Enclave (Editora Patuá, 2018) |
*Por Thiago Scarlata
Há
uma cena no clássico filme de Cacá Diegues, Bye Bye Brasil, em que
um indígena pergunta ao personagem de José Wilker (líder de um
grupo circense itinerante): “Como tá o presidente do Brasil?”.
Quando a assisti, imediatamente fui remetido a uma fala de Roberto
DaMatta em que diz: “O indígena não sabe o que é fronteira. Para
eles, o rio é o rio. A terra é a terra. Não existe “índio
brasileiro”, ou “boliviano”. Os povos indígenas mais isolados
não sabem o que é “Brasil”. Enclave
também fala de identidades. As assumidas, construídas ou negadas.
Toca numa ferida histórica que perdura. Enclave não é só um livro
de poesia, pois ultrapassa a arte pela arte. Enclave é bagagem de
vida do homem Marcelo Labes. E que bom que o homem Marcelo Labes é
também poeta.
Costuma-se
chamar de cultura aquele todo complexo que inclui conhecimento,
crença, arte, moral, lei, costume e qualquer outras capacidades e
hábitos adquiridos pelo homem da sociedade. Para além da teoria e
dos debates em torno do etnocentrismo ou relativismo cultural,
identificamos no autor de Enclave uma luta íntima, que provavelmente
o acompanha. Um signo gravado em sua pele. Esse esforço de Labes
(que é só dele), dá à sua obra uma força única, justamente pelo
permanente tom autobiográfico (e “Bovary sou eu”, tratou
de sacramentar que afinal tudo é autobiográfico): Marcelo estranhou
o familiar e familiarizou o estranho.
Num
tempo de enxurrada de memes relacionados à fala conspiratória de um
patético presidenciável, que pôs em cena a (até então) tão
pouco conhecida utopia de nome URSAL (União das Repúblicas
Socialistas da América Latina), a leitura de Enclave ganha mais um
viés. Posto o antagonismo entre Sul separatista e a chamada “pátria
grande socialista”, poderíamos jogar luz às questões como
padronizações, uniformização de mentes e espíritos ligados à
ideologias ou discursos, exclusões identitárias por uma cultura
dominante ou qualquer outro debate social ou filosófico tão atuais
e importantes. Entretanto, não pretendo fazer deste um texto
acadêmico sobre um livro de poesia, mesmo já tendo me alongado em
alguns quesitos que julguei importantes para uma introdução de
Enclave, dado seu valor extra-poético.
Enclave,
no fim das contas, é tudo o que o coração de Marcelo Labes sofreu,
acumulou e quis descartar. Mas Marcelo não descartou. Acolheu,
trabalhou (e muito) e ao invés de jogar tudo isso (que ainda existe
em seu cotidiano) para debaixo dos tapetes, o que para a maioria das
pessoas (e mesmo dos poetas) é o mais cômodo, construiu uma
denúncia, um desabafo, um grito que vem preso desde a infância.
Todavia, Enclave é sobretudo um livro de poesia, não um panfleto ou
um manifesto. O Labes que conheci em “Trapaça” (seu penúltimo
livro) se encontra com o de Enclave, trazendo consigo todo o seu
aparato poético: o de um homem que faz da poesia um hábito, um
ofício, como um jogador de futebol que de tanto treinar uma cobrança
de falta, acerta o ângulo na hora do jogo. Ao mesmo tempo, esse
mesmo jogador sabe que futebol não é só repetição e lógica.
Futebol é sobretudo arte. Marcelo, como craque que é, sabe muito
bem o que, quando e como usar. Já sabe qual caminho deve percorrer
para buscar o que lhe falta e sua passada é inconfundível. Por isso
que quando leio “aqui onde morremos quando podemos / (mas
que) provavelmente não morreremos / com medo de atrasarmos para o
trabalho.”, sei que é Marcelo Labes. Que quando leio
“trazer na testa o peso dos dias / à espera de que o doutor
busque dentro do corpo / algum resquício de humanidade”,
eu sei que é Marcelo Labes.
Reverbera
em Enclave o som dos teares fabris. A polka impermeável. Os gritos
racistas de ódio. O toque dos navios de imigrantes. A fala estérica
de Hitler. O darwinismo social nosso de cada dia. O silenciamento
histórico de negros e indígenas. Os estampidos dos tiros. O estalo
do chicote. Esse sangue vertendo e que em qualquer um, é sempre
vermelho. Enclave fala das fronteiras que já estão postas. Nos
resta aceitá-las ou tentarmos ultrapassá-las. Este livro nos
convida à segunda opção, pois é ele, depois de uma lição de
história e obra de arte, um ato de coragem. Que tenhamos o mesmo
peito do autor. Que enxerguemos as nossas. Que as superemos.
XIV.
há
o vale
e
há o morro
atrás
do morro
outro
vale
e
outro morro
atrás
deste
outro
vale
além
mais outro
quanto
mais distante
o
vale, mais difícil
de
chegar. estar ali.
quanto
mais profundo
o
vale, maior a vontade
de
partir
Foto: Luiza Melo, 2018 |
Marcelo Labes é poeta nascido em 1984 em Blumenau-SC. Autor de Falações
(EdiFurb, 2008), Porque sim não é resposta (Antítese/Hemisfério Sul2015), O
filho da empregada (Antítese/Hemisfério Sul 2016), Trapaça (Oito e Meio,
2016) e Enclave (Patuá, 2018). Participa da mostra Poesia Agora (edição carioca). Publica no blog http://mmlabes.blogspot.com e mantém a revista O poema do poeta (http://opoemadopoeta.wordpress.com), onde publica originais manuscritos de autores
vivos e mortos, do Brasil e do exterior.
*Thiago Scarlata nasceu no Rio de Janeiro em 1989. É autor de Quando não olhamos o relógio, ele faz o que quer com o tempo (Multifoco, 2017), salobre (Urutau, 2018) e mantém o site de crítica literária Croqui. Em 2016 foi finalista do Prêmio SESC de Literatura e em 2017 venceu o Concurso MOTUS – Movimento Literário Digital (UNIPAMPA). Participou de antologias e teve poemas publicados e traduzidos em diversas revistas, jornais e sites literários.