sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Tua voz dos outros - Marcelo Labes

Team of Fishermen pulling the fishing nets out from the sea in Kovalam -  @Lorenz Berna



*Por Marcelo Labes


Eles podem tentar nos ensinar do que se trata a poesia, mas imagino que nunca se alcance um veredito, um final – feliz ou infeliz – para esta pergunta. Do que se trata? Acho que os poetas nos perguntam isso muitas vezes, quando nos apresentamos e somos apresentados como, deve surgir a questão: sou poema , mas do que se trata isso?

Estes poemas de Thiago Scarlata não nasceram escritos, tenho certeza. Não me detenho em questões particulares para tal afirmação, se são concisos, se têm rimas internas, se tiveram sua métrica contada nos dedos das mãos. Não. Os poemas de salobre vêm de outra fonte, que não as palavras. Sorte a nossa, penso, ter calhado a Thiago a poesia. Sorte a nossa.

Se são tempos duros, precisa a poesia ser endurecida também? Por que não podemos manter aquele conforto antigo, interior, de falar a partir dos poucos graus de alcance na órbita de nossos umbigos? Estes poemas surgiram antes, muito antes das palavras: são filhos de um olhar atento e preocupado, são fruto de uma necessidade de gritar denúncias. São poemas destes tempos.

Das paisagens injustas dum sertão que espera a chuva que não vem, da fome que sabe que o tempo é o antagonista, da baleia que espera se irmanar e então percebe que se trata de uma embarcação de caça. Não há maneira de escapar a este olhar, de se querer ignorado por ele, simplesmente porque não adianta: os olhos do poeta têm fome e a paisagem que eles têm é esta.


Fresh sea fish on a fishing net. On a black chalkboard. @srapulsar38

salobre é atravessado por medições de tempo (uma preocupação nada recente de seu autor) e por tentativas de calcular a humanidade de pessoas e eventos comuns. O resultado dessas operações é infiel às leis da lógica. Este é um livro de poemas, afinal. Mas há algo que não se perde, que perdura, que endurece à maneira das pedras de sal. Este é um livro de poemas ou um grito contínuo.



E não porque estes sejam tempos ruins. E não porque agora a sociedade seja injusta, as pessoas sofram em trabalhos ingratos, os bichos nos abracem mais dignamente do que os amigos. Thiago vai buscar no que perdura, no que havia desde antes, desde o sal até os moluscos, para mostrar com sua poesia endurecida que não, não estamos certos, estivemos sempre errados.

Assim me sinto ao ler sobre a fuga da seca, sobre o cheiro da boca do peixe, sobre levar a casa para o trabalho dentro da marmita. Assim me sinto ao ler sobre o motorista de ônibus, sobre o coveiro que se isola do lado de fora, sobre o gari, até que no poema ensaio, deparo-me com a imagem central desta minha leitura muito pessoal, quando o poeta diz “dormimos pela insônia / dos outros”.

Se não sabemos responder àquela pergunta antiga sobre do que se trata a poesia, ouso dizer que encontro a resposta acima nestes poemas de Thiago. Que não são poemas de sal, deixemos claro, pois demonstram resistir – e hão de resistir, meu caro, pois somos mais fortes do que eles – às chuvas e toda intempérie mais que houver.

Ouso dizer que descubro aqui o que já devemos todos saber, mas precisa ser enunciado: poesia é escrever pelo silêncio dos outros. Já que me permito a paráfrase, ressalto que uma poesia para fora é mais do que necessária, pois a realidade está aí, à espera de nada, nem mesmo do poeta. Thiago vem, enxerga melhor do que ninguém esta realidade, e a atravessa.

E a exalta.



Capa/foto: @WladmirVaz


*Marcelo Labes é poeta nascido em 1984 em Blumenau-SC. Autor de Falações (EdiFurb, 2008), Porque sim não é resposta (Antítese/Hemisfério Sul2015), O filho da empregada (Antítese/Hemisfério Sul 2016), Trapaça (Oito e Meio, 2016), Enclave (Patuá, 2018) e O poeta periférico (Independente, 2018). Participa da mostra Poesia Agora (edição carioca). Publica no blog http://mmlabes.blogspot.com e mantém a revista O poema do poeta (http://opoemadopoeta.wordpress.com), onde publica originais manuscritos de autores vivos e mortos, do Brasil e do exterior.