*Por
Thiago Scarlata
Dobres
sobre a luz (Lumme Editor, 2016) é um livro que veio
do futuro (interpretável como “o hoje”). Thiago Ponce de
Moraes nos apresenta um livro que poderia muito bem ser um
glossário sobre a história da comunicabilidade – onde a
literatura, obviamente também está inserida. Há nesta obra
elementos que carregam a identidade de eras. Se repentinamente todos
os livros do mundo desaparecessem, dobres sobre a luz conseguiria
exercer o papel de uma bússola apontando os caminhos ricos e distintos da
linguagem.
Em
sete seções, o poeta maneja do clássico ao experimental. Como
sugere o título, é como se Ponce de Moraes tivesse feito “dobres
sobre a luz” e visto bem além, convidando-nos a um salto corajoso
para fora dos domínios conhecidos da expressividade. E é inegável,
os poemas de dobres sobre a luz têm um brilho diferente: suas formas,
técnicas, dicções e experimentações – poemas em QR Code,
código morse e binário são alguns desses novos e inventivos
elementos presentes na obra e que até mesmo nos fazem buscar
recursos tecnológicos para chaveá-los e abri-los à nossa língua
comum, uma interatividade que provoca, também, reflexões e
questionamento sobre, por exemplo, se há um limite e quais são os
novos caminhos da comunicação humana. Portanto, não esperem
conforto nessa leitura, pois a proposta aqui é (literalmente) nos
fazer sair do lugar-comum, isto é, da experiência convencional que
um livro oferta.
Elizabeth Bishop (pág. 43) / @LummeEdiitor2016 |
Homero (pág. 71) / @LummeEditor2016 |
Atendo-me,
agora, à poesia propriamente dita de Thiago, a marca que fica é a
de um canto incendiário. Musicalidade une-se ao místico. Romantismo
à máxima abstração. Surrealismo une-se ao épico, exalando uma
luz, que é resultado de uma jornada (entendida por vida) composta
por várias camadas. Sem esses filtros (desconhecidos por mim), a
luminosidade poética de Thiago Ponce de Moraes (essa sim, tive o
privilégio de conhecer) não seria a que nos arrebata em dobres
sobre a luz. Vejamos pela fresta um pouco dessa luz, exposta em “Um
e Três Sonetos” (pág. 21):
Ancoragem
Ancoragem
Construo
sobre a luz tua morada,
As
cinzas que irás lograr tardia.
Construo
tua chegada, tua saudade,
A
sombra inatural que em ti esculpes.
Construo a farsa, o rosto da amada,
Construo a farsa, o rosto da amada,
Os
simples gestos que irradiam os dias.
Construo
sobre os traços da tua culpa
A
curva da viragem: a ancoragem
Intuída
corpo adentro, à margem
De
teu ventre em mênstruo devoluto.
Construo
sobre a luz do branco hábito
O
rubro hálito desta vigília.
Construo
avesso ao viço da estiagem
O
teu regresso em torpe balbucio.
Por
fim, para além da nossa crítica, o autor gentilmente nos cedeu uma
entrevista sobre a sua interpretação da própria obra (finalista do
Prêmio Jabuti 2016), palavras esclarecedoras que fornecem mais
ferramentas para uma melhor imersão e aproveitamento de sua poesia.
Segue abaixo:
CROQUI: O que é “Dobres sobre a luz”?
CROQUI: O que é “Dobres sobre a luz”?
THIAGO PONCE DE MORAES: Responder a “o que é Dobres sobre a luz”, para além de simplesmente dizer: é um livro de poemas – remonta à própria impropriedade que carrega esta seleção. Digo: dizer o que é este livro, este grupo de poemas, é tanto impróprio quanto impossível, numa medida análoga àquilo que o livro porta: algo que escapa, que não se circunscreve definitivamente, que segue a caminho.
Assim me parece ser porque o livro, da forma como o leio, tende a convergir para a deriva da ilegibilidade última de toda escrita – ilegibilidade inerente à escrita em geral, sim, mas que aqui passa a ser agravada. A impropriedade primeira é justamente esta: uma seleção de poemas que, a princípio, se apresentam diante dos olhos de outrem para serem lidos, mas que, contra o contrato previamente firmado, procuram resistir a essa leitura, flagrando o caráter falho da noção de comunicabilidade (geralmente bem escamoteado pelo uso cotidiano da linguagem).
