sábado, 9 de junho de 2018

Entrevista com Rafael Gallo - Rebentar

*Por Thiago Scarlata




Rafael Gallo nasceu em São Paulo em 1981. É autor de Rebentar (Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2016, e de Réveillon e outros dias (Record, 2012), livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2011/2012. Tem ainda contos publicados em diversas revistas e antologias, como a Desassossego (Mombak, 2014) e a Machado de Assis Magazine (Biblioteca Nacional, 2012), que publicou tradução do conto Réveillon para o espanhol.



CROQUI – Rebentar não adotou uma estrutura linear/tradicional, onde o mote principal seria “prender o leitor pela curiosidade de saber se a mãe acharia ou não o filho”. Logo no início é dado o que seria tido como “o fim da história”: Ângela desiste de procurar Felipe, depois de longos anos de devoção exclusiva à sua procura. Como se deu a decisão de adotar esse ótimo modelo?
RAFAEL GALLO – Veio justamente disso que você falou, de não querer a história direcionada para o suspense, nem por mim nem pelo olhar dos leitores. Histórias de desaparecimento costumam ter essa abordagem e, desde que comecei a pensar no Rebentar, sabia que ele não seria sobre a expectativa do reencontro ou não. Para mim, a história é sobre Ângela, a mãe, sobre o processo íntimo – e prático – dela, de descontruir e reconstruir o vínculo com esse filho, já perdido há anos. Não queria que os leitores se distraíssem desse “coração” da história, por conta de uma expectativa que não deveria estar ali. Por isso, a pergunta é eliminada de imediato, como se o livro logo dissesse: “Não, Felipe não será reencontrado; agora podemos falar do que importa aqui?”


CROQUI – Houve um processo de pesquisa para a composição do romance? Caso sim, como foi essa experiência?
RAFAEL GALLO – Sim, precisei pesquisar bastante, pois não conhecia praticamente nada do universo de crianças desaparecidas. Comecei pelas leituras - tanto de ficções quanto de materiais jornalísticos ou acadêmicos - mas o mais importante, sem dúvida, foram as conversas que tive com mães de filhos desaparecidos. O livro não teria sido o mesmo sem o que aprendi delas, devo muito, muito mesmo, a essa generosidade.


CROQUI – Discorra um pouco sobre a convenção do “amor incondicional de mãe” e o que isso carrega consigo.
RAFAEL GALLO – O termo “amor incondicional” me incomoda um pouco. Não lembro se algo assim é mencionado diretamente no livro, mas provavelmente é uma ideia que permeia a história. Não vejo o amor como algo desligado de condições, algo gratuito e sem razão de ser ou de permanecer. Talvez alguns pais e mães sintam isso, que chamam de amor incondicional, logo ao nascimento de seus bebês, até por uma questão de química do corpo: a preservação da espécie e seus recursos fisiológicos (bom, nesse caso, continua havendo uma condição, biológica). Por outro lado, já ouvi de muitas mães que a vinculação com o bebê não aconteceu de imediato, parecia até estranho não ter esse “amor” (quando é algo normal, a pressão sobre as mães é que é doentia). Para mim, o amor precisa ser tecido fio a fio, construído tijolo a tijolo, não tratado como algo que cai do céu. Aliás, acho que grande parte de sua força e beleza vêm daí, de não ser gratuito, como se fosse uma mágica alheia a quem ama ou é amado. O amor é o que se faz dele, o tempo todo. Tem de ser algo “esculpido” pelos amados e amantes, erigido e mantido de mãos dadas. Acredito em amores que ativamente fazem jus a si mesmos, que se formam por dedicação e cuidado, por entregas e compartilhamentos, por exigências também. Pelo zelo com as condições em que são cultivados, não por considerarem que essas condições são irrelevantes. E, talvez, Rebentar carregue essa ideia. Algo como “ainda que você seja meu filho, para te amar eu preciso te conhecer, preciso saber quem você é”.

