*Por
Thiago Scarlata
“No
meu mundo, é isso. Sozinho, numa esquina, olhando o mundo, eu tenho
o maior leque de possibilidades. Eu sou o rei de meu reino, e não
escravo dos afazeres cotidianos.”
Rique
Ferrári é
sommelier, professor e colecionador de antiguidades. Escreve poesias
desde sempre, mas só agora lançou seu livro Rocket
Man (Patuá,
2017),
um
projeto desenvolvido em viagens pela América do Sul, e todo
ilustrado por grandes tatuadores brasileiros.
CROQUI – Você disse que o título do livro foi inspirado na canção homônima do Elton John. Conte-nos um pouco sobre essa escolha e como o tema dialoga com o livro.
RIQUE
FERRÁRI - Dizem, e não são poucos, que o mal do século é
a solidão.
No
entanto, a enigmática e poderosa música é o contraponto disso.
É
sobre um sujeito que vai até o espaço, no conceito máximo de
solidão, para então perceber que aquele é seu lugar,
e
não numa família-casa-trabalho-vida padrão.
Em
suma, a canção é sobre algo em que acredito: é necessário se
distanciar de tudo para, mais que se encontrar, fazer surgir o sumo
de sua capacidade.
Há
um poema de Gregory Corso, que diz:
Ficar
Parado
Em
Uma
Esquina
Esperando
Por
Ninguém
É
poder
No
meu mundo, é isso. Sozinho, numa esquina, olhando o mundo, eu tenho
o maior leque de possibilidades. Eu sou o rei de meu reino, e não
escravo dos afazeres cotidianos.
Posso
decidir ir a um bar, correr pelas ruas, entrar num primeiro avião
com destino indefinido. Algo, inclusive, que está nos meus planos
para um próximo livro.
Isso
é poder.
E
isso permite criar projetos de total entrega, como fiz em meu livro.
E,
sobre o livro: essa filosofia surge nos três capítulos:
seja
nos poemas de caráter e intensidade diferentes em cada país, porque
eu estava entregue a cada cultura;
seja
na exaltação do cotidiano, buscando magia no mundano; que quando
não existe, dane-se, nós criamos;
seja
no longo monólogo final - que traz uma intensidade quase lunática.
Por
fim, quero dizer que o projeto trouxe-me a mim; indubitavelmente.
Como
na canção Rocket Man; fiquei liberto das amarras: sejam sociais,
sejam, também literárias.
Capa: Marcelo Dalbosco @2017 |
CROQUI
– Você viajou pela América Latina para escrever o livro.
Quanto tempo isso levou, por quais países passou e de que maneira
essas diferentes culturas afetaram sua escrita?
RIQUE
FERRÁRI -
Entre
idas e vindas o processo durou quase dois anos. Passei por Argentina,
Uruguai, Chile, Peru, Bolívia e Colômbia, exatamente nessa ordem.
Nesse
período também fiquei alguns dias na Amazônia, acampado com
pescadores.
O
mais difícil, sem dúvidas, foi encontrar formas de mergulhar nas
culturas. Não basta, por exemplo, ir ao Peru e passar alguns dias em
Lima.
É
necessário desvendar o obtuso; como o fiz nas tribos remanescentes
da cultura Inca; ficar la com eles, colher tubérculos com as anciãs
cozinheiras.
O
objetivo era transformar toda a beleza sensorial de cada lugar em
poesia. Por isso, cada país trouxe poemas de estilos e intensidades
distintas.
Em
fato, eu apenas fui um tradutor de toda a riqueza sensorial típica.
Porém
admito, foi um risco literário assumido: Rocketman propositalmente
não tem um estilo específico; é plural, ilimitado.
CROQUI
– Como é que foi para você, na posição de turista, esse
trabalho quase antropológico? É possível não cair em apropriações
e distorções e transformar em poesia coisas tão diferentes do
nosso cotidiano sem cometer etnocentrismos?
RIQUE
FERRÁRI - Muito importante falar sobre isso.
Há
tempos sou admirador da América do sul, coleciono arte diversa do
continente, principalmente pré-colombiana.
