sexta-feira, 9 de março de 2018

Entrevista com Maurício de Almeida - A Instrução da Noite

Maurício de Almeida - Foto: Sylvana Lobo.
* Por Thiago Scarlata


"Sempre digo que escrever é reescrever."


Maurício de Almeida. Campinas, 1982. Formado em antropologia, é autor de Beijando Dentes (Record, 2008), vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2007 na categoria contos, e do romance A Instrução da Noite (Rocco, 2016), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2017 na categoria melhor livro do ano estreante até de 40 anos. Participou das coletâneas Como se não houvesse Amanhã (Record, 2010) e O Livro Branco (Record, 2012) e colabora em sites e revistas com resenhas e artigos sobre literatura, teatro e música. Tem contos publicados em diversas revistas e jornais, além de traduções para o espanhol na Machado de Assis Magazine e para o inglês no Contemporary Brazilian Short Stories. 



CROQUI - O núcleo do seu romance é a família e o que ela tem de imperfeito. Como se dá essa relação em sua obra desde "Beijando Dentes" (seu primeiro livro)?

MAURÍCIO DE ALMEIDA - Penso que não elegemos nossos grandes temas, são eles quem nos elegem. Desde o contos de "Beijando Dentes", o núcleo familiar despontou como tema fundamental aos meus textos. Uma vez que "Beijando Dentes" se debruça temática e formalmente na questão da incomunicabilidade - isto é, no atrito/ruído inerente a toda comunicação - o núcleo familiar s apresentou como um ambiente interessante para se explorar essa questão. Afinal, pressuposta harmoniosa, a família não está imune às dificuldades e limites inerentes à comunicação. Ao contrário, é um ambiente fértil ao conflito. Nesse sentido, desde "Beijando Dentes" até "A Instrução da Noite", o ambiente e as relações familiares se mostram interessantes à exploração da dificuldade de relacionamento entre as pessoas. Se tratei a incomunicabilidade em "Beijando Dentes", o romance "A Instrução da Noite" aprofundou essa pesquisa, levando ao limite a questão do conflito, colocando personagens frente a situações insolúveis.
     Dessa foma, acredito que "A Instrução da Noite" ultrapassa a questão da incomunicabilidade para trabalhar a impossibilidade aquela com "i" maiúsculo. Por essa razão, aliás, "A Instrução da Noite" é narrado por um personagem vencido pela vida, sem qualquer perspectiva de saída, um personagem atormentado pelos desencontros desse núcleo familiar e que. mesmo assim, busca conforto nesse ambiente e nessas pessoas. Essa busca é invariavelmente frustrada, acentuando o sentimento de desterro e abondono. Um dos principais ensinamentos que a noite oferece ao personagem é a descoberta da solidão - e, tal qual toda grande descoberta, o desvendamento é tão cruel quanto irreversível.


A Instrução da Noite (Rocco, 2017)
CROQUI - Você considera que seu estilo literário flerta com o que alguns chamam de "prosa poética"?

MAURÍCIO DE ALMEIDA - Considero estar mais próximo de uma espécie de prosa que faz referência ao expressionismo do que uma "prosa poética". É verdade que meu estilo flerta com a poesia, sem dúvida há um forte aspecto lírico (por assim dizer), mas a intenção desse estilo é ultrapassar a mera representção para explorar, por meio da linguagem, as sensações, aquilo que subjaz as ações dos personagens.
Não é difícil notar que meus enredos são pequenos, sem grandes reviravoltas ou acontecimentos, os personagens realizam poucas ações. Essa característica se deve justamente à intenção de explorar as causas e consequências dessas ações naquilo que é íntimo ao personagem ou à própria ação. Um mesmo evento, como um copo caindo da mesa ou um cigarro sendo aceso, pode ser lido de formas e intensidades muito diferentes - e são essas nuances e profundidades que pretendo explorar com esse estilo.


Beijando Dentes (Record, 2008)


CROQUI - Como se dá seu processo de escrita?

