho o maior leque de possibilidades. Eu sou o rei de meu reino, e não escravo dos afazeres cotidianos.”



Rique Ferrári é sommelier, professor e colecionador de antiguidades. Escreve poesias desde sempre, mas só agora lançou seu livro Rocket Man (Patuá, 2017), um projeto desenvolvido em viagens pela América do Sul, e todo ilustrado por grandes tatuadores brasileiros.


CROQUI – Você disse que o título do livro foi inspirado na canção homônima do Elton John. Conte-nos um pouco sobre essa escolha e como o tema dialoga com o livro.
RIQUE FERRÁRI - Dizem, e não são poucos, que o mal do século é a solidão.
No entanto, a enigmática e poderosa música é o contraponto disso.
É sobre um sujeito que vai até o espaço, no conceito máximo de solidão, para então perceber que aquele é seu lugar,
e não numa família-casa-trabalho-vida padrão.
Em suma, a canção é sobre algo em que acredito: é necessário se distanciar de tudo para, mais que se encontrar, fazer surgir o sumo de sua capacidade.
Há um poema de Gregory Corso, que diz:
Ficar
Parado
Em
Uma
Esquina
Esperando
Por
Ninguém
É poder
No meu mundo, é isso. Sozinho, numa esquina, olhando o mundo, eu tenho o maior leque de possibilidades. Eu sou o rei de meu reino, e não escravo dos afazeres cotidianos.
Posso decidir ir a um bar, correr pelas ruas, entrar num primeiro avião com destino indefinido. Algo, inclusive, que está nos meus planos para um próximo livro.
Isso é poder.
E isso permite criar projetos de total entrega, como fiz em meu livro.
E, sobre o livro: essa filosofia surge nos três capítulos:
seja nos poemas de caráter e intensidade diferentes em cada país, porque eu estava entregue a cada cultura;
seja na exaltação do cotidiano, buscando magia no mundano; que quando não existe, dane-se, nós criamos;
seja no longo monólogo final - que traz uma intensidade quase lunática.
Por fim, quero dizer que o projeto trouxe-me a mim; indubitavelmente.
Como na canção Rocket Man; fiquei liberto das amarras: sejam sociais, sejam, também literárias.

Capa: Marcelo Dalbosco @2017

CROQUI – Você viajou pela América Latina para escrever o livro. Quanto tempo isso levou, por quais países passou e de que maneira essas diferentes culturas afetaram sua escrita?
RIQUE FERRÁRI -
Entre idas e vindas o processo durou quase dois anos. Passei por Argentina, Uruguai, Chile, Peru, Bolívia e Colômbia, exatamente nessa ordem.
Nesse período também fiquei alguns dias na Amazônia, acampado com pescadores.
O mais difícil, sem dúvidas, foi encontrar formas de mergulhar nas culturas. Não basta, por exemplo, ir ao Peru e passar alguns dias em Lima.
É necessário desvendar o obtuso; como o fiz nas tribos remanescentes da cultura Inca; ficar la com eles, colher tubérculos com as anciãs cozinheiras.
O objetivo era transformar toda a beleza sensorial de cada lugar em poesia. Por isso, cada país trouxe poemas de estilos e intensidades distintas.
Em fato, eu apenas fui um tradutor de toda a riqueza sensorial típica.
Porém admito, foi um risco literário assumido: Rocketman propositalmente não tem um estilo específico; é plural, ilimitado.


