sábado, 19 de janeiro de 2019

O Sal do Leviatã - Alexandre Guarnieri


*Por Waldemar José Solha 


“::: e agora, Vasco, Pero Vaz de Caminha? a quantas anda nosso Caminho das Índias?”

Essa é a pergunta que se lê neste livro e que também me faço, ao terminar de lê-lo.

O SAL DO LEVIATÃ é muito estranho. Senti-me, diante deste novo lançamento de Guarnieri, como alguém do círculo mais próximo de Picasso ao ser um dos primeiros a ver, em 1906, o LesDemoiselles d´Avignon, no qual se saca de imediato que, em meio à criação da tela, sem a mais mínima preocupação com a famosa e sempre exigida unidade, o espanhol mudara duas vezes de estilo. A primeira, ao introduzir naquele espaço, algo como uma página do Tratado Elementar sobre a Geometria das Quatro Dimensões, de EspritJouffret – em cima das visões de Poincaré que tinham virado a cabeça de Einstein. A segunda, ao transformar as caras das moças nuas d´Avignon em máscaras africanas, atônito com o que acabara de ver numa exposição delas, em Paris.

Assim, Guarnieri faz a abertura de seu livro com um estilo que me lembra muito a pintura de Ivan Albright e sua temática macabra - cores mórbidas, meticuloso estilo tipo realismo fantástico, em que cada detalhe tem enorme destaque, como quem quer que se veja tudo ao mesmo tempo, do macro ao micro e, de um fôlego, num curto período, vemos, com poesia de alta voltagem, “um engenho de espelhos”, “câmaras do horizonte, iluminadas”, “minério aberto, puro, casto: flor de cálcio”, “lágrimas na zona fronteiriça entre os alumínios do azul e a amarelidão molhada da areia fina”, “navalhas da erosão”, etc. Allright: Albright.

Mas eis que na página 34 “o clima declina em crise física (toda altura é esta estranha úlcera convulsa como se fosse ininterrupta a pintura de William Turner)”. Pois bem, Turner. E aí se dá que na página seguinte, damos com outro Guarnieri. Que se pergunta:

“::: e agora, Vasco, Pero Vaz de Caminha? a quantas anda nosso Caminho das Índias?”

É a questão que também me faço, ante esse novo Guarnieri, que tem a força daquele sermão de Orson Welles no Moby Dick de John Huston.


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O Sal do Leviatã será lançado este ano e sairá pela Editora Penalux.






Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta, historiador da arte (UERJ) e mestre em tecnologia da imagem (ECO-UFRJ). É um dos editores da revista eletrônica Mallarmargens. Lançou Casa das Máquinas (2011), Corpo de Festim (2014), livro ganhador do 57o Jabuti (categoria poesia) e Gravidade Zero (2016).









*Waldemar José Solha (1941) é escritor, ator e artista plástico.

sábado, 12 de janeiro de 2019

olhos que fecham, noite que abre

Foto: Maria Olívia Santos
*Por Thiago Scarlata


E
m noite que abre (volta d’ mar, 2016), o poeta Jorge Vicente traz ao leitor as entrelinhas do consenso que se tem do que seria a noite. Cada poema funciona como um filtro distinto sobre nossos rituais, nossos microcosmos sociais e mentais, mostra como somos tão diferentes e ao mesmo tempo tão repetidos, tão animais e iguais.

Jorge sugere nesta forte obra que as noites (e coisas) de Portugal – sua pátria – podem também ser as nossas, propõe que o paganismo ou a umbanda, apesar de diferentes seja em nomeclaturas, moral, contexto histórico e origens, na verdade fazem parte do sonho do homem e da mulher universal, deste espírito de significar os dias através das paixões advindas da imaginação artística (que para o autor tem valor de ciência e assim deve ser para todos, se bem interpretadas) e da contemplação noturna, esse eterno “olhar para o céu estrelado” que nunca perdeu seu fascínio, mesmo após o desencantamento trazido pelas certezas da astronomia moderna. Para Jorge, nenhum livro de ciência é capaz de desnutrir os olhos mágicos de uma criança ao verem o espaço, pois ele mesmo, afinal, é um poeta, logo, um homem que não se deixou envenenar completamente pelo mecanismo pragmático do mundo adulto. Seus olhos não enxergam só em cinza, como os da maioria das pessoas maduras.

“nada existe mais glorioso
que derramar sangue em
estado de graça:

assumirmos que somos aquilo
que deus nos fez. seres de
terra e não de fogo.
com mãos que crescem
e que sentem prazer”

Neste trecho do poema que abre o livro (os poemas não possuem títulos e o livro não tem capítulos, o que dá uma ideia de continuidade e complementação gradual e certeira no fluxo entre os textos e no ritmo da obra), notamos que através de uma concisão poética original e madura, Jorge Vicente imediatamente desloca a subjetividade frágil dos jovens (ou não) pretensiosos - típica de quem faz da arte uma diversão vazia e/ou objeto de experimentalismos de gaveta - e a finca no chão. É a partir dos joelhos ralados, pernas cansadas de correrem e pés calejados que, para o poeta, se inicia os voos verdadeiramente altos. E assim são os poemas de “noite que abre”. Poemas de baixo para cima e não o contrário.

“ontem matei um homem. nada mais do que isso.
nenhuma cintilação dos ossos. nenhuma ânsia em
experimentar o que quer que fosse. apenas o
desejo íntimo de descriar através do sangue.”

e continua:

“nada, mas mesmo nada é deixado ao acaso. a
sombra é o reflexo do astro. e o astro é o reflexo
da faca deixada no lugar da humanidade”

No poema acima conseguimos ter ciência do tipo de caminho que o poeta propõe: do seio do banal, desmoralizando estruturas sociais criadas, até chegar a algo mais macro, ampliando subjetividades e por fim as colocando ao sol. Jorge trabalha assim: um malabarismo lúdico entre a fantasia e o concreto.

Para finalizar, escolhi o último poema do livro que diz: “no interior de cada um dos / órgãos do corpo anoitece / o sexo e a terrível vertigem / das casas. / o que morre deixa-se ficas nos / olhos que não fecham.” noite que abre é esse convite a abrirmos mais do que podem os olhos acinzentados da nossa hipnotizante rotina. É um despertar noturno: chamamento à contemplação do que se perde nas madrugadas ocultas.




Jorge Vicente nasceu em 1974, em Lisboa, e desde cedo se interessou por poesia. Com Mestrado em Ciências Documentais, tem poemas publicados em diversas antologias literárias e revistas, participando, igualmente, nas listas de discussão Encontro de Escritas, Amante das Leituras e CantOrfeu. Faz parte da direcção editorial da revista online Incomunidade. O seu primeiro livro de poesia, Ascensão do Fogo, foi publicado em 2008, sendo seguido por Hierofania dos Dedos, editado sob a chancela da Temas Originais em 2009, e pelo livro Teoria do Movimento, editado em 2014 em edição de autor. noite que abre,  publicado em 2016, é o seu quarto livro de poemas.

Contacto: jorgevicente.seacarrier@gmail.com




*Thiago Scarlata nasceu no Rio de Janeiro em 1989. É autor de Quando não olhamos o relógio, ele faz o que quer com o tempo (Multifoco, 2017), salobre (Urutau, 2018) e mantém o site de crítica literária Croqui. Em 2016 foi finalista do Prêmio SESC de Literatura e em 2017 venceu o Concurso MOTUS – Movimento Literário Digital (UNIPAMPA). Participou de antologias e teve poemas publicados e traduzidos em diversas revistas, jornais e sites literários.