Marcelo
Frota, no seu livro de poemas, O
sul de lugar nenhum
(Penalux, 2019), revela-se na ótica de uma longa linhagem de poetas
malditos, que fogem às regras da sociedade a partir da revolução e
dos vícios que são sacralizados, reunindo o sagrado e o profano.
Seus versos são dionisíacos, mostrando-nos os aspectos noturnos e
abissais dos seres que se adensam na bebida, no fumo e no sexo que
são vistos sem pudor. Como se ao sul, dentro de uma simbologia
exótica, se referisse a este estágio de liberdade e convulsão
corporal. Arthur Rimbaud, um dos poetas proscritos, disse: “O poeta
se faz vidente por
meio de um longo, imenso e refletido desregramento de todos os
sentidos. Todas as formas de amor, de sentimento, de loucura; ele
procura nele mesmo, ele esgota nele todos os venenos, para só
guardar as quintessências”.
O
livro é dividido em cinco partes, tendo um poema como preâmbulo com
o mesmo título da obra aqui em questão. Esse poema se fecha em
círculo com a última e quinta parte do livro, “Finale”, cujo
único poema que a compõe retoma o título do livro com uma
diferença que dá todo o sentido ao seu significado feérico e
onírico: “O sonhar ao sul (de lugar nenhum)”. Esse não lugar é
o espaço do dionisíaco na vida dos seres, que acendem a tocha, a
clareira em meio à noite de uma floresta urbana e petrificada pelas
vozes e pelos silêncios ao mesmo tempo. É constante essa imagem no
seu livro de reunir, numa mesma metáfora paradoxal, o pleno e o
vazio, o transbordante do dionisismo e a retenção dos líquidos de
um rio caudaloso no esvaziamento da luz que cega os sentidos para o
transporte a um estágio em um mundo de sombras e escuridão:
“Adentro a noite nua de estrelas/Um pouco de uísque entorpece/O
corpo fatigado pela guerra/Um amor quente e um campo/De batalhas/Do
que mais/Precisa um homem”.
São
constantes as referências às suas paixões descritas na orelha do
livro: a literatura, a música e o cinema. Há uma parte no livro só
dedicada aos grandes nomes da música internacional e nacional, como
David Bowie e Renato Russo entre outros. A música e o silêncio,
dois símbolos opostos se casam numa unidade perfeita, revelando-nos
a própria ambiguidade do literário que é feito de vazio e
preenchimento. A potencialidade das palavras cavalga as páginas
brancas do nonsense
e do caos, dando-lhes rédeas ao que é desnorteante: “Na louca
hipnose rítmica...” A loucura, o amor, o desamor, a vida e a
morte, grandes temas universais, ganham singularidade na pena afiada
e cortante de Frota.
A
beberagem poética, os ébrios de amor estão presentes nesse livro
magistral de Frota, com uma sexualidade rompante que corta as veias
do real com suas imagens inebriantes. Para o grande pensador
Bachelard, na sua Psicanálise
do fogo,
o álcool “é a água de fogo, a água que arde”, reunindo os
elementos da natureza. Como elementos tão contrários se encontram
presentes na obra de Frota, ou seja, a luz e a escuridão, o sol e a
lua, o dia e a noite? Existências múltiplas se casam, mostrando uma
pluralidade simbólica em seu livro, que atinge um semantismo uno que
se quebra, de forma experimental e revolucionária, nos cortes
abruptos de seus versos que revelam o poder de um vulcão em
constante ebulição: “Bebo algumas cervejas argentinas/Enquanto as
estrelas me acompanham na noite”. Aqui, Frota reúne o intelecto à
sensibilidade de um poeta maior, a razão e as sensações estão
juntas num mesmo abraço lapidar. Temos em seus versos longos e
extensos, paradoxalmente, uma linguagem ágil e vertiginosa a
assombrar o lado frenético da experiência humana. Frota tem a
difícil proeza de reunir o vício ao lirismo mais sutil da beleza,
dando sutileza ao que nos pareceria repugnante. Do abjeto sentimos o
perfume de uma flor delicada. Isso, só os grandes poetas conseguem,
como um escritor do porte de Marcelo Frota.
Num
dos poemas, apesar do desespero, da morte, da partida, das ideias
suicidas e dos vícios, o poeta tem uma fortaleza que é a família.
Marcelo Frota nada lindamente nas águas do caos, trazendo-nos o
alento e a esperança no sangue, no nome e no sobrenome que os
familiares carregam. O alicerce em meio ao aspecto noturno e
inebriante é um conforto para um ser que busca ultrapassar as
fronteiras da loucura dionisíaca. Sua linguagem árida e impactante
é suavizada pela beleza de versos extremamente líricos que
ultrapassam os escudos do peso e da sordidez. Vemos isso
perfeitamente em “Aridez”: “A árida melodia suave”. O
deserto e o oásis das palavras encantam os leitores ávidos que são
pelas expectativas das horas que sobrevoam o que se tece pela voz das
metáforas que conseguem unir num mesmo labirinto urbano um jogo de
duplos, gêmeos que se parecem e diferenciam pela semiótica do
silêncio. Temos em seu livro a força paradoxal do prazer e da dor,
lição aprendida com Freud, a partir de Eros
e Thánatos.