Foto: Nádia Maria / Capa: Frede Tizzot


CROQUI – Obviamente que só quem passou ou passa por uma dessas situações sabe a dor real, mas na sua visão, é pior ter um filho desaparecido ou, tendo-o ao lado, perdê-lo para a morte?
RAFAEL GALLO – Eu não poderia mesmo dizer, talvez só quem passou por algo assim possa. Bom, acho que nem mesmo quem passou poderia apontar uma delas como pior do que a outra. Mas o desaparecimento tem algumas singularidades muito dolorosas, como o fato de a ausência ser tão completa quanto a da morte (você não tem nada mais da pessoa consigo, nenhuma possibilidade de contato), porém sem o fechamento que a morte, ao menos, dispõe. Depois que alguém próximo se foi pelo falecimento, só resta seguir adiante, de alguma forma. No desaparecimento, esse “depois” não se forma, nunca chega. Você pode ficar para sempre no “antes”, na iminência de a pessoa ser reencontrada. Quando não é (e isso acontece, de certa forma, todos os dias), o luto se renova, ele não tem fim, não tem um ponto de repouso. Você sequer pode chorar a perda por completo, porque ela sempre ameaça deixar de ser perda. É uma ferida que nunca chega ao período de cicatrização.


CROQUI – Um dos pontos fortes tratados pelo livro é o de como a condição social colabora para um desaparecimento ser tratado como um caso, ou como só mais um número nas estatísticas, configurado no exemplo dos personagens Felipe e Mateus. Esse realmente foi um dos debates que você também quis levantar?
RAFAEL GALLO – Sim. No caso desses dois desaparecimentos, quis colocar em jogo como pessoas (crianças ou adultos) têm tratamentos completamente diferentes, dependendo da classe social a que pertencem. Isso não é só no desaparecimento, é em tudo. Especialmente em um país tão desigual quanto o nosso, se você tem muito dinheiro vive em um “mundo” absolutamente discrepante de quem carece de poder. Nem as leis funcionam da mesma maneira. No caso de desaparecidos, isso se mantém, acentua-se: uma criança de classe média-alta desaparecida se torna notícia, comove o país, mobiliza a todos; crianças da periferia desaparecem e nada é dito. São dezenas de milhares de desaparecidos por ano no Brasil, de quantos a gente ouve falar?
A cena em que a mãe do Mateus é rechaçada e, depois, ameaçada pelos policiais, somente por exigir que seu filho seja buscado devidamente, não é algo que inventei. Repete-se com muitas mães, especialmente as negras e da periferia. Aquela própria ideia de que é preciso esperar 24 horas para começar as buscas, tão difundida, é falsa; não há nada disso na lei, é só uma praxe. Mas deixe o filho de alguém rico e famoso desaparecer, para vermos se os policias vão dizer a esses pais que têm de esperar tudo isso para começarem a se mexer. Nada disso, em menos de cinco minutos já teremos helicópteros sobrevoando a cidade, acompanhados pelas câmeras de TV, apelos em toda mídia, etc. Enquanto isso, mães da periferia têm de escutar que suas filhas pré-adolescentes desaparecidas devem estar em algum motel, escondidas, que seus filhos meninos devem estar metidos com o tráfico, e irem embora caladas para não receberem ameaças de prisão por desacato a autoridade.


CROQUI – Achamos a inclusão da expressão “rebentar” em vários momentos do livro algo bem interessante. O que há de metáfora, de concreto e como surgiu essa escolha do título do seu livro?
RAFAEL GALLO – Há algumas palavras e imagens que quis repetir ao longo do livro, usando-os como uma espécie de “material temático”, algo típico da música. Menções a espelhos, às dores nos joelhos de Ângela, ao mar e a outros elementos são retomadas a todo momento. A palavra “rebentar” foi uma das primeiras que me surgiu, desde os rascunhos. Ainda não tinha o título bem definido, mas já me atraíam seus sentidos de “rebento” (ligado ao filho) e de “rompimento”, especialmente em relação ao processo de Ângela, de romper com a condição de “mãe de filho desaparecido”. Enquanto pensava em tudo isso e tentava encontrar os outros elementos da história, me veio à cabeça a imagem (como se visse a cena de um filme) dessa mulher diante do mar, em algum canto isolado, meditando sobre sua vida. Então, pensei também no rebentar das ondas que ela via. O título, assim como a personagem e a introdução do livro, se delinearam melhor a partir dessa imagem primordial.