CROQUI – Como é que foi para você, na posição de turista, esse trabalho quase antropológico? É possível não cair em apropriações e distorções e transformar em poesia coisas tão diferentes do nosso cotidiano sem cometer etnocentrismos?
RIQUE FERRÁRI - Muito importante falar sobre isso.
Há tempos sou admirador da América do sul, coleciono arte diversa do continente, principalmente pré-colombiana.
Ter essa base foi muito importante para escrever o capítulo.
No mais, de fato, há muitas armadilhas étnicas em todos os países.
Numa explicação simplória, o melhor a fazer é limpar da fronte tudo que é turístico.
Exemplo: Argentina, de fato, não é tango.
Mas tango é sobre sofrimento, desilusão. E então começamos a ligar pontos e chegamos, por exemplo, ao belíssimo símbolo da tristeza: o cemitério de Recoleta.
A perceber: há algo nos Argentinos em saber transformar a dor, o fim, em beleza. E isso aparece até na forma como veem futebol e elaboram sua bela gastronomia.
Penso que esse tipo de conexão acontece quando você se permite, de fato, viver a vida local: comprar o pão na esquina, ir ao mercado público, etc.
Basta um pouco de sensibilidade para deixar aflorar as percepções.
No entanto penso que todos nós, poetas, costumamos fazer esse tipo de leitura quando viajamos. Talvez algo intrínseco, nosso selo.
Buscamos a magia; e previamente sabemos que ela não costuma estar no óbvio.
No mais, havia um processo também: em todos os lugares, durante os três primeiros dias eu não escrevia; apenas labutava em busca da identidade - a verdade por trás da publicidade local.
Só então o mergulho era possível.


CROQUI – Em 2015 você passou por problemas sérios de saúde. Quando retornou a rotina, no que essa experiência afetou a sua literatura, e, a poesia foi importante para você nessa fase da sua vida?
RIQUE FERRÁRI - Esse projeto surgiu assim que recuperei minha saúde. O processo de escrita do livro também foi o processo do meu ressurgimento; por isso sua importância para mim.
E por isso a exaltação da vida, tão presente nessa obra.
Difícil colocar aqui, textualmente, a dimensão de tudo isso.
Mas sem dúvidas, a ideia de hipervalorização do “eu”, do “humano”, vem disso.
Mil perdões pelo clichê, mas precisa ser dito:
se você tem saúde, você é imbatível.


CROQUI – As ilustrações presentes no livro realmente impressionam positivamente. Como foram feitas essas escolhas e quem ou que pessoas estão por de trás delas?
RIQUE FERRÁRI - Essa foi a melhor parte.
É uma honra falar sobre isso.
Sendo bem direto: a arte mais badalada do momento é a tatuagem. E sim, tatuagem é arte, basta olhar as obras desses profissionais; os quais muitos surgiram das artes plásticas.
Aliás, muitos deles são famosíssimos; com fila de espera de dois anos, 200 mil seguidores no Instagram; profissionais como Victor Octaviano e Victor Montaghini, entre outros.
Mas digo que é a melhor parte também devido ao estímulo recíproco: nenhum tatuador cobrou por fazer sua ilustração para o livro.
Veja bem, pense em nosso país, é incrível e raro que profissionais renomados, sem tempo livre, aceitem participar de um projeto desses sem quaisquer contrapartidas. Devemos aplaudir.
Sobre o projeto: a ideia de fazer esse casamento se deu no intuito de buscar novos públicos para a poesia e, sim, valorização artística desses profissionais.
Quero dizer que me incomoda muito os poetas de sarau. Aquele mundinho fechado e a cena repetitiva:
- poetas lendo seus poemas para amigos poetas - e depois reclamando nas redes sociais que o público em geral não lê poesia.
Poxa. Que saiam das cavernas, que dialoguem com outras artes, que busquem novos públicos, como há décadas tanto se fez, por exemplo, através da música.
Esse é o movimento central de meu livro.
Por isso, além dos tatuadores, há uma parceria com atores gaúchos atuando alguns poemas do livro, que podem ser visto em um site exclusivo dessa parceria: riqueferrari.com.br
O que quero deixar de impressão na comunidade literária é isso: avante! Vamos ganhar campo. Muita gente fora dos saraus gosta de poesia, apenas precisam de estímulo.

Despedida da jovem mocinha / Victor Octaviano @2017


CROQUI – De que maneira as ilustrações dialogam com os poemas?
RIQUE FERRÁRI - Após o livro ficar pronto, defini os poemas que deveriam ser ilustrados. E busquei o casamento perfeito. 
Cada poema, com cada tatuador, combinando estilos.
Por isso um poema mais nostálgico, com as aquarelas de Victor Octaviano
Para um poema mais alegre, ingênuo, busquei a arte infantil de Dani Bianco.
E por aí vai.
Na apresentação do livro, logo nas primeiras paginas, citei o Instagram de todos os tatuadores, para que o leitor pudesse admirar esses co-autores da obra, que tanto me encantam.