Ter
essa base foi muito importante para escrever o capítulo.
No
mais, de fato, há muitas armadilhas étnicas em todos os países.
Numa
explicação simplória, o melhor a fazer é limpar da fronte tudo
que é turístico.
Exemplo:
Argentina, de fato, não é tango.
Mas
tango é sobre sofrimento, desilusão. E então começamos a ligar
pontos e chegamos, por exemplo, ao belíssimo símbolo da tristeza: o
cemitério de Recoleta.
A
perceber: há algo nos Argentinos em saber transformar a dor, o fim,
em beleza. E isso aparece até na forma como veem futebol e elaboram
sua bela gastronomia.
Penso
que esse tipo de conexão acontece quando você se permite, de fato,
viver a vida local: comprar o pão na esquina, ir ao mercado público,
etc.
Basta
um pouco de sensibilidade para deixar aflorar as percepções.
No
entanto penso que todos nós, poetas, costumamos fazer esse tipo de
leitura quando viajamos. Talvez algo intrínseco, nosso selo.
Buscamos
a magia; e previamente sabemos que ela não costuma estar no óbvio.
No
mais, havia um processo também: em todos os lugares, durante os três
primeiros dias eu não escrevia; apenas labutava em busca da
identidade - a verdade por trás da publicidade local.
Só então o mergulho era possível.
CROQUI
– Em 2015 você passou por problemas sérios de saúde. Quando
retornou a rotina, no que essa experiência afetou a sua literatura,
e, a poesia foi importante para você nessa fase da sua vida?
RIQUE
FERRÁRI - Esse projeto surgiu assim que recuperei minha
saúde. O processo de escrita do livro também foi o processo do meu
ressurgimento; por isso sua importância para mim.
E
por isso a exaltação da vida, tão presente nessa obra.
Difícil
colocar aqui, textualmente, a dimensão de tudo isso.
Mas
sem dúvidas, a ideia de hipervalorização do “eu”, do “humano”,
vem disso.
Mil
perdões pelo clichê, mas precisa ser dito:
se
você tem saúde, você é imbatível.
CROQUI
– As ilustrações presentes no livro realmente impressionam
positivamente. Como foram feitas essas escolhas e quem ou que pessoas
estão por de trás delas?
RIQUE
FERRÁRI - Essa foi a melhor parte.
É
uma honra falar sobre isso.
Sendo
bem direto: a arte mais badalada do momento é a tatuagem. E sim,
tatuagem é arte, basta olhar as obras desses profissionais; os quais
muitos surgiram das artes plásticas.
Aliás,
muitos deles são famosíssimos; com fila de espera de dois anos, 200
mil seguidores no Instagram; profissionais como Victor Octaviano e
Victor Montaghini, entre outros.
Mas
digo que é a melhor parte também devido ao estímulo recíproco:
nenhum tatuador cobrou por fazer sua ilustração para o livro.
Veja
bem, pense em nosso país, é incrível e raro que profissionais
renomados, sem tempo livre, aceitem participar de um projeto desses
sem quaisquer contrapartidas. Devemos aplaudir.
Sobre
o projeto: a ideia de fazer esse casamento se deu no intuito de
buscar novos públicos para a poesia e, sim, valorização artística
desses profissionais.
Quero
dizer que me incomoda muito os poetas de sarau. Aquele mundinho
fechado e a cena repetitiva:
-
poetas lendo seus poemas para amigos poetas - e depois reclamando nas
redes sociais que o público em geral não lê poesia.
Poxa.
Que saiam das cavernas, que dialoguem com outras artes, que busquem
novos públicos, como há décadas tanto se fez, por exemplo, através
da música.
Esse
é o movimento central de meu livro.
Por
isso, além dos tatuadores, há uma parceria com atores gaúchos
atuando alguns poemas do livro, que podem ser visto em um site
exclusivo dessa parceria: riqueferrari.com.br
O
que quero deixar de impressão na comunidade literária é isso:
avante! Vamos ganhar campo. Muita gente fora dos saraus gosta de
poesia, apenas precisam de estímulo.
