segunda-feira, 13 de agosto de 2018

O enclave nosso de cada dia

Enclave (Editora Patuá, 2018)
*Por Thiago Scarlata


Há uma cena no clássico filme de Cacá Diegues, Bye Bye Brasil, em que um indígena pergunta ao personagem de José Wilker (líder de um grupo circense itinerante): “Como tá o presidente do Brasil?”. Quando a assisti, imediatamente fui remetido a uma fala de Roberto DaMatta em que diz: “O indígena não sabe o que é fronteira. Para eles, o rio é o rio. A terra é a terra. Não existe “índio brasileiro”, ou “boliviano”. Os povos indígenas mais isolados não sabem o que é “Brasil”. Enclave também fala de identidades. As assumidas, construídas ou negadas. Toca numa ferida histórica que perdura. Enclave não é só um livro de poesia, pois ultrapassa a arte pela arte. Enclave é bagagem de vida do homem Marcelo Labes. E que bom que o homem Marcelo Labes é também poeta.

Costuma-se chamar de cultura aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e qualquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem da sociedade. Para além da teoria e dos debates em torno do etnocentrismo ou relativismo cultural, identificamos no autor de Enclave uma luta íntima, que provavelmente o acompanha. Um signo gravado em sua pele. Esse esforço de Labes (que é só dele), dá à sua obra uma força única, justamente pelo permanente tom autobiográfico (e “Bovary sou eu”, tratou de sacramentar que afinal tudo é autobiográfico): Marcelo estranhou o familiar e familiarizou o estranho.

Num tempo de enxurrada de memes relacionados à fala conspiratória de um patético presidenciável, que pôs em cena a (até então) tão pouco conhecida utopia de nome URSAL (União das Repúblicas Socialistas da América Latina), a leitura de Enclave ganha mais um viés. Posto o antagonismo entre Sul separatista e a chamada “pátria grande socialista”, poderíamos jogar luz às questões como padronizações, uniformização de mentes e espíritos ligados à ideologias ou discursos, exclusões identitárias por uma cultura dominante ou qualquer outro debate social ou filosófico tão atuais e importantes. Entretanto, não pretendo fazer deste um texto acadêmico sobre um livro de poesia, mesmo já tendo me alongado em alguns quesitos que julguei importantes para uma introdução de Enclave, dado seu valor extra-poético.

Enclave, no fim das contas, é tudo o que o coração de Marcelo Labes sofreu, acumulou e quis descartar. Mas Marcelo não descartou. Acolheu, trabalhou (e muito) e ao invés de jogar tudo isso (que ainda existe em seu cotidiano) para debaixo dos tapetes, o que para a maioria das pessoas (e mesmo dos poetas) é o mais cômodo, construiu uma denúncia, um desabafo, um grito que vem preso desde a infância. Todavia, Enclave é sobretudo um livro de poesia, não um panfleto ou um manifesto. O Labes que conheci em “Trapaça” (seu penúltimo livro) se encontra com o de Enclave, trazendo consigo todo o seu aparato poético: o de um homem que faz da poesia um hábito, um ofício, como um jogador de futebol que de tanto treinar uma cobrança de falta, acerta o ângulo na hora do jogo. Ao mesmo tempo, esse mesmo jogador sabe que futebol não é só repetição e lógica. Futebol é sobretudo arte. Marcelo, como craque que é, sabe muito bem o que, quando e como usar. Já sabe qual caminho deve percorrer para buscar o que lhe falta e sua passada é inconfundível. Por isso que quando leio “aqui onde morremos quando podemos / (mas que) provavelmente não morreremos / com medo de atrasarmos para o trabalho.”, sei que é Marcelo Labes. Que quando leio “trazer na testa o peso dos dias / à espera de que o doutor busque dentro do corpo / algum resquício de humanidade”, eu sei que é Marcelo Labes.

Reverbera em Enclave o som dos teares fabris. A polka impermeável. Os gritos racistas de ódio. O toque dos navios de imigrantes. A fala estérica de Hitler. O darwinismo social nosso de cada dia. O silenciamento histórico de negros e indígenas. Os estampidos dos tiros. O estalo do chicote. Esse sangue vertendo e que em qualquer um, é sempre vermelho. Enclave fala das fronteiras que já estão postas. Nos resta aceitá-las ou tentarmos ultrapassá-las. Este livro nos convida à segunda opção, pois é ele, depois de uma lição de história e obra de arte, um ato de coragem. Que tenhamos o mesmo peito do autor. Que enxerguemos as nossas. Que as superemos.


XIV.


há o vale
e há o morro

atrás do morro
outro vale

e outro morro
atrás deste

outro vale
além mais outro

quanto mais distante
o vale, mais difícil

de chegar. estar ali.
quanto mais profundo

o vale, maior a vontade
de partir







Foto: Luiza Melo, 2018
Marcelo Labes é poeta nascido em 1984 em Blumenau-SC. Autor de Falações (EdiFurb, 2008), Porque sim não é resposta (Antítese/Hemisfério Sul2015), O filho da empregada (Antítese/Hemisfério Sul 2016), Trapaça (Oito e Meio, 2016) e Enclave (Patuá, 2018). Participa da mostra Poesia Agora (edição carioca). Publica no blog http://mmlabes.blogspot.com e mantém a revista O poema do poeta (http://opoemadopoeta.wordpress.com), onde publica originais manuscritos de autores vivos e mortos, do Brasil e do exterior.





*Thiago Scarlata nasceu no Rio de Janeiro em 1989. É autor de Quando não olhamos o relógio, ele faz o que quer com o tempo (Multifoco, 2017), salobre (Urutau, 2018) e mantém o site de crítica literária Croqui. Em 2016 foi finalista do Prêmio SESC de Literatura e em 2017 venceu o Concurso MOTUS – Movimento Literário Digital (UNIPAMPA). Participou de antologias e teve poemas publicados e traduzidos em diversas revistas, jornais e sites literários.