Capa: Wladimir Vaz @2018 |
*Por Alexandra Vieira de Almeida
Neste novo
livro de poemas de Thiago Scarlata, salobre, dividido em três
partes (soro, salário e salinas), o poeta extrai o sumo e despeja o
apodrecimento do mundo, as duas faces de uma mesma moeda. Tendo um
olhar que lembra o imaginário barroco, ele nos revela a
transitoriedade e brevidade das coisas em nossa realidade. É
primorosa a qualidade literária de tal livro por ora aqui analisado.
Ele vem nos falar da utilidade e inutilidade das coisas e o título
não poderia ser mais convidativo. Salobre, o mesmo que salobro
possui algum sabor de sal e , que na água, por ter como componentes
os sais e outras substâncias, tornam a água de sabor desagradável.
Jogando com a ambiguidade do sal, ele tanto agrada quanto desagrada.
A segunda parte do livro, intitulada, “salário” nos mostra o
poder do sal e de sua polissemia. Salário tem origem no latim
salarium, que significa “pagamento de sal” ou “pelo
sal”, tido em alta conta no Império Romano.
No Dicionário de
símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, temos a potência
deste elemento em sua extrema ambiguidade. E é neste sentido que
Thiago Scarlata vai construindo seu livro, com riqueza analítica,
aguda e corrosiva, ao mostrar a duplicidade do símbolo. Lemos no
Dicionário acima mencionado: “O sal é, ao mesmo tempo,
conservador de alimentos e destruidor pela corrosão”. Scarlata tem
a agudeza da análise cirúrgica, como um perito da escrita, em
cortar as faces múltiplas das palavras, as esmiuçando: “e então
o osso/ esse não é fácil.../ envolve sede/ dente/ e perícia/ para
saber exatamente/ como sugar/ o que ainda há de caldo (...) ”.
Utilizando letras
minúsculas tanto nos títulos das partes quanto nos versos, Thiago
tira a solenidade das coisas nobres, para falar do abjeto, dos
restos, daquilo que nos incomoda, sem ser sublime. A beleza de seus
versos ampara a crueldade com que ele nos mostra a face escatológica
do mundo. Num dos poemas em que fala do ônibus, podemos nos lembrar
de dois poetas consagrados da literatura. Primeiramente, percebemos a
relação entre o erótico e o maquínico, ao discursar sobre este
meio de transporte, transportando-nos para o heterônimo Álvaro de
Campos, que, em “Ode triunfal”, nos apresenta a relação
erotizada entre o homem e a máquina. Como futurista, Campos mistura
a tensão entre o artificial e o carnal/natural. Scarlata dá um novo
sentido a isso, nos revelando o poder da metáfora e da imagem ao
revelar sobre a utilidade ou inutilidade dos objetos da
contemporaneidade: “ônibus/ essa máquina/ de levar// ejacula
óleo, fuligem/ e fumaça (...)”.
Num segundo momento,
temos a lembrança de um Augusto dos Anjos, que mostrava nos seus
poemas termos científicos e o abjeto. Vemos em Scarlata palavras
técnicas próprias ao maquinário do ônibus. Ele diz: “cárter,
virabrequim/ pistão, biela/ válvula de escape,/ cilindro e vela
(...)”. Tudo em itálico para nos mostrar a especificidade de
uma linguagem que se valeu da extrema pesquisa e conhecimento de
causa. Com ironia, humor negro e perícia, Scarlata produz uma obra
que contém elementos heterogêneos e ambíguos como a água salobra,
que tem um pouco de sal e doce. O poeta mistura poesias mais longas
com menores. Versos mais longos com mais curtos. Também temos a
fragmentação do discurso, ao usar estrofes de apenas uma linha.
Dando pausas ao caráter impactante dos versos, Thiago sabe driblar
com maestria seu entendimento da natureza das coisas. E isto é muito
filosófico. A poesia de abertura nos revela este poder de análise
adentrando a alma do sal e suas sombras, apesar da cor branca:
“morrer de sede/ rodeado de água/ num barco/ à deriva// ou//
beber o sal// sentir o sal// viver o sal// até entender// o sal”.
Scarlata, fugindo da sublimidade, faz uma apoteose do insólito e não
nos mostra algo tão palatável assim, como a água salobre, e nisto
temos o eco de Augusto dos Anjos, mas numa versão diferenciada pelo
poeta por aqui analisado.
No poema “saco de
lixo”, vemos a reflexão sobre a inutilidade dos restos, como se
aquilo que adoeceu em nós fosse expelido para fora das entranhas.
Esta comparação entre o resto e o humano é magistral, fazendo a
poesia de Scarlata ganhar um peso especialíssimo. No livro do grande
crítico literário Alfredo Bosi, O ser e o tempo da poesia,
temos, no capítulo “Poesia-resistência”, a seguinte análise:
“A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e
caos, ‘esta coleção de objetos de não-amor’ (Drummond).
