Veiga, numa foto da década de 60 no escritório de Seleçőes do Reader´s Digest |
*Por
Saulo Dourado
Basta que um absurdo se instale e permaneça, e em pouco tempo, por hábito após hábito, o que seria um escândalo até tempos atrás já se torna parte da convivência. Descobre-se que o descontentamento não se tornou uma reação de incômodo para os autores dos absurdos, a revolta se misturou com a resignação da labuta diária, ninguém estaria pelos mais fracos e o escárnio se esvai no esquecimento... É um processo doloroso que os romances e contos de José J. Veiga tornam sempre a apontar.
Em Sombras de Reis
Barbudos, uma empresa é montada por um homem com grandes ideias e de forte
agrado para a população de uma cidade. Despertando a ambição de frentes
maiores, o dono, tio do narrador, é deposto e obrigado a se retirar para longe.
Só se ouve o burburinho nas casas, sem compreender. A nova administração
tampouco se revela, e convoca alguns dos cidadãos para vigiar outros, assim
girando a roda da própria cidade contra ela mesma. Muros são erguidos lá onde haviam
ruas (e em poucos meses, ninguém mais se lembra onde davam esses caminhos),
regras são impostas de comportamento, até rir e olhar para cima se tornam
proibidos, e nada mais prospera senão a empresa.
Algumas das inúmeras edições da obra, atualmente editada pela Companhia das Letras. |
A cada nova investida, o povo se espanta, mas logo assimila.
Mesmo a aparição de urubus, que antes era vista como mau presságio, passa a ser
uma constante. As aves pretas pousavam sobre os muros e se tornavam sombras.
Perdendo o medo dos humanos, entram nos quintais, roubam comida, e os humanos,
afeiçoando-se àquela presença, tornam os urubus animais de estimação. Até a
empresa se surpreende com aquela capacidade de acolhimento e passa a perseguir
também os animais.
Versão espanhola de A Hora dos Ruminantes |
Se podemos ler os dois romances com a ótica do realismo
fantástico, no qual o estranho se instala sem explicações, ou pela referência
ao sufocamento social e existencial de Franz Kafka, escritor das predileções de
Veiga, também se soma uma alegoria da brasilidade enquanto gente política. O
próprio autor, em entrevista em fevereiro de 87, diz: “As populações de
Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas etc. têm sido submissas e aceitado
todas as opressões desde que o Brasil existe (as revoltas que a história
registra foram tentadas por pouquíssimas pessoas esclarecidas, por isso
fracassaram). Qual será a atitude verdadeiramente revolucionária de um
escritor: mostrar ficcionalmente uma população oprimida reagindo e acabando com
a opressão (uma mentira), ou mostra-la sofrendo resignadamente? Esses livros
foram escritos para desassossegar, e achei que se mostrasse os oprimidos derrubando
as bastilhas, o leitor fecharia o livro aliviado, e não desassossegado.”
Não seria de hoje, por esse leitura, que estaríamos nós,
povo brasil, a nos acostumarmos com o puro escândalo, até um ponto que os
inimigos acima instalam fábricas fantásticas e fazem dos princípios
inconstâncias e oscilações do que vale e do que não vale. A leitura de José J.
Veiga desassossega, no sentido de Pessoa, que assim torna viva a questão, que
instaura a angústia enquanto abertura e evita o fechamento da novidade como
fato banal. Com o desassossego, não esqueceremos.
Veiga na BBC no final da década de 40. |
José J. Veiga nasceu no dia 2 de fevereiro de 1915,
em Corumbá de Goiás. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde estudou na Faculdade
Nacional de Direito. Foi comentarista na BBC de Londres e trabalhou como
jornalista d’O Globo e da Tribuna da Imprensa, entre
outros veículos. Aos 44 anos, estreou na literatura com Os Cavalinhos
de Platiplanto. Seus livros foram traduzidos para diversos países, entre
eles Portugal, Espanha, Estados Unidos e Inglaterra, e pelo conjunto da obra
ganhou o prêmio Machado de Assis, outorgado pela Academia Brasileira de Letras,
além de três Jabutis. Faleceu no dia 19 de setembro de 1999.
*Saulo Dourado é escritor e professor. Mestre em Filosofia pela UFBA, é autor dos livros de contos "O mar e seus descontentes" (2016) e "O autor do leão" (2014), além do infanto-juvenil "Mailon, o cão late para o espelho", adotado em escolas de Salvador, Bahia, onde vive. Colabora com contos para o Jornal A Tarde desde 2010 e escreve em portais literários como Homo Literatus.
Vou reler os dois livros. Infelizmente, para o povo brasileiro, José J. Veiga continua muito atual.
ResponderExcluirVerdade, João Caetano.
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