terça-feira, 24 de abril de 2018

Dobres sobre a luz: apogeu e queda da língua


*Por Thiago Scarlata



Dobres sobre a luz (Lumme Editor, 2016) é um livro que veio do futuro (interpretável como “o hoje”). Thiago Ponce de Moraes nos apresenta um livro que poderia muito bem ser um glossário sobre a história da comunicabilidade – onde a literatura, obviamente também está inserida. Há nesta obra elementos que carregam a identidade de eras. Se repentinamente todos os livros do mundo desaparecessem, dobres sobre a luz conseguiria exercer o papel de uma bússola apontando os caminhos ricos e distintos da linguagem.

Em sete seções, o poeta maneja do clássico ao experimental. Como sugere o título, é como se Ponce de Moraes tivesse feito “dobres sobre a luz” e visto bem além, convidando-nos a um salto corajoso para fora dos domínios conhecidos da expressividade. E é inegável, os poemas de dobres sobre a luz têm um brilho diferente: suas formas, técnicas, dicções e experimentações – poemas em QR Code, código morse e binário são alguns desses novos e inventivos elementos presentes na obra e que até mesmo nos fazem buscar recursos tecnológicos para chaveá-los e abri-los à nossa língua comum, uma interatividade que provoca, também, reflexões e questionamento sobre, por exemplo, se há um limite e quais são os novos caminhos da comunicação humana. Portanto, não esperem conforto nessa leitura, pois a proposta aqui é (literalmente) nos fazer sair do lugar-comum, isto é, da experiência convencional que um livro oferta.


Elizabeth Bishop (pág. 43) / @LummeEdiitor2016


Homero (pág. 71) / @LummeEditor2016



Atendo-me, agora, à poesia propriamente dita de Thiago, a marca que fica é a de um canto incendiário. Musicalidade une-se ao místico. Romantismo à máxima abstração. Surrealismo une-se ao épico, exalando uma luz, que é resultado de uma jornada (entendida por vida) composta por várias camadas. Sem esses filtros (desconhecidos por mim), a luminosidade poética de Thiago Ponce de Moraes (essa sim, tive o privilégio de conhecer) não seria a que nos arrebata em dobres sobre a luz. Vejamos pela fresta um pouco dessa luz, exposta em “Um e Três Sonetos” (pág. 21):


Ancoragem

Construo sobre a luz tua morada,
As cinzas que irás lograr tardia.
Construo tua chegada, tua saudade,
A sombra inatural que em ti esculpes.

Construo a farsa, o rosto da amada,
Os simples gestos que irradiam os dias.
Construo sobre os traços da tua culpa
A curva da viragem: a ancoragem

Intuída corpo adentro, à margem
De teu ventre em mênstruo devoluto.
Construo sobre a luz do branco hábito

O rubro hálito desta vigília.
Construo avesso ao viço da estiagem
O teu regresso em torpe balbucio.


Por fim, para além da nossa crítica, o autor gentilmente nos cedeu uma entrevista sobre a sua interpretação da própria obra (finalista do Prêmio Jabuti 2016), palavras esclarecedoras que fornecem mais ferramentas para uma melhor imersão e aproveitamento de sua poesia. Segue abaixo:


CROQUI: O que é “Dobres sobre a luz”?

THIAGO PONCE DE MORAES
Responder a “o que é Dobres sobre a luz”, para além de simplesmente dizer: é um livro de poemas – remonta à própria impropriedade que carrega esta seleção. Digo: dizer o que é este livro, este grupo de poemas, é tanto impróprio quanto impossível, numa medida análoga àquilo que o livro porta: algo que escapa, que não se circunscreve definitivamente, que segue a caminho.

Assim me parece ser porque o livro, da forma como o leio, tende a convergir para a deriva da ilegibilidade última de toda escrita – ilegibilidade inerente à escrita em geral, sim, mas que aqui passa a ser agravada. A impropriedade primeira é justamente esta: uma seleção de poemas que, a princípio, se apresentam diante dos olhos de outrem para serem lidos, mas que, contra o contrato previamente firmado, procuram resistir a essa leitura, flagrando o caráter falho da noção de comunicabilidade (geralmente bem escamoteado pelo uso cotidiano da linguagem). 