CROQUI – Fale um pouco sobre cada capítulo e o que entre eles se difere e/ou há de conexão.
RIQUE FERRÁRI - Foi organizado de forma temporal. A ideia inicial era escrever um livro baseado no mergulho pela América do Sul. No entanto, quando voltei da Colômbia, último destino, estava tão estimulado que era impossível não escrever. E assim o fiz, sobre o cotidiano, sobre pequenices que me eram tão queridas. Na sequência cheguei ao poema que dá nome ao livro.
Era para ser apenas um poema desse segundo capítulo, mas tanto gostei de escrever que não consegui parar e, enfim, cresceu mais que o imaginado.
No fim é isso; um livro orgânico, que foi crescendo por um profundo amor à arte, às culturas, e, claro, à vida.


CROQUI – Quais são as suas influências literárias mais importantes e o que está lendo atualmente?
RIQUE FERRÁRI - Há algum tempo leio apenas poesia contemporânea estrangeira. Nada contra a literatura nacional, que é de altíssimo nível. Mas essa é também uma forma de pesquisar culturas distantes.
Penso que hás duas formas incríveis de conhecer uma cultura: através da literatura e da gastronomia. À distância, apenas uma é possível.
Ler um poeta de um país distante é uma forma de entender o povo e também estimular raciocínios não comuns em nossa sociedade.
Agora, por exemplo, estou lendo um livro chamado Ovelha Negra, uma coletânea da poesia Escocesa do século XX. É incrível.

Meu velho amigo cego / Victor Octaviano @2017


CROQUI – Está trabalhando em um novo livro? Caso sim, o que já nos pode adiantar?
RIQUE FERRÁRI - Estou sim, mas sem pressa. O processo do Rocketman foi muito desgastante. Escrever é um prazer, mas depois a revisão, edição, etc., é muito cansativo. O novo livro deve seguir o estilo já apresentado. Valorização cultural, busca de novos públicos e, claro, tentar trazer algum frescor.


CROQUI – O que é literatura para você?
RIQUE FERRÁRI - É um remédio. Claro que numa visão macro é muito mais que isso.
Mas em meu minúsculo universo, é um ansiolítico e também um estimulante.
Então minha saúde é dependente dessa arte; por isso há um caráter sacro e mágico na forma como leio, escrevo e divulgo a literatura.



*Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Enfermaria 6, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Avenida Sul, Incomunidade, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Poesia Primata, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016, vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017 e da SELEÇÃO PÚBLICA PARA PUBLICAÇÃO DA EDITORA URUTAU 2018. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).
E-mail: scarlatatts@gmail.com / croquiliteratura@gmail.com


quinta-feira, 24 de maio de 2018

Nuvens são rios que voam

Arte: Leonardo Mathias @2017
*Por Thiago Scarlata

Assim como os poemas, nenhuma nuvem é igual a outra. Da mesma forma, cada um desenha na nuvem, conforme a imaginação, a imagem que seu espírito bem associar. Num paralelo freudiano, talvez as nuvens sejam como os sonhos. Atribuímos a elas e suas formas uma projeção de nós mesmos ou de tudo o que nos afeta… Quem não se lembra da imagem (esteriotipada, é verdade) do psiquiatra mostrando ao paciente diversos desenhos meio obscuros e perguntando: “o que você vê nessa imagem?”?

Para além disso, outro viés interessante é o de que nuvens, também, são como lembranças: se dilatam, se deformam, tomam outros caminhos e assumem outros símbolos e significados conforme o tempo reage sobre elas. Mesmo que as cenas e momentos que guardamos permaneçam aparentemente intactas em nossa memória, a realidade é outra, como as nuvens, as lembranças sempre serão baseadas em escolhas feitas pelo nosso subconsciente, que nada mais é do que uma substância que permanece após diversas filtragens. O que fica, é o que julgamos importante. Sejam os episódios bons ou ruins. Vamos mudando. Somos como as nuvens. Escrevemos poemas, que por sua vez também vão se modificando, enfim, identidade é algo que talvez não seja um ponto de chegada, mas um conceito mais aberto, sobretudo no que se refere ao fazer artístico.