MAURÍCIO DE ALMEIDA - Meu processo de escrita é baseado nas anotações que  faço. Essas anotações decorrem de observações, leituras, músicas (inclusive traduções equivocadas de músicas internacionais), enfim, decorrem de coisas que vivo ou observo. Dessas notas surgem as primeiras ideias para uma história. Não sei como essa conexão se estabelece, mas algumas notas apresentam potencial de desdobramento, talvez por colocarem questões ou serem indícios de algo mais mais profundo do que aquilo que as suscitou ( se não me engano foi Cortázar que elaborou essas possibilidades). A gênese de "A Instrução da Noite", por exemplo, foi a imagem de uma porta fechada, que colocou a questão: e se não conseguíssemos abrir uma porta fechada? Que tipo de incapacidade seria isso? Exploro esses temas no livro e, afinal, a porta fechada e a incapacidade de abri-la é uma das situações mais importantes da obra.
     A elaboração da história/enredo é todo pautado na exploração da ideia inicial e tenta responder a algumas questões como "Que história quero contar? Qual a melhor forma de contar essa história?" A partir das respostas, elaboro a estrutura do texto (seja um conto ou um romance). Tento ser o mais preciso possível nessa estrutura, prevendo as unidade de ação, o trajeto (factual ou psicológico) dos personagens e assim por diante.
     Uma vez elaborada a estrutura, inicio o processo de escrita. É importante dizer que a estrutura serve de norte, não se trata de algo rígido e inalterável. Na medida em que a escrita coloca novas questões ou explicita problemas, altero a estrutura a fim de ter um texto coeso.
     Sempre digo que escrever é reescrever, por isso, terminada a primeira versão do texto/livro, tento me afastar por um tempo do material, a fim de criar um distanciamento do que escrevi. Depois de algum tempo, volto ao texto para reescrevê-lo. Essa etapa de reescritura varia, mas quase sempre reescrevo algumas tantas vezes antes de dar o trabalho por terminado (E, ao menos pra mim, um trabalho literário nunca está terminado).


CROQUI - Quais são suas influências literárias mais importantes e o que está lendo atualmente?

os meus sentimento (Tinta-daChina, 2012)
MAURÍCIO DE ALMEIDA - Algumas das minhas primeiras influências continuam sendo minhas influências mais importantes. Clarice Lispector e Lúcio Cardoso, por exemplo, foram leituras importantíssimas que fiz no início de minha carreira e que até hoje me servem de ponto de partida. A leitura de "A Paixão Segundo G.H" e "Crônica da Casa Assassinada" me perturbavam profundamente e, acima de tudo, me indicaram um caminho de como escrever da forma que eu gostaria de escrever. Raduan Nassar e seu "Lavoura Arcaica", assim como "Avalovara" de Osman Lins também são fortes influências, sobretudo no que diz respeito à questão formal e estilística.
     Atualmente tenho dedicado grande parte d minha leitura a autores portugueses contemporâneos - e eles também são uma influência fundamental para mim. Impossível não citar Lobo Antunes, que desde "Os cus de Judas" me marcou estilisticamente. Além dele, cito Inês Pedrosa (fui arrebatado por "Nas tuas mãos"), Dulce Maria Cardoso (que está me arrebatando com "Os meus sentimentos") e José Luiz Peixoto (sobretudo "Em teu ventre").


CROQUI - Seus dois livros foram publicados por um selo grande. Até que ponto você considera importante ganhar um prêmio literário para a inserção de novos autores numa grande editora e qual é a relação desse caminho com a alternativa das editoras independentes?

MAURÍCIO DE ALMEIDA - O caminho às editoras de grande porte sempre foram estreitos e acho que está mais estreito ainda após a consolidação da crise que vive o país. Por isso, uma possível porta de entrada são os prêmios literários. Foi o Prêmio Sesc de Literatura que possibilitou a publicação de “Beijando Dentes” por uma editora de grande porte, por exemplo. Mas existem outros caminhos que, iguais aos prêmios literários, possuem dificuldades e desafios. 
     No entanto, acredito que a grande questão seja: quais as intenções e os objetivos do autor? Pois hoje em dia são muitas (e excelentes) editoras alternativas no mercado. Qual trajeto o autor pretende para a própria obra? O que uma editora de grande porte pode oferecer? E o que pode oferecer uma editora alternativa, de médio ou pequeno porte? 
     É interessante notar, que apesar de tudo, o número de possibilidades de publicação para os escritores aumento bastante. 
Por isso, acredito ser importante ao autor ter claro quais são os objetivos que pretende realizar com a carreira, que caminhos pretende trilhar e, a partir disso, desenvolver as próprias estratégias de ação no campo literário.


CROQUI - Ainda em relação aos prêmios literários. Você acha que o “peso” ainda influencia um jurado na hora de julgar uma obra vencedora?