CROQUI – O quarto intacto por mais de 30 anos e sua transformação simbólica numa espécie de altar, onde o tempo é congelado no intuito de conservar toda lembrança da criança desaparecida, e o recurso do envelhecimento digital com base na antiga foto. Como, na sua visão, se dá esse paralelo, bem como suas consequências na vida dos pais?
RAFAEL GALLO – A história do quarto foi baseada em uma lembrança, mais antiga, de certa matéria que vi em uma revista (uma pena não tê-la guardado), falando sobre pais que perderam seus filhos jovens, focada especialmente nos quartos deles, nessa manutenção simbólica dos pertences dos mortos. As fotos eram de cortar o coração: estavam todos arrumados como se a criança ou adolescente ainda vivesse ali, estivesse prestes a voltar. Além disso, os pais instalavam certos marcadores de tempo paralisados: relógios ou calendários parados na hora ou dia em que o filho se foi, coisas assim. Um dos quartos, não me esqueço disso, tinha uma tabela de basquetebol, na qual o pai instalou uma haste e prendou nela a bola, criando o efeito de essa bola estar parada no ar, para sempre prestes a cair no cesto.
A história do envelhecimento digital também foi curiosa, porque eu já tinha a ideia de utilizá-lo na história, mas não pensava em proporcioná-lo tanto peso. Seria apenas mais uma das coisas pelas quais Ângela tem de passar. Só que em uma das entrevistas que fiz, com a mãe de uma garota desaparecida, ela me mostrou o retrato que criaram da filha dela, mais de 20 anos depois do desaparecimento. Primeiro, essa mãe me mostrou a foto que carregava da menina, em suas buscas: os olhos bem arredondados, cabelos cheios, aquele rosto ainda infantil em uma pré-adolescente. Depois, ela me mostrou a simulação: a face adulta, bem mais velha e ríspida, de olhos duros, cabelos reduzidos, maxilar pontiagudo, completamente diferente. Foi um choque para mim, naquele momento, imagina para os pais. Perguntei como foi receber aquele retrato, ela me contou ter tido uma depressão comparável somente à época do desaparecimento. Porque é perder a filha mais uma vez, sabe? É ter sequestrada aquela imagem que se tinha dela, ser confrontada com a realidade de que aquela filha não existe mais, o que talvez ainda exista é essa pessoa irreconhecível, uma estranha. O que é seu filho, quando está transformado em um estranho? Essa se tornou uma questão fundamental de Rebentar.


CROQUI - Gustavo e Ângela permanecem juntos após o desaparecimento do filho. Conte-nos um pouco da sua escolha de, neste caso, ir contra as estatísticas, que apontam que 80% dos casais se separam quando ocorre um desaparecimento de filhos e filhas. Otávio era um personagem fundamental para a trama ou houve outras motivações por de trás da sua escolha?
RAFAEL GALLO – Além de o Otávio ser fundamental em alguns momentos, eu queria que a Ângela tivesse um universo ao redor dela, o qual, afora o filho ausente, estivesse funcionando de forma razoável. Não queria uma vida devastada, com casamento arruinado, solidão, parentes afastados, crises financeiras, etc. Porque, assim, ela teria um monte de problemas pra resolver, não somente o filho. Queria que ela fosse essa personagem que tem tudo à sua espera, mas que precisa sair de dentro desse lugar escuro onde está. A possibilidade de restauração está bem ali, embora pareça muito distante. Muitas vezes, pessoas e personagens são assim: de todas as peças do grande quebra-cabeças da vida, a atenção fica toda naquela que falta, os sentimentos mais intensos vêm da lacuna. Claro que no caso de uma mãe de filho desaparecido isso é absolutamente compreensível, até esperado, mas eu queria ter esse caminho possível de volta. E o Otávio, nisso também, é fundamental.