Como me disse a própria Carla Andrade, Caligrafia das Nuvens (Patuá, 2017) é um livro composto de lembranças. Lembranças de infância, ainda em Belo Horizonte – sua cidade natal -, de Brasília, que impelidas por seu eu lírico se fazem presente e o que há de intransitório e de presença nesses trajetos que a vida inscreve, e, como disse Fernando Pessoa, “quem muda de casa, muda de país”.

Caligrafia das Nuvens é um livro bem eclético. Há lirismo, humor e erotismo nele. Entretanto, Carla, que parece ter a caligrafia já bem treinada e definida para poesia, não faz da obra uma ciranda disforme e aleatória. Cada poema foi competentemente posto numa posição ideal, o que deu ao livro um ritmo instigante, que não cansa o leitor, ao contrário, a poeta escalou os poemas numa formação que não me fez em nenhum momento ter vontade de colocar o marca-página, interrompendo e adiando sua leitura para um outro momento.

Com uma linguagem guiada pela coloquialidade e com poemas, em sua maioria, de tiro mais curto, há também na obra, conteúdos com uma atmosfera mais onírica, o que faz uma interessante ligação com a rede sensorial e memorial que a própria autora sugeriu e construiu. Durante a leitura de alguns poemas, por vezes não sabemos se são memórias do mundo real ou de algum sonho. Ou seja, todos esses elementos, (aparentemente fragmentos distintos entre si): saudosismo, amor, riso, pecado, afeto, banal, ausência, revolta, delicadeza, peso, instinto e delírio, sempre fazem parte de uma coisa só. Essa coisa, aliás, somos nós. Nossos poemas e nossas nuvens imaginadas. Carla Andrade é uma poeta muito bem resolvida. Sabe o que, quando e como falar, fazendo de Caligrafia das Nuvens, leitura mais do que aconselhável pra quem gosta de poesia. Melhor prova disso são os poemas que selecionei e que em seguida compartilho com vocês:


Moinho

Se amanhecer:
o prato esmaltado
e o sangue depenado
em cova rasa,
a galinha mais lenta.

As linguiças enforcadas
expostas por seus crimes
no estandarte da cozinha,
o porco mais gordo.

Lambança do chiqueiro,
a lavagem – cevada de
bicho de pé, berne, barbeiro,
sanguessuga.

A descontinuidade da vida
resolvida no erotismo do moinho,
no gozo exterminador do moedor.

A violência da roça.
É disso que preciso.


Terra de Gigantes

Acostumada
a olhar formigas.
Hoje
elas olham
para mim.
Me reduzi
A
Gente
Dita
Grande.


Arqueologia

Só quero agradecer
por entrar em mim
e tirar aquele homem
fossilizado em minha carne
há 15 anos, 16 anos.


We can do it

na garupa de um rinoceronte branco
escorrego dedos na sua bunda
mais ma vez a mordo
como se fosse achar
um bicho de goiaba.

Sua bundinha
nas minhas mãos
um corvo encolhido.

Cravo meus dedos
enguiçados de desejo:
áspero é sempre meu rodopio
no meu conta-gotas

Espreguiço minha língua
no contorno de sua vir(ilha)
à espera do rio Tejo.

Flanar em várias encarnações,
e na janela de Botero,
fumar entre uma fresta
e festa de penetra.

Assim como nossos monólogos,
você não me deixa
colocar o dedo onde devo...






Carla Andrade Bonifácio Gomes é de Belo Horizonte de 77. Está em Brasília desde 2000, e atua como jornalista e poeta na capital. Tem quatro livros publicados: Caligrafia das Nuvens (Patuá, 2017), Conjugação de Pingos de Chuva (LGE), Artesanato de Perguntas (7Letras) e Voltagem (7letras). Inquieta e arteira, morou um tempo na Califórnia, onde tentou aprender até a surfar e falar inglês fluente. Herdou um grande talento da tradicional família mineira: a arte de boiar e atravessar pinguelas.



*Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Enfermaria 6, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Avenida Sul, Incomunidade, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Poesia Primata, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016, vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017 e da SELEÇÃO PÚBLICA PARA PUBLICAÇÃO DA EDITORA URUTAU 2018. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).
E-mail: scarlatatts@gmail.com / croquiliteratura@gmail.com