MAURÍCIO DE ALMEIDA - Creio que isso que aconteça mais. As diversas e profundas mudanças pelas quais está passando o mundo editorial (incluo nesse universo os prêmios literários) estão subvertendo o peso de um grande selo na avaliação das obras. É possível encontrar nas grandes premiações dos últimos anos, livros de editoras de médio e pequeno porte e isso se deve à qualidade da obra, acima de tudo.
     Esse fato é extremamente importante para a literatura, afinal, os prêmios (e o público) devem buscar pelos autores brasileiros, sobretudo os contemporâneos, para além da capa, isto é, não se limitar à casa editorial na escolha de novas leituras e escritores. É verdade que os selos de grande porte têm maior poder de fogo (divulgação e distribuição, acesso aos meios de comunicação, etc), mas não podemos perder de vista que o valor do livro está na obra escrita – e isso independe se tal ou qual editora o publicou.


CROQUI - Está trabalhando em um novo livro? Caso sim, o que você já pode nos adiantar?

MAURÍCIO DE ALMEIDA - Estou finalizando dois projetos, um livro de contos e um romance. O livro de contos se chama “Equatoriais” e pude arrematá-lo no período que fiz uma residência literária em Paaty, iniciativa concebida e realizada pelo Prêmio Off Flip de Literatura (ao qual agradeço a toda equipe na figura de Ovídio Poli Junior e Olga Yamashiro). O tema que perpassa os contos de “Equatoriais” é viagens pelo Brasil. De modo geral, as personagens estão fora de seus lugares de origem e devem lidar com o estranhamento de estarem em locais que não conhecem e lidar com hábitos distintos. Alguns desses contos tiveram origens em viagens que fiz, por conta de minha formação como antropólogo e servidor da Fundação Nacional do Índio – Funai.
     Neste momento, estou me dedicando à conclusão do romance “Contudo, setembro”. O livro trata de uma relação familiar e, de alguma forma, dialoga com “A Instrução da Noite”, no qual as ações são intensamente internas, “Contudo, setembro” extrapola esse limite e coloca os personagens no mundo. O livro conta a história de dois irmãos com rotinas e vivências completamente distintas que têm os caminhos distorcidos e são colocados em contato após uma situação limite interromper a rotina deles. 


CROQUI - Para além dos novos livros, quais são seus projetos literários e o quem tem feito nesse sentido nos últimos anos?

MAURÍCIO DE ALMEIDA - Como todo escritor, tenho uma série de projetos literários que ainda quero concretizar. Por isso, paralelo aos projetos literários que estão em andamento, estou sempre pesquisando materiais para esses objetivos futuros. Além da literatura, também escrevo peças de teatro (junto ao meu amigo e parceiro de escrita dramatúrgica, o escritor e jornalista João Nunes) e gostaria de ver esses textos no palco. Algumas peças que escrevi com o João já tiveram leituras dramáticas (Streaming, por exemplo, que fala sobre vazamentos de fotos íntimas, teve uma leitura dramática realizada pela CPFL de Teatro, sob direção de Abílio Guedes, no Café Filosófico CPFL), mas estamos trabalhando para a montagem desses textos.
     Por fim, fiz uma rápida incursão no mundo dos roteiros e, em parceria com o diretor campineiro Cauê Nunes, escrevi o roteiro do curta-metragem “3x4”, que venceu na categoria Curtas Regionais do 4º Festival de Paulínia em 2011. Cauê Nunes também escreveu e dirigiu o curta-metragem “Ao redor da mesa”, baseado em um conto que faz parte de “Beijando Dentes” (o curta está disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=TMxdQdAw4rs).


CROQUI - Você disse numa entrevista que lê muito poesia. Pensa em um dia publicar um livro de poemas?

MAURÍCIO DE ALMEIDA - Gostaria muito, mas não consigo escrever poesia. Minha única tentativa – além dos incontornáveis poemas juvenis escritos na adolescência – está registrada no Jornal Opção, de Goiânia, no qual participei do desafio “100 poemas de até 100 caracteres”. Apresentei u pequeno poema, que foi publicado ao lado de diversos escritores que admiro.


CROQUI - O que é Literatura pra você?

MAURÍCIO DE ALMEIDA - Uma forma de compreensão do mundo.







*Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Incomunidade, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).

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