CROQUI – Conte-nos um pouco sobre como foi a sua transição do conto para o romance. Resumidamente, o que para você foi permanência e o que surgiu de novos elementos na sua escrita por conta da mudança de gênero literário?
RAFAEL GALLO – Eu acho que a diferença principal – e assustadora, a princípio (rs) – foi a medida das coisas, o tamanho dos gestos narrativos. Em um conto, você sabe que a história não vai chegar muito longe daquele ponto de partida; no romance, as ramificações vão a se perder de vista. É difícil se acostumar com isso no começo, habituar-se a uma escrita que você não chega nem perto de compreender o todo. Mas, aos poucos, fui me acostumando às novas dimensões das cenas, cenários e outros aspectos. Mais do que isso, gostei de ter esse “espaço” para explorar melhor certos elementos da história. Por exemplo, em um conto eu provavelmente teria de escolher apenas um “objeto” para simbolizar a paralisia do tempo, relativa à ausência do filho. Mas no romance eu posso ter vários: o quarto, a fachada da casa, os porta-retratos, o abandono profissional da Ângela, o casamento, os outros familiares, etc.
O que permanece, acho, além de questões estilísticas é aquilo que falei no começo: o cuidado com o “coração” da história, em não perdê-lo de vista, não se desgarrar dele, seja ao atravessar 10 páginas ou 400. De certa forma, me parece que o Rebentar é um pouco como um conto gigante, ele orbita ao redor de um núcleo muito próximo o tempo todo.


CROQUI – Quais são as suas influências literárias mais importantes e o que está lendo atualmente?
RAFAEL GALLO – Minhas influências têm mudado bastante ao longo do tempo. Começaram principalmente com Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Julio Cortázar e Guimarães Rosa, passaram por Di Cavalcanti e Tom Jobim, Michael Haneke e Magritte, Debussy e Chico Buarque, Stanley Kubrick e Noel Rosa, tantos outros. Hoje, além desses, há muito da literatura contemporânea, especialmente brasileira e portuguesa. Adriana Lisboa, João Carrascoza, Maurício de Almeida, Inês Pedrosa, José Luís Peixoto, Dulce Maria Cardoso, Gonçalo M. Tavares, Afonso Cruz, esses autores têm feito a minha cabeça.


CROQUI – Está trabalhando em um novo livro? Caso sim, o que já nos pode adiantar?
RAFAEL GALLO – Estou trabalhando em dois, na verdade. Tenho um de contos praticamente pronto, com as histórias que tenho escrito desde que publiquei o Réveillon e outros dias, em 2012. E estou trabalhando em um romance também. Digo que, se Rebentar é o “livro da mãe”, esse próximo é o “livro do pai”. É outra história, são outros personagens, mas alguns dos temas mais subterrâneos do Rebentar estão ali. E quis voltar meus olhos para questões mais tipicamente masculinas: o analfabetismo afetivo, a cobrança por sucesso e desempenho no ofício, o autoritarismo, etc.


CROQUI – Possui projetos literários para além de um novo livro, bem como palestras, cursos ou eventos dos quais participara?
RAFAEL GALLO – Eu dou oficinas de escrita de vez em quando. Acabei de terminar minha participação no CLIPE, o Curso Livre de Preparação de Escritores, da Casa das Rosas, e fiquei impressionado com a qualidade de alguns dos trabalhos de lá. Pretendo dar mais oficinas em breve, mas ainda não há datas confirmadas. Esse ano – de crise, Copa e eleições – está bem parado de eventos, não tenho nenhum em vista, então estou aproveitando para focar bastante na escrita do meu romance. Sou bem demorado para escrever, preciso investir muito no tempo de trabalho.