O livro, de modo geral, acena para o tensionamento da dualidade escrita-leitura, acena para questões que são para mim caras desde o meu primeiro livro, Imp.; questões que vêm a reboque do problema mais amplo da ilegibilidade que acabo de mencionar. Comparecem, nessa medida, categorias como dizível-indizível, traduzível-intraduzível, comunicável-incomunicável, arcaico-contemporâneo, visível-invisível, audível-inaudível etc. E o lapso dessas dualidades – o que não quer dizer o estabelecimento de dicotomias; ao contrário, trata-se de certo adensamento da variação de matizes de um extremo a outro.

Para além disso, a experimentação é algo a que sempre tentei submeter a escrita que se propôs em meus trabalhos. Gosto de pensar a ideia de experiência na chave de Lacoue-Labarthe (entre outros), que a aproxima da noção de risco/perigo. E, então, o que está em risco nesse experimento com a palavra é a própria linguagem, seus acordos, seus tratados, seu domínio, sua discursividade. A própria ideia de temporalidade está em risco, deslocada que está de certa corrente atual. É assim que, penso, os poemas lançam a linguagem à deriva – à revelia de seu fascismo: de sua higiene aplanadora, de sua clareza acachapante, de seu extremo autoritarismo semântico etc.

Penso que a poesia deva se manter em devir, deva se manter em algum lugar instável, precário, a caminho. Dessa forma, a poesia pode se colocar contra, justamente, a autoridade da escrita em geral, passando a fragilizar e a surpreender a qualidade arbitrária da linguagem, sua absoluta farsa, seu teatro do absurdo. A poesia sabe que a essência do diálogo é a divergência, o não prontamente identificável, a coesão e a convivência de contrários, de impossíveis. E Dobres sobre a luz, a meu ver, tenta atravessar e propor esse caminho.

Outra característica forte dos poemas desse livro, que também me move através dos anos, é a necessidade de o poema se erguer como uma peça sonora antes mesmo de fazer sentido (se é que o fará, no sentido da poiesis; se é que o seu sentido não é ser esse lugar em que o nada possa acontecer – esse nada que é tudo: o mito, a la Pessoa). Como no fiat lux, há precedência sonora ante aquilo que vem e não se deixa ver vir. Esse estatuto elevado que tento garantir para o traço sonoro (o ritmo, a cadência, o acento etc.) também se respalda no tensionamento do sentido e do legível que procuro anunciar.

Penso, enfim, mas não conclusivamente, o poema como uma casa remota e insuficiente, em ruínas, a que visitar. Um lugar de ter de onde se ir, citando o mestre Max Martins. Um lugar que atravessa aquele que lê ao passo que é também a travessia que o leitor faz. E continua.










Thiago Ponce de Moraes (Rio de Janeiro, 1986–) é poeta, tradutor e professor. Publicou os livros de poemas Imp. (Caetés, 2006), De gestos lassos ou nenhuns (Lumme Editor, 2010) e Dobres sobre a luz (Lumme Editor, 2016, livro finalista do Prêmio Jabuti), bem como a plaquete bilíngue Glory Box (Carnaval Press, 2016), na tradução do poeta britânico Rob Packer, e a plaquete uma fotografia (Leonella, 2017). Na área de ensaios, publicou Remos e Versões (Multifoco, 2012) e Agora sim... talvez seja eu e mais alguém: específica experiência da leitura de Paul Celan e Ricardo Reis (NEA, 2014). Possui doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) com estudo sobre a obra de Paul Celan. Participou, entre outros, do 31º Festival Internacional de Poesia de Tróis-Rivières (Canadá), do XX Encontro Internacional de Escritores (México) e do 55º Struga Poetry Evenings (Macedônia), o mais antigo encontro internacional de poetas. Publica leituras de poesia contemporânea semanalmente na Poemateca (www.instagram.com/poemateca) e publica de maneira esparsa no blog Outra Respiração (www.outrarespiracao.wordpress.com).





*Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Enfermaria 6, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Avenida Sul, Incomunidade, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Poesia Primata, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Entrevista com Marcelo Maluf - A Imensidão Íntima dos Carneiros

*Por Thiago Scarlata
"As explicações sempre me desencantam. Prefiro ler. Prefiro escrever. Andar a pé por aí, é literatura."
Marcelo Maluf é escritor e professor de criação literária. Mestre em Artes pela Unesp. Escreveu o livro de contos “Esquece tudo agora" (Terracota, 2012) e os infantis: “Jorge do pântano que fica logo ali” (FTD, 2008), “Meu pai sabe voar” (FTD, 2009) em parceria com Daniela Pinotti, e “As mil e uma histórias de Manuela” (Autêntica, 2013). Em 2015 publicou o romance “A imensidão íntima dos carneiros” (Editora Reformatório),  livro finalista do Prêmio da Associação Paulista de críticos de Arte (APCA, 2015), finalista do Prêmio Jabuti (2016) e Vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura (2016), na categoria estreante com mais de 40 anos. Ministrou oficinas de criação literária e mediou Clubes de Leitura em diversas unidades da Rede Sesc, como: Belenzinho, Campinas, Paraty, Jundiaí, Santos, entre outras. Mantém no Espaço Dança da Realidade, em São Paulo, a Oficina: Acompanhamentos de Projetos Literários, desde 2014.

CROQUI – Fale-nos um pouco sobre como surgiu, desenvolveu-se no livro e o que representa simbolicamente a figura do carneiro no romance.
MARCELO MALUF -  Meu avô quando criança, (assim como no romance) pastoreava carneiros na montanhas de Zahle, no Líbano. A ideia desenvolvida no livro, do carneiro como símbolos de mansidão e sacrifício, surgiu no processo de escrita. Logo, é claro, estabeleci a relação com o Cristo. O carneiro é um animal que consta em muitas mitologias, o que eu fiz foi reconhecer essas histórias e trazê-las para dentro da narrativa. Aproximando o animal humano do animal não-humano, fundindo essas figuras e dando, de certa maneira, a possibilidade de nos reconhecermos como animais. Somos essa família de seres sencientes a compartilhar um mesmo planeta, a sofrermos juntos num mundo marcado pelo poder, pela ganância, pelo egoísmo e pela violência. Mas todas essas ideias foram nascendo ao longo do processo de escrita. Fui descobrindo o que eu estava fazendo no ato da escrita.

CROQUI – Qual é a sua relação com a cultura árabe? Em qual grau (se é que há) a herança cultural de seus ancestrais se fez presente na sua vida e literatura?
MARCELO MALUF - Minha relação com a cultura árabe se dá pela música, pela comida e por alguns poucos autores que li, além de alguns filmes. Ou seja, não carrego uma herança cultural de meus ancestrais. A herança que eu tenho é a do neto de imigrantes. Minha avó era Síria e meu avô, Libanês. Mas nem um, nem outro tiveram a preocupação de ensinar a língua ou de transmitir algo que fizesse com que eu estivesse, hoje, mais próximo da cultura árabe. Eu me lembro dos almoços de família com o rico cardápio da gastronomia árabe (libanesa, em especial). E de ouvir minha avó conversar em árabe. Mas era um mundo à parte, eu não tinha acesso a ele. Por isso, só fui compreender que eu era neto de imigrantes, ter essa consciência, quando fui buscar pelas histórias que estão em meu livro. 