Resiste ao contínuo ‘harmonioso’ pelo descontínuo gritante;
resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste
aferrando-se à memória viva do passado; resiste imaginando uma nova
ordem que se recorta no horizonte da utopia.” O poder de reflexão
sobre o real em Scarlata produz esta dupla face de crueza e sonho, a
realidade e o simbólico, sendo a terceira parte do livro, “salinas”,
a mais metalinguística e que trabalha mais com a linguagem
simbólica.
@Urutau2018 @WladimirVaz |
No poema “branco”,
encontramos a face simbólica da cor branca do sal e do silêncio do
poeta, a página branca da escrita produzindo seus medos e anseios.
Mas também fala de crítica social, nesta mudez imperturbável do
homem que quer gritar aos quatro cantos do planeta e produzir seus
ecos. Vejamos esta resistência na poesia de Scarlata:
“branco-branco/ tudo branco// a fome/ a falta// dor/ e/ mofina/ a
pomba/ a guerra// e os dias/ que duram anos ” . Unindo imagens
díspares, Thiago nos propõe a experiência do impacto e choque da
realidade: os resíduos, os restos, as ruínas, o esfacelamento do
mundo, do tempo que se esboroa. Apesar da brutalidade do mundo, ainda
nos resta a paz e a utopia, com o sabor da escrita onírica e
simbólica. O poeta aqui em questão joga com a linguagem, com a
palavra , nos põe de frente ao duplo da palavra, sua luz e sua
sombra, sua outra face na linguagem. Em “sujeito e verbo”: “o
arranque/ drástico/ do braço// assim o pastor/ prega orações/
subordinadas”. É pelo riso e pela ironia que Thiago Scarlata
consegue a difícil proeza de amainar o peso das coisas.
O livro também traz
algumas homenagens a nomes consagrados da literatura como Cervantes e
Manoel de Barros, tendo uma intertextualidade com eles, trabalhando
com a linguagem intensamente. Mas apesar das referências e diálogos,
Thiago Scarlata tem uma voz própria, especialíssima, produzindo um
livro ímpar e singular. Sobre as coisas necessárias e
desnecessárias, o autor sabe, com grande domínio da linguagem,
cotejar. A mistura das coisas, esta natureza dual de tudo, nos faz
recordar de Guimarães Rosa que mostra a força dos contrários, o
divino e o demoníaco, a coincidentia oppositorum de tudo que
nos rodeia, inclusive dentro de nós mesmos. Em “O poço”, de
Scarlata, lemos: “nenhuma água/ de poço é neutra// energizada
pelos séculos/ e corrompida de argila,/ traz consigo à superfície/
um verdadeiro folclore/ de sais minerais (...)”.
Thiago nos fala
desta “cultura salobra”. A ambiguidade da própria expressão nos
leva ao terreno do poético e da imagem. Sem pontuação final nos
poemas, ele nos dá a ideia de continuidade, num ritmo que não para,
o próprio movimento da vida e da sua escrita que só faz evoluir.
Com variedade estilística, Scarlata produz uma obra excepcional que
revela seu amadurecimento como escritor que não para de crescer. A
frieza e a crueldade da realidade são traduzidas em belos versos que
diminuem o impacto da brutalidade do mundo e nos faz refletir sobre o
real e nós mesmos num poder de autorreflexão e conhecimento.
Portanto, Thiago Scarlata consegue traduzir em salobre a voz
de nossa face ambígua e da natureza dual das coisas, com grande
encanto, ironia e beleza. O poeta vai longe e se supera cada vez mais
ao longo do tempo, mostrando que a genialidade não está pronta, mas
é produto de um longo trabalho com a escrita que não acaba, mas que
progride cada vez mais.
Lançamento do livro: Dia 19/10, às 19:00h na Pizzaria La Carmelita (Rua do Rezende, 14 - Lapa).
Thiago Scarlata nasceu no Rio de Janeiro em 1989. É autor de Quando não olhamos o relógio, ele faz o que quer com o tempo (Multifoco, 2017), Salobre (Urutau,2018) e mantém o site de crítica literária Croqui. Em 2016 foi finalista do Prêmio SESC de Literatura com o poema “Rio Velho” (presente neste livro) e em 2017 venceu o Concurso MOTUS – Movimento Literário Digital (UNIPAMPA). Participou de antologias e teve poemas publicados e traduzidos em diversas revistas, jornais e sites literários.
*Alexandra Vieira de Almeida é poeta, contida, cronista, resenhista e ensaísta. É Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Trabalha como professora na Secretaria de Estado de Educação e tutora de ensino superior a distância na UFF. Publicou quatro livros de poesia: "40 poemas", "Painel" (Multifoco, 2011), "Oferta" (Scortecci, 2014) e "Dormindo no verbo" (Penalux, 2016). Neste ano, publicou seu primeiro livro infantil, "Xandrinha em: o jardim aberto" (Penalux).Publica suas poesias em antologias, revistas, jornais e alternativos por todo Brasil e também no exterior. Tem poemas traduzidos para vários idiomas. Tem um blog de literatura: www.malabarismospoeticos.blogspot.com.br