CROQUI – O que é literatura para você?
RAFAEL GALLO – Eu oscilo entre a vontade, por um lado, de responder algo grandioso - como se a literatura salvasse vidas ou fosse um ativismo político impactante – e, por outro lado, de responder que a literatura é só mais uma das pequenas partes que formam o grande caos do mundo, talvez uma das que têm menos peso. E quando essas dúvidas em relação à literatura assaltam minha cabeça de escritor, volto sempre a pensar como leitor, que é o lugar das fundações da literatura para mim. E, enquanto leitor, a literatura foi, para mim, uma das grandes fontes de formação afetiva e intelectual. Me apresentou novas possibilidades de se ver o mundo, de perceber que a vida pode ser muito diferente da que me impunham, pode ter muitas outras maneiras de se realizar além do meu pequeno e restrito universo. Acho que isso é a literatura (mas também muitas outras coisas podem sê-lo, como a música ou o esporte, para alguns): uma espécie de abertura, como se antes vivêssemos em uma casa fechada, mas de repente pudéssemos abrir janelas para vislumbrar outros horizontes, receber outras luzes e brisas, além do ar viciado da casa fechada. E isso, de certa forma, é fundamental. Se todos os indivíduos tivessem algo assim, tão potente e transformador, o coletivo poderia ser diferente.


*Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Enfermaria 6, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Avenida Sul, Incomunidade, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Poesia Primata, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016, vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017 e da SELEÇÃO PÚBLICA PARA PUBLICAÇÃO - EDITORA URUTAU 2018. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).
E-mail: scarlatatts@gmail.com / croquiliteratura@gmail.com



segunda-feira, 4 de junho de 2018

Entrevista com Franklin Carvalho - Céus e Terra

*Por Thiago Scarlata

Franklin Carvalho é jornalista, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho e jornalista na Assessoria de Imprensa do Tribunal do Regional do Trabalho. O baiano é autor de dos livros de contos independentes “Câmara e Cadeia” (2004) e “O Encourado” (2009). Em 2015, recebeu o 2º lugar no Prêmio de Jornalismo Barbosa Lima Sobrinho - Direitos Humanos, da Seção Bahia da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-BA), na categoria Webjornalismo. Em 2016, o seu romance Céus e Terra venceu o Prêmio Nacional de Literatura do Serviço Social do Comércio (Sesc), o mais importante do Brasil para autores inéditos na categoria. Em 2017, participou da comitiva brasileira na Primavera Literária Brasileira e no Salão do Livro de Paris, ambos os eventos realizados na capital francesa. No mesmo ano, venceu o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Autor Estreante com mais de 40 anos, e foi à Feira do Livro de Guadalajara (México), como representante do Brasil.

CROQUI – Fale-nos um pouco do processo de criação e desenvolvimento do personagem Galego.
FRANKLIN CARVALHO - Galego já surgiu como está lá no livro, um menino cheio de potências mas vulnerável, e com grandes expectativas em relação aos homens. É uma criança como as que eu vi na minha infância, com desafios de sobrevivência, obrigados a serem criativos para brincar, para comer, para crer e até para morrer. Vivo ou morto, prepondera a necessidade de inclusão, de encontro. Considerei importante manter essa sensação de grande medo das crianças, que eu mesmo já senti no meio do mato, crendo que seria resgatado. Não raro Galego cita casos de garotos que se perderam, e lembra do que seria o maior dos infortúnios, permanecer sozinho.

CROQUI – A questão da religiosidade/espiritualidade é muito forte na obra. Discorra como foi para você tratar sobre o sincretismo religioso brasileiro no romance. Esse fator estava presente desde as primeiras ideias de composição do livro?
FRANKLIN CARVALHO - Havia uma percepção justamente do desconforto que é a espiritualidade brasileira, por si só muito indefinida, confusa, cheia de culpas e insegura. É algo que não chamo de sincretismo, mas de um misticismo ao mesmo tempo reprimido, estigmatizado e hipertrofiado. Foi só com o livro pronto que encontrei uma definição mais exata do que me incomodava, na pesquisa do antropólogo espanhol Oscar Calavia Saez, que estudou manifestações religiosas em cemitérios brasileiros. Ele afirma que nossa população tem à disposição um panteão muito vasto (Jesus, Maria, santos, orixás, espíritos de luz, caboclos, milagreiros e outros) e que, embora se devote a um ramo, não descrê e, principalmente, não deixa de temer todas as outras entidades. Nossa religiosidade é também clientelista e regida pelo medo, algo que eu já tinha dito, que brasileiro tem medo de tudo, inclusive de lendas urbanas modernas, numa espiral crescente. O livro é uma tentativa de exorcizar esses medos, a começar pelo temor absurdo da morte e dos mortos, conferindo alguma leveza à narrativa.