A Imensidão Íntima dos Carneiros (Editora Reformatório, 2015) - @MarceloMaluf

CROQUI – Em que medida o desvelo do segredo familiar evidenciado no livro te impeliu a transformá-lo em ficção e o como a sua família recebeu  isso após a publicação?
MARCELO MALUF - Foi imediato o processo. Assim que ouvi a história contada pelo meu tio, eu soube que precisava compreender melhor tudo aquilo. E o meu jeito de compreender seria escrevendo. E foi o que fiz. Só que demorei muito até chegar ao romance. Foram pelo menos dez anos mastigando e digerindo essa história. Quanto à minha família, tive dois tipos de recepção. Os que leram o romance não souberam dizer o que era invenção e o que era verdade. Confesso que, hoje, eu mesmo fico perdido. Afinal, a memória é uma fusão de imagens, sensações e histórias que vivemos. Acredito que seja esse o poder de reinventar a memória. E outros, não sei se leram, fizeram silêncio e não comentaram. Ou seja, o que para mim foi uma revolução pessoal, não teve o mesmo impacto em outros familiares. Mas com os leitores, em geral, tenho recebido relatos fascinantes da experiência com a leitura do livro. O que me deixa muito feliz.

CROQUI – Um dos motes do livro é o medo como herança familiar. Discorra um pouco sobre a história que o inspirou na composição deste.
MARCELO MALUF - Não foi fácil reconhecer que eu havia recebido como herança familiar o medo. Não foi fácil identificar que o que eu sentia era medo de estar no mundo, medo de escrever, medo de arriscar, medo de sair de casa, inclusive. E que esses medos todos que viviam em mim, tinham um passado, tinham uma longa trajetória, era o medo que me impedia de seguir adiante e ser seja lá o que for. Encontrar a raiz desse medo na história que o meu tio me contou sobre a infância do meu avô e a tragédia vivida por ele no Líbano, foi um salto que eu pude dar na compreensão disso tudo, o que não significou viver sem o medo, mas pude ter a clareza do lugar de onde ele vinha e assim, com o uso da linguagem eu tive coragem para enfrentá-lo de igual para igual, conhecendo seus vícios, fraquezas, assim como ele conhecia os meus. Dessa batalha sem vencedores, nasceu o romance. Saímos dela, o medo e eu, um pouco mais humanos e mais maduros.

CROQUI - Conte-nos como foi assumir a voz de seu avô, já que o livro intercala narradores. Como foi pra você (re)construir a figura de um ancestral de uma significação tão forte que não chegou conhecer?
MARCELO MALUF - É preciso dizer que assumir a voz de Assaad, por mais que eu soubesse que se tratava de um personagem, foi uma escolha dolorosa. Dolorosa no sentido de que eu tive de matar aquele avô criado pelo ponto de vista dos meus pais e dos meus tios, para inventar um avô que era aquele criado por mim. Hoje, a memória que tenho de Assaad é uma mistura dessas duas fontes, a do avô encarnado e a do avô imaginário. E não tenho nenhuma pretensão em saber qual é a verdadeira. Não acredito na memória como algo factual e linear. E posso dizer, também, que meu avô hoje é alguém com quem convivi de perto, bem diferente de antes da escrita do livro.

CROQUI - Em que medida a espiritualidade/religiosidade foi importante na narrativa?  
MARCELO MALUF - Talvez seja importante dizer aqui que a minha relação com a espiritualidade diverge das instituições religiosas. Eu tenho respeito pelas instituições, mas não me interessam seus dogmas, os ismos. O que me leva para a espiritualidade é o mistério, a mística, assim como o caráter terreno e humano dos seus avatares, como o Cristo, Maomé e Buda. Dito isso, posso afirmar que essa espiritualidade está no centro do meu romance, é o rio que corre pela narrativa e dá sustentação ao texto. Mas, é claro, isso não está fechado, outras possibilidades de leitura podem e devem ser feitas.

Marcelo Maluf - Prêmio São Paulo de Literatura @2016

CROQUI - Como se dá seu processo de criação literária?
MARCELO MALUF - De modo geral, eu me conecto, primeiramente, às sensações e imagens: cenas, sons, cheiros, memórias. Depois de experimentar tudo isso, eu me encontro com as palavras, as personagens, o lugar, as ideias. E enfim, a linguagem, a voz que irá narrar. O meu processo é lento e vou me perdendo no meio do caminho. Depois volto a me encontrar e sigo. O que me angustia muito. Por enquanto, tem sido assim o meu processo.