Despedida da jovem mocinha / Victor Octaviano @2017 |
CROQUI
– De que maneira as ilustrações dialogam com os poemas?
RIQUE
FERRÁRI - Após o livro ficar pronto, defini os poemas que
deveriam ser ilustrados. E busquei o casamento perfeito.
Cada
poema, com cada tatuador, combinando estilos.
Por
isso um poema mais nostálgico, com as aquarelas de Victor Octaviano
Para
um poema mais alegre, ingênuo, busquei a arte infantil de Dani
Bianco.
E
por aí vai.
Na
apresentação do livro, logo nas primeiras paginas, citei o
Instagram de todos os tatuadores, para que o leitor pudesse admirar
esses co-autores da obra, que tanto me encantam.
CROQUI
– Fale um pouco
sobre cada capítulo e o que entre eles se difere e/ou há de
conexão.
RIQUE
FERRÁRI - Foi organizado de forma temporal. A ideia inicial
era escrever um livro baseado no mergulho pela América do Sul. No
entanto, quando voltei da Colômbia, último destino, estava tão
estimulado que era impossível não escrever. E assim o fiz, sobre o
cotidiano, sobre pequenices que me eram tão queridas. Na sequência
cheguei ao poema que dá nome ao livro.
Era
para ser apenas um poema desse segundo capítulo, mas tanto gostei de
escrever que não consegui parar e, enfim, cresceu mais que o
imaginado.
No
fim é isso; um livro orgânico, que foi crescendo por um profundo
amor à arte, às culturas, e, claro, à vida.
CROQUI
– Quais são as suas influências literárias mais
importantes e o que está lendo atualmente?
RIQUE
FERRÁRI - Há algum tempo leio apenas poesia contemporânea
estrangeira. Nada contra a literatura nacional, que é de altíssimo
nível. Mas
essa é também uma forma de pesquisar culturas distantes.
Penso
que hás duas formas incríveis de conhecer uma cultura: através da
literatura e da gastronomia. À distância, apenas uma é possível.
Ler
um poeta de um país distante é uma forma de entender o povo e
também estimular raciocínios não comuns em nossa sociedade.
Agora,
por exemplo, estou lendo um livro chamado Ovelha Negra, uma coletânea
da poesia Escocesa do século XX. É incrível.
Meu velho amigo cego / Victor Octaviano @2017 |
CROQUI
– Está trabalhando em um novo livro? Caso sim, o que já
nos pode adiantar?
RIQUE
FERRÁRI - Estou sim, mas sem pressa. O processo do Rocketman
foi muito desgastante. Escrever é um prazer, mas depois a revisão,
edição, etc., é muito cansativo. O
novo livro deve seguir o estilo já apresentado. Valorização
cultural, busca de novos públicos e, claro, tentar trazer algum
frescor.
CROQUI
– O que é literatura para você?
RIQUE
FERRÁRI - É um remédio. Claro que numa visão macro é
muito mais que isso.
Mas
em meu minúsculo universo, é um ansiolítico e também um
estimulante.
Então
minha saúde é dependente dessa arte; por isso há um caráter sacro
e mágico na forma como leio, escrevo e divulgo a literatura.
*Thiago
Scarlata
(1989) é poeta, músico, escritor e editor do Blog
Literário Croqui.
Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e
também nas Revistas Gueto,
Enfermaria
6,
Escamandro,
Mallarmagens,
Monolito,
Avenida
Sul,
Incomunidade,
Janelas
em Rotação,
Poesia
Brasileira Hoje,
O
poema do poeta, Poesia Avulsa,
Literatura&Fechadura,
Poesia Primata, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio
Braziliense, Jornal RelevO, além
de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO
SESC DE LITERATURA 2016, vencedor do CONCURSO
MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017 e
da SELEÇÃO PÚBLICA PARA PUBLICAÇÃO DA EDITORA URUTAU 2018.
É autor do livro de poesia “Quando
Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo”
(Editora
Multifoco,
2017).
E-mail: scarlatatts@gmail.com / croquiliteratura@gmail.com