domingo, 16 de julho de 2017

O Cometa - Bruno Schulz

A época estava sob o signo da mecânica e da eletricidade, e todo o exame das invenções se derramava sobre o mundo das asas do gênio humano. Nas casas burguesas apareceram estojos de charutos equipados com isqueiro elétrico. Girava-se o interruptor, e inúmeras centelhas elétricas acendiam o pavio embebido em gasolina. Isso despertava esperanças enormes. A caixinha de música em formato de pagode chinês, logo que lhe davam corda com uma chave, começava a tocar um rondó em miniatura, girando feito carrossel. Pequenos sinos soavam a cada volta, pequenas portas se abriam, mostrando no cerne do realejo que girava um trioleto de tabaqueira. Em todas as casa se instalavam campainhas elétricas. A vida doméstica decorria sob o signo do galvanismo. A bobina de arame isolado tornou-se um símbolo dos tempos.







Bruno Schulz (1892 - 1942) foi um novelista e pintor ucraniano de religião judia, reconhecido como um dos expoentes da prosa polaca do século XX. Autor de As lojas de Canela 1934), ao qual lhe seguiu Sanatório baixo a Clepsidra três anos depois. Também traduziu O Processo de Kafka ao polaco em 1936. Em 1938 a Academia Polaca de Literatura concedeu-lhe o prestigioso Laurel de Ouro. O estalar da II Guerra Mundial em 1939 tomou Schulz vivendo em Drohobycz, que estava ocupada pela União Soviética. Há informações de que estava a trabalhar numa novela chamada O Messias, mas não há rasto deste manuscrito. Depois da invasão alemã da União Soviética foi forçado, por ser judeu, a viver no gueto de Drohobycz, mas alguns relatos dizem que estava "protegido" por um oficial da Gestapo que admirava os seus desenhos. Durante as últimas semanas da sua vida pintou um mural em sua casa de Drohobycz no estilo que o identifica. Pouco depois de acabar o trabalho, foi fuzilado por um oficial alemão, rival do seu protector, e o seu mural escondido.


 

quinta-feira, 6 de julho de 2017

um poema ou um reclame - Marcelo Labes

calma, eu lhes peço calma
porque de nada adiantaria
um poema escrito lentamente
ser lido agora com pressa.

façamos um trato,
um pacto, uma aliança: este é um poema para
ser lido com calma enquanto a noite chega,
enquanto a manhã se aproxima, enquanto o dia

termina num passo de dança.

em fim de tarde, um risco rosa no céu
era um avião de outono-inverno
vestindo sua calda mais poderosa

e eu ali, balançando no ônibus
das seis da tarde e pensando
nas cores mais poderosas

pensando em tudo que nos roubaram
sempre que puderam. corrijo:
pensando em tudo que me roubaram

das punhetinhas rápidas e comprimidas
às noites de trago e cocaína
trocadas por orações ao anjinho protetor

ou a um deus-sem-nome
na oração da serenidade:
toda idade é idade de arrepender-se.

roubaram-me as tardes vãs de domingo
que pouco ou nada valiam no mercado-negro
de propriedades que assaltamos em pensamento

em troca de cheque especial
e empréstimos impensados
é que ganhamos salário

ou nada disso teria valido a pena
chegar aos trinta e dois anos e o melhor
a oferecer nunca passar de um poema

ou dois: seja isso pretensão ou
derrotismo, não nos interessa
otavianos que discutimos se

o poema ou se a poesia
como se tudo não passasse nunca
de uma soma interminável de palavras.

num b.o. imaginado listamos:

o sonho que sonhamos acordados
enquando digeríamos a esquerda
neoliberal latino-americana;
o desespero sebastianista que já
sabe que o messias não vai voltar
que o rei escondeu as armas e o trono
que deus morreu faz tempo
e que estamos todos sozinhos;
a saudade que dá sempre que lembramos
da bicicleta vermelhamarela, em vão:
não caberíamos mais nela
com esse tamanho
com o peso desses anos todos
tentando acertar o passo
para melhorar de vida;
a vida em si com tudo de vida
que na vida há;
este trocadilho acima,
enfadonho.

acostumamo-nos:

com o aquecimento global
com o fascismo com o racismo
com os aumentos de passagem
de ladroagem de traquinagem
com os discos antigos de
chico buarque com a morte
de belchior acostumamo-nos
com a fuga de jango com o
discurso liberal de mujica
logo nós
logo nós que esperávamos
mais desta e de todas as outras
vidas: as que vivemos e as
que imaginamos agora aqui
acostumados
acostumados
acostumados
e volta e meia reclamando.

e antes que a calma se canse:

não há liberdade que não seja a morte
isso está dito nos seriados netflix
nas teorias da conspiração
nos chemtrails, no glutamato
monossódico,
na direita e na esquerda
venezuelanas,
nos brasiguaios que tentam
invadir a capital do paraguai.

roubaram, os sem-vergonha alguma:

nossa esperança de que o homem
poderá visitar a lua pagando em prestações
nossa esperança de que o ano findará
sem mais mortes de inocentes
nossa esperança de que o amor nos salvará
de todas as dores, de todas as perdas
e a tudo isso nos acostumamos

mas é difícil acreditar que nos roubaram
o inverno, que anteciparam a primavera
isso já é demais e é preciso procurar os
órgãos oficiais para que alguma coisa

seja feita a respeito.



Marcelo Labes é poeta nascido em 1984 em Blumenau-SC. Autor de Falações (EdiFurb, 2008), Porque sim não é resposta (Antítese/Hemisfério Sul2015), O filho da empregada (Antítese/Hemisfério Sul 2016) e Trapaça (Oito e Meio, 2016). Participa da mostra Poesia Agora (edição carioca). Publica no blog http://mmlabes.blogspot.com e mantém a revista O poema do poeta (http://opoemadopoeta.wordpress.com), onde publica originais manuscritos de autores vivos e mortos, do Brasil e do exterior.


segunda-feira, 3 de julho de 2017

Centro - Richard Plácido

*Poema do livro Entre Ratos & Outras Máquinas Orgânicas



daqui de cima
me sinto um estrangeiro
de qualquer lugar

dizem que todo centro é igual
ratos prédios iluminação amarela

ladeira cortejando igreja
árvores ingerindo poeira motorizada

antigos sinos
erguidos aos lados
novos prédios
sinal aberto
fechado
monumentos lacrados

o centro é
cheio de fachadas






Richard Plácido é poeta e contista. Em 2016, publicou o livro entre ratos & outras máquinas orgânicas (Imprensa Oficial Graciliano Ramos). É mestrando em Estudos Literários pelo PPGLL/UFAL, integrante do grupo de pesquisa Literatura & Utopia e do coletivo literário ELISA. Em 2015, foi aluno do Laboratório Sesc de Criação e Expressão Literária, ministrado pelo escritor Nilton Resende. Publicou nas revistas de literatura Alagunas, Mallarmargens, Gueto e Escamandro. Foi premiado em três edições do concurso de contos Arriete Vilela e na primeira edição do concurso Poesia & Utopia. Contato: richardplacido.com | placidorichard@gmail.com.