CROQUI – Há no seu livro uma forte carga poética. Você também é um leitor de poesia? Fale-nos sobre como você enxerga essas fronteiras (se tênues ou não) entre prosa e poesia.
MARCELO MALUF - Antes de ler prosa, o que me encantou em literatura foram os poetas, a poesia. Aos 13 anos eu lia com muito prazer: Drummond, Quintana, Bandeira. Depois me apaixonei por Murilo Mendes, Garcia Lorca, Oswald de Andrade, João Cabral, ....Ou seja, nessa época eu queria mesmo era ser poeta. Cheguei a escrever muitos poemas. Depois joguei tudo fora. E os prosadores vieram só um pouco depois. Como leitor, gosto tanto da prosa que se aproxima da linguagem poética quanto da prosa mais direta, objetiva. Em alguns autores essas fronteiras ficam mais fluidas, em algumas narrativas da Clarice ou da Hilda, por exemplo. Mas não me apego a isso. Tudo depende do projeto de cada autor. No meu caso, essa carga poética vem naturalmente, não forço nada, é o meu modo de enfrentar a linguagem. Se isso se deve ao fato de eu ser leitor de poesia, pode ser que sim. 

CROQUI - Está trabalhando em um novo livro? Caso sim, o que você já pode nos adiantar?
MARCELO MALUF - Sim, estou no processo de escrita do meu segundo romance, cujo título é “Ao Redor da Figueira”. Trata-se de uma história trágica de amor, uma tradição na história da literatura. Em verdade, o romance nasceu de uma pergunta que minha esposa me fez certo dia: “E se eu não mais existisse, o que você faria?”. Eu não soube responder de imediato. Então me sentei para escrever e nasceu o romance. Mas trata-se também de uma narrativa sobre o mundo urbano versus o mundo rural, sobre a relação entre o ser humano e a natureza, sobre o impacto do nosso modo de vida sobre outras criaturas, sobre o modo como a memória reinventa os acontecimentos do passado, sobre culpa, morte e coragem. E tudo acontece de alguma maneira, ao redor da imagem-símbolo de uma figueira. Enfim, ainda estou em processo, mas o caminho é mais ou menos esse.

CROQUI - Quais são suas influências literárias mais importantes e o que está lendo atualmente?
MARCELO MALUF - Alguns autores e autoras são realmente importantes para mim, entre eles estão: Hermann Hesse, Nikos Kazantzákis, Leon Tolstói, Fernando Sabino, Rumi, Murilo Mendes, Juan Rulfo, Hilda Hilst, Franz Kafka, Italo Calvino, Murilo Rubião, Walt Whitman, Clarice Lispector, Alejandro Jodorowsky, Adélia Prado, Ernest Hemingway, Chuang Tzu, Alberto Caeiro, Teresa D’ávila, João da Cruz....Enfim, como se pode perceber, é uma mistura e tanto. Estou lendo “Adeus às armas”, do Hemingway e os “Poemas Completos”, do Herberto Helder.

CROQUI - Para além de um novo livro, quais são seus projetos literários e o que tem feito de interessante nesse sentido?
MARCELO MALUF - Tenho alguns livros infanto-juvenis publicados. Um deles foi escrito em parceria com minha esposa, Daniela Pinotti, cujo título é “Meu pai sabe voar” (FTD, 2009).  Há um bom tempo que temos o projeto de escrever novos livros. Mas no momento, Daniela está escrevendo um juvenil. Assim que ela terminar o seu livro e eu o meu, queremos sentar para escrever. É uma parceria que me provoca e estimula muito. A Daniela é minha primeira leitora e quem faz as críticas mais severas ao meu trabalho. Além de admirá-la como escritora também. 