O livro, de modo geral, acena para o tensionamento da dualidade escrita-leitura, acena para questões que são para mim caras desde o meu primeiro livro, Imp.; questões que vêm a reboque do problema mais amplo da ilegibilidade que acabo de mencionar. Comparecem, nessa medida, categorias como dizível-indizível, traduzível-intraduzível, comunicável-incomunicável, arcaico-contemporâneo, visível-invisível, audível-inaudível etc. E o lapso dessas dualidades – o que não quer dizer o estabelecimento de dicotomias; ao contrário, trata-se de certo adensamento da variação de matizes de um extremo a outro.
Para
além disso, a experimentação é algo a que sempre tentei submeter
a escrita que se propôs em meus trabalhos. Gosto de pensar a ideia
de experiência na chave de Lacoue-Labarthe (entre outros), que a
aproxima da noção de risco/perigo. E, então, o que está em risco
nesse experimento com a palavra é a própria linguagem, seus
acordos, seus tratados, seu domínio, sua discursividade. A própria
ideia de temporalidade está em risco, deslocada que está de certa
corrente atual.
É assim que, penso, os poemas lançam a linguagem à deriva – à
revelia de seu fascismo: de sua higiene aplanadora, de sua clareza
acachapante, de seu extremo autoritarismo semântico etc.
Penso
que a poesia deva se manter em devir, deva se manter em algum lugar
instável, precário, a caminho. Dessa forma, a poesia pode se
colocar contra, justamente, a autoridade da escrita em geral,
passando a fragilizar e a surpreender a qualidade arbitrária da
linguagem, sua absoluta farsa, seu teatro do absurdo. A poesia sabe
que a essência do diálogo é a divergência, o não prontamente
identificável, a coesão e a convivência de contrários, de
impossíveis. E Dobres sobre a luz,
a meu ver, tenta atravessar e propor esse caminho.
Outra
característica forte dos poemas desse livro, que também me move
através dos anos, é a necessidade de o poema se erguer como uma
peça sonora antes mesmo de fazer
sentido (se é que o fará, no
sentido da poiesis;
se é que o seu sentido não é ser esse lugar em que o nada possa
acontecer – esse nada que é tudo:
o mito, a la Pessoa). Como no fiat
lux, há precedência sonora ante
aquilo que vem e não se deixa ver vir. Esse estatuto elevado que
tento garantir para o traço sonoro (o ritmo, a cadência, o acento
etc.) também se respalda no tensionamento do sentido e do legível
que procuro anunciar.
Penso,
enfim, mas não conclusivamente, o poema como uma casa remota e
insuficiente, em ruínas, a que visitar. Um lugar de
ter de onde se ir, citando o mestre
Max Martins. Um lugar que atravessa aquele que lê ao passo que é
também a travessia que o leitor faz. E continua.
Thiago
Ponce de Moraes (Rio
de Janeiro, 1986–) é poeta, tradutor e professor. Publicou os
livros de poemas Imp.
(Caetés,
2006), De
gestos lassos ou nenhuns (Lumme
Editor, 2010) e Dobres
sobre a luz (Lumme
Editor, 2016, livro finalista do Prêmio Jabuti), bem como a plaquete
bilíngue Glory
Box (Carnaval
Press, 2016), na tradução do poeta britânico Rob Packer, e a
plaquete uma
fotografia (Leonella,
2017). Na área de ensaios, publicou Remos
e Versões (Multifoco,
2012) e Agora
sim... talvez seja eu e mais alguém: específica experiência da
leitura de Paul Celan e Ricardo Reis (NEA,
2014). Possui doutorado em Literatura Comparada pela Universidade
Federal Fluminense (UFF) com estudo sobre a obra de Paul Celan.
Participou, entre outros, do 31º
Festival Internacional de Poesia de Tróis-Rivières (Canadá),
do XX
Encontro Internacional de Escritores (México)
e do 55º
Struga Poetry Evenings (Macedônia),
o mais antigo encontro internacional de poetas. Publica leituras de
poesia contemporânea semanalmente na Poemateca
(www.instagram.com/poemateca)
e publica de maneira esparsa no blog Outra
Respiração (www.outrarespiracao.wordpress.com).
*Thiago
Scarlata
(1989) é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog
Literário Croqui.
Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e
também nas Revistas Gueto,
Enfermaria
6,
Escamandro,
Mallarmagens,
Monolito,
Avenida
Sul,
Incomunidade,
Janelas
em Rotação,
Poesia
Brasileira Hoje,
O
poema do poeta, Poesia Avulsa,
Literatura&Fechadura,
Poesia Primata, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio
Braziliense, Jornal RelevO, além
de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO
SESC DE LITERATURA 2016
e vencedor do CONCURSO
MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017.
É autor do livro de poesia “Quando
Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo”
(Editora
Multifoco,
2017).