O
aspecto noturno de sua obra é iluminado pelos raios de sol de seus
versos belos e originais. Ele também fala da solidão, da ausência,
um esvaziamento. É preciso esvaziar os copos cheios para que novos
sentidos sejam submersos na aridez da vida, que se torna um mar de
palavras significativas e necessárias, como são seus versos. Há
uma harmonia notívaga com sua melancolia noturna em meio ao
desconhecido e ignoto. Assim, o poeta se pergunta: o que virá
depois? As referências a nomes de pessoas reais como na poesia, na
música e no cinema, misturam o fato e a ficção. O real e o
imaginário são outras dobras que se elevam nos seus versos.
Na
parte destinada aos ídolos, há uma simbiose, um parelhamento
perfeito entre o amado e o amante, o ídolo e o fã. Há um abraço
entre a dissonância e a harmonia, revelando-nos o corte abrupto e
matrimonial entre as imagens, ora as distanciando, ora as
aproximando: Da poesia entre batidas eletrônicas e
guitarras/Distorcidas”. No final do poema dedicado a David B.,
temos (I’m a Blackstar/You’re a Blackstar/I’m a Blackstar)”.
Os parênteses delimitam os espaços da afinidade e da relação
simbiótica entre o eu e o outro. É necessária a busca da
outridade, da vizinhança com outros seres para que a vida faça
sentido no sem sentido do mundo que nos cerca. Esse adoçamento da
vida em sua delicadeza em meio ao deserto urbano cria música aos
ouvidos do ser que traz o relevo e a segurança à solidão, onde
existe e sobrevive a expansão e descentramento do eu: “Sou esse
mistério amoroso/Uma rosa solitária no coração de Paris”.
No
seu livro excepcional há a transposição do nervo denso do real
para a escrita dos versos cortantes e ao mesmo tempo doces em sua
magia linguística. O seu livro balança na corda do equilíbrio e
desequilíbrio dos seres. No poema “Escuridão”, a claridade vai
iluminando tudo, deixando ver a nudez de uma sociedade moralista:
“Na luz,/são todos hipócritas”. Em “o corpo gelado ou a
inocência da morte”, a morte do mundo vai sendo vivificada pela
chama da poiesis.
A nostalgia de seus versos nos encanta. O silêncio é a morte. A
vida é a imensidão de vozes. A palavra e o vazio, a vida e a morte
tremulam pelo viés e pelos vãos das palavras. Temos, assim, o
silêncio e o ruído, a estaticidade e o movimento dos seres e das
coisas, dançando num bailar de signos. Encontramos a nulidade dos
sentidos e a busca pelo não sentido das coisas.
Outro
elemento forte na sua poesia é a presença da natureza. Mas o poeta
não representa o exotismo da natureza singular brasileira e sim esta
como leitmotiv
para a reflexão interior como no Romantismo alemão. Portanto, em
Marcelo Frota temos um afogar-se na chama quente das palavras
inaugurais que sintetizam a busca do homem pelo sorriso inebriante do
cosmos, em que o elemento dionisíaco representa a procura pela
expansão do eu e fragmentação do ser em meio ao caos que nos
circunda no meio urbano. A sua urdidura poética se faz pelo excesso
e alongamento das palavras que prolongam nosso despertar pelas coisas
noturnas, mas que são iluminadas pelo sol de Apolo que traduz o
sentido do ser em uma semiótica unitária que invade nossos sonhos
de encontrar no sul o não lugar, o lugar mesmo de um outro, de uma
face dupla que nos acolha e nos tire de uma solidão profundamente
melancólica. Que seu livro conquiste cada vez mais leitores
interessados que são por belas leituras que nos satisfazem pelo
gosto das coisas inventivas e impactantes como essa obra por ora aqui
analisada.
~~~
*A
resenhista: Alexandra
Vieira de Almeida é poeta, contista, cronista, resenhista e
ensaísta. Tem Doutorado em Literatura Comparada (UERJ). Atualmente é
professora da Secretaria de Estado de Educação (RJ) e tutora de
ensino superior a distância (UFF). Tem cinco livros de poesia, sendo
o mais recente “A serenidade do zero” (Penalux, 2017). Tem poemas
traduzidos para vários idiomas.
O
autor:
Marcelo Frota é professor, tradutor, crítico literário e
cinematográfico. Nascido no Rio Grande do Sul em 1979, é um
apaixonado por cinema, literatura e música e tem apreço especial
pelo jazz e pelo blues, sem deixar de lado o rock clássico e a
chanson francesa. Se considera um cinéfilo devoto e apaixonado pelo
cinema brasileiro, europeu, americano e latino-americano. No seu
coração literário os espaços são ocupados por autores que vão
de Shakespeare a Saramago, sem deixar de lado os romances policiais
baratos e a poesia marginal. Estreou na literatura com Compilação
Poética das Margens.