CROQUI - Como vê a questão política no país e o que espera desse ano eleitoral?
MARCELO MALUF - Estamos vivendo um verdadeiro desmonte da democracia, dos direitos humanos, da liberdade de expressão. Um banquete de violência e perversidade contra os direitos dos trabalhadores, principalmente dos mais pobres. Vejo com profunda indignação o fato de que ficou escancarado o quanto eles (os que hoje estão no poder) não estão nem aí com o povo, em cumprirem o que deveria ser a sua função como políticos: a de representar o povo. Eles dão de ombros para as reinvindicações. Em sua maioria, os nossos representantes querem que os pobres sejam para sempre pobres, para que eles fiquem cada vez mais ricos com suas mansões, ternos, carros, pagando suas viagens, sua vida de luxo, etc. Temos nesse momento uma vereadora que foi executada e um prisioneiro político. E estamos gritando nas ruas e estamos gritando para o mundo. E nada se faz. A grande mídia não mostra, é conivente. É parcial. A bola do jogo é deles, e eles mudam o que quiser, mesmo sofrendo um gol, eles alegam que não valeu, que foi impedimento, eles tem os juízes comprados. E alguns juízes no Brasil se vendem. E não são poucos. Eles mentem e tudo bem.  Portanto, e isso é só uma parte do caldo espesso da canalhice, eu estou bem pessimista. Espero que a esquerda se organize, sem vaidades intelectuais nesse momento e possa juntar as forças, estamos carentes disso. É o que eu espero.

CROQUI - O que é literatura pra você?
MARCELO MALUF - Para mim, a literatura é um grão de areia dentro do qual eu nasci e irei morrer. Dentro dele pude me apaixonar pela vida e ter amor e repulsa pelo ser humano, dentro dele conheci histórias mais verdadeiras de seres imaginários do que as mentiras e falsidades de seres de carne e osso. A literatura é esse grão de areia insondável, miúdo, assim como poderia ser uma gota de água. É um mistério que me fascina e prefiro mantê-la assim. Prefiro viver a linguagem, e sei que a boa literatura se faz pela linguagem, não só, é claro, mas não quero que me expliquem nada. As explicações sempre me desencantam. Prefiro ler. Prefiro escrever. Andar a pé por aí, é literatura.









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*Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Enfermaria 6, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Avenida Sul, Incomunidade, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Poesia Primata, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).

segunda-feira, 16 de abril de 2018

O mirábolo: por um novo hemisfério


*Por Thiago Scarlata

Perguntei ao poeta Lucas Rolim sobre o que seria O mirábolo (Moinhos, 2017). Devolveu-me: "Eu criei essa palavra a partir de "mirabolante". O livro gira em torno da ideia do sonho como um canal de sabedoria: conhecimento do todo e do eu. As revelações que o subconsciente nos guarda. O mirábolo seria um ser ou um artefato que provê o sonho aos homens. Contudo, não dei uma forma física ao mirábolo. Cada leitor cria sua própria versão. Às vezes imagino um artefato sagrado, às vezes um ancião enclausurado em uma outra dimensão tecendo a teia dos sonhos, às vezes um instrumento que é utilizado pelo artesão onírico, mas isso sou eu. Cada leitor tem sua versão e é isso o que importa. Embora o livro todo possua uma ideia, os poemas são independentes".

Como escreveu Sigmund Freud (1856 - 1939) em seu "A interpretação dos sonhos", "O sonho é uma estrada real que conduz ao inconsciênte. É um ato psíquico tão importante quanto qualquer outro; sua força propulsora é, na totalidade dos casos, um desejo que busca realizar-se". Nesse sentido, Lucas nos brinda com um livro repleto de construções oníricas. Seus acabamentos são os de um refinado artífice que elegeu cuidadosamente as peças para um mosaico poético extra-dimensional.