CROQUI – Você é religioso?
FRANKLIN CARVALHO - Sou barroco, no dizer de Gregório de Matos, “Meu Deus, que estais pendente de um madeiro, em cuja lei protesto de viver, em cuja santa lei hei de morrer”. Tenho pulsões de busca e de recusa aos rituais do catolicismo popular no qual fui criado, num sentimentalismo paradoxal. Está tudo lá em Céus e Terra, as velas, as procissões, os silêncios e assombros comungados. Tenho dificuldade de lidar com a pregação eletrônica, com a performance ensaiada, o neoconservadorismo e o consumismo religioso. Tratei dessas práticas em textos ainda inéditos, com algum tom de ironia, como devem ser tratados os temas que se crêem muito sérios.

CROQUI – Galego é um menino que vira uma espécie de santo na trama. Seu autor acredita em milagres?
FRANKLIN CARVALHO - A ideia de transformar Galego num milagreiro surgiu depois de uma visita ao Cemitério da Consolação, em São Paulo, onde há o túmulo de um menino reverenciado como santo. Essa expressão ocorre amiúde Brasil afora com devoções a pessoas que tiveram mortes trágicas, escravizados, crianças, heróis cívicos, prostitutas etc. O milagre na vida brasileira acontece não só com episódios grandiloquentes, mas na vida ordinária, por exemplo, rogar e encontrar um objeto perdido, sonhar e ganhar no jogo, orar e voltar vivo da rua, sobreviver na crise. Creio em milagres e creio no absurdo, mas essas coisas não estão necessariamente relacionadas. Galego apenas tem fama de milagreiro, mas ele é antes de tudo mágico, extraordinário.

CROQUI – Na sua interpretação, o que há de cidade no sertão e de sertão na cidade (se é que há)?
FRANKLIN CARVALHO - A violência em todas as suas formas, principalmente a concentração de renda, e a resposta a ela, a solidariedade, estão presentes em todos os cenários brasileiros. Não há lugares idílicos, nem uma situação de harmonia a que se possa voltar. Como diz a socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz, o imigrante nordestino em São Paulo já era exilado em sua terra de origem, sem posse das condições de subsistência. Aliás, é preciso entender o caráter subjetivo dessas violências, como ela assassina crianças e adultos mesmo antes de matá-los de fome ou de bala. O Brasil é um país genocida de criatividades e de gênios, um país suicida. A miséria tem esse caráter subjetivo, de humilhação e de poda, e é possível perceber as tragédias individuais que ela provoca.

CROQUI – Ariano Suassuna foi uma importante inspiração para a sua literatura? Nas suas palavras, o que ele representa para o país?
FRANKLIN CARVALHO - O teatro de Ariano Suassuna, de João Cabral de Melo Neto e de Dias Gomes, e a obra de Graciliano Ramos, me provocaram a tratar dos elementos da popular a partir de uma abordagem direta, do que era capturado na vivência. No caso de Suassuna, ele próprio reconhece sua opção por manipular histórias e personagens do cordel, que foi uma das minhas fontes de inspiração muito precoces. Em Araci, minha cidade, cheguei a ouvir a leitura desses livretos em almoços na roça. Aquele João Grilo que Suassuna resgatou do cordel também se manifesta na pessoa do Galego, ambos hábeis negociadores, malandros, tanto na terra como no céu – ou até no inferno.