O poeta é arrojado. Não fica no lugar-comum, como apontou muito bem o poeta Demétrios Galvão (que assina o prefácio): "O jovem poeta não se rende ao que boa parte de sua geração faz - crônicas sem criatividade do cotidiano ou testemunhos engraçados". Vejamos em "no pátio dos sonhos II" (pág. 22), um pouco desse universo original criado por Lucas Rolim:



teu nome geométrico acende minha caixa de ruídos
- lembro que há uma floresta com teu nome em Astrakan

meu corpo se converte em moléculas fractais & poeira
- mapeio teu rosto feito um talismã secreto


E também no instigante "visão sob a lua" (pág. 24):



foge
à tua casa de ar,

abandona os sons
que restam inabitáveis

e te achega ao desfiladeiro,
aos intertícios da solidão.

a lua
no alto de tua cabeça
cultiva um diadema luminoso.

a ramagem se conecta à tua raiz sagrada,
ao teu espírito de terra.

debruçado sobre o delírio,
teu corpo adormece

e cai.

os pés estão alheios ao pavimento
e desconhecem a dureza dos passos.

concentra-te no sonho.
trespassa o irreal.

esquece
o que não for
vidência.


Neste almanaque poético composto por Rolim, há magia e paixão. Delírio e fábula. Temos aqui, sobretudo, a criação de um Oriente, possuidor de uma beleza, cultura, ritmo, e lógica próprios. O artesanato marcante do poeta, por vezes me remeteu a uma pegada shakespeariana, com pitadas clássicas, quase épicas, ao mesmo tempo envergado para uma interessantíssima orientalidade. Em suma, como o próprio autor proclamou, o malabarismo fica por conta do leitor.

Destaco, então, o poema "dois amantes e a metamorfose II" (pág. 29):

frente a frente no seio das dunas
os amantes sabem que não há miragem
- que de carne e toque é feito o momento

para que a palavra do primeiro acenda
como fogo vivo na orelha do segundo

é preciso que se ergam defronte de si

mirando a esfinge que no outro habita
&volvendo ao que o sonho tornou real

desnudando o enigma & virando peixe
no mar que engole o deserto em sua
vertigem & mudez.


Por fim, a fluidez presente em O mirábolo se assemelha a de uma canção árabe, com escalas e tonalidades que insistem em transgredir à nossa (ocidental). Num "mundo que está viciado em sombras", Lucas Rolim fez um inventivo e muito competente livro, que provoca uma gama sensorial vasta, capaz de nos arrancar de uma "zona neutra", tão comum em leituras opacas ou fomatos replicantes, para uma ala fértil e inaugural.



Finalizo com "os olhares eram hostis" (pág. 55):


                                                   acompanhado de double music tape


os olhares eram hostis
mas nos aproximávamos das fronteiras
e ignorávamos o nevoeiro de sua prole.

nossa envergadura era mais ampla
e escondia a gestação de um segredo.

por muito tempo seguimos o camiho avesso
e o retorno nos transformou em forasteiros
onde antes éramos cria.

os olhares eram hostis,
a língua assassinou o amor dos jovens,
a violência do tempo fendia o sonho e a vida.

como poderia o homem salvar-se da ignorância?
em que alto monte buscaria o socorro?

esperava-se dureza dos corações
e a curta medida do luto,

mas nos aproximávamos das fronteiras
e ignorávamos o nevoeiro de sua prole.

nossa envergadura era mais ampla,
nossa luta era sagaz.





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Lucas Rolim é poeta, tradutor e editor independente. Como poeta, publicou os livrinhos artesanais "Os Cantos de Eleanor" (2017), "Terrário" (2017) e "O Caderno Surrealista de Ibán" (2018), através do seu selo editorial de publicações artesanais independentes, Kizumba Edições, e seu livro de estreia, “O Mirábolo”, pela Editora Moinhos, também em 2017. Enquanto tradutor, publicou o fanzine “Mr. Mojo Risin’” com traduções de poemas de Jim Morrison, que também foram publicadas no Jornal RelevO e no site da Escamandro. Tem poemas publicados em jornais, sites e revistas do Brasil e de Portugal. Participa desde 2015 do projeto Roda de Poesia Tensão, Tesão & Criação, que promove saraus e exposições pelo centro histórico da cidade. É membro do Coletivo Acrobata, que publica a revista de arte contemporânea Acrobata, já em seu sétimo número. Nasceu em Teresina, onde habita e é habitado.


*Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Enfermaria 6, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Avenida Sul, Incomunidade, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).