CROQUI - Houve alguma pesquisa para a confecção do livro? Caso sim, como isso se deu?
FRANKLIN CARVALHO - Eu tinha excesso de informações com relação a ritos funerários, havia convivido e entrevistado muitas viúvas, tudo com vistas a fazer um mestrado sobre a morte no catolicismo popular. Acabei trocando o projeto acadêmico pela ficção e me desafiei a fazer um livro que não tendesse nem para o científico nem para o teológico, mas que buscasse uma solução poética para os personagens e seus dilemas. O importante nesse tipo de situação é justamente cortar toda a informação desnecessária e evitar o que parece ser mais fácil, mais óbvio.


CROQUI – Como é o seu processo de escrita?

FRANKLIN CARVALHO - Escrevo à mão, recorro a tópicos que já explorei em anotações, como se fizesse uma grande colagem. Mas não copio as anotações literalmente, faço uma nova elaboração no curso do romance. Em Céus e Terra, por exemplo, o trecho em que falo de perseguidos políticos, me inspirei numa entrevista que fiz com um idoso, que eu já havia publicado em jornal, mas criei outras nuances, incluindo meus personagens no contexto. Não é raro usar gráficos para calcular o tempo e a localização de cada fato ou personagem.


CROQUI – Quais são as suas influências literárias mais importantes e o que está lendo atualmente?

FRANKLIN CARVALHO - Gostava muito da ambientação rural e ressequida de alguns livros de Nikos Kazantzakis e de José Saramago. Um contexto camponês, quase medieval, que ainda diz respeito ao sertão. Em 2018, voltei aos clássicos com Dom Quixote e o Germinal, de Zola, que estou acabando de ler, além de outras leituras, que faço ao mesmo tempo. No último mês, resenhei a Instrução da Noite, de Maurício de Almeida, e Lincoln no Limbo, de George Saunders. Este último livro foi lançado neste ano e também tem cemitério como cenário e um protagonista criança.


CROQUI – Está trabalhando em um novo livro? Caso sim, o que já nos pode adiantar?

FRANKLIN CARVALHO - Tenho um romance e um livro de contos prontos e revisados, ambientados em cidades do interior, que estou tentando publicar, e estou obcecado na criação de um outro romance, uma sátira à cidade moderna, decadente, suas lendas e sua empáfia. Desconfio da modernidade, da diacronia e da tecnologia. Recolho situações concretas da comunicação e mostro o absurdo. Quando falta inspiração, vejo as pessoas e as notícias, os discursos invertidos e o comportamento submisso do homem informado.


CROQUI – Possui projetos literários para além de um novo livro, bem como palestras, cursos ou eventos dos quais participara?
FRANKLIN CARVALHO - O ano de 2017 foi de agenda muito cheia, no Brasil e no exterior. Consegui criar, até porque estava fazendo contos, mas agora priorizo o desenvolvimento de novas ideias e técnicas, para trazê-las a debate. Faço algumas palestras a convite de colegas e de professores, mas sinto alguma necessidade de produzir algo sempre mais arrojado. Pelo que estimo, volto a circular, mas com novos trabalhos.

CROQUI – O que é literatura para você?

FRANKLIN CARVALHO - É script, algo que deve conter imagens, gestos. Aos doze anos fiquei fascinado com o roteiro da peça Deus lhe Pague, de Joraci Camargo, e durante muito tempo quis escrever para o teatro, li muitas peças teatrais, Lorca, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos Sartre, Yonesco, Brecht, Becket e outros. O que admiro em Cervantes e em Gogol é que a prosa traduz a familiaridade dos dois com o contexto do palco, da cena, algo histriônico. Amo a prosa poética e subjetiva, também busco a densidade, mas acabo me voltando para a rapsódia.




*Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Enfermaria 6, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Avenida Sul, Incomunidade, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Poesia Primata, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016, vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017 e da SELEÇÃO PÚBLICA PARA PUBLICAÇÃO DA EDITORA URUTAU 2018. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).
E-mail: scarlatatts@gmail.com / croquiliteratura@gmail.com