terça-feira, 16 de outubro de 2018

tutorial para caçar baleias - thiago scarlata

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*Poema do livro salobre (Urutau, 2018).





para caçar uma baleia
o homem deve antes
descarnar completamente o amor
deixar em casa
o terço e o que ainda
lhe resta de cor nos olhos
na imagem fria do filho

um bom caçador de baleias
sabe onde elas dobram
e sobretudo
o que elas gritam
perseguem-nas até o fim
de sua compaixão

apesar de tudo
a baleia sempre crê
no casco cinza
não julga o aço
acredita em sua sombra
de baleia perdida

até que vem o atordoamento

é exatamente aí
que a baleia perde
a sua fé

entende que aquilo ali
não é uma baleia
e que aquele imenso
avatar à sua imagem
e semelhança
possui um motor
no lugar do coração

esse é o ponto-chave
para o acionamento dos arpões:
principal e secundários

a trinta metros do animal
já não há espaço
para fugas
ou interpretações
ele salta, pega ar
e você aperta o botão

agora a embarcação
é contrapeso
(após o arpão
ultrapassar as primeiras camadas
e abrir-se
como um guarda-chuva
nos interstícios da carne viva)

o mamífero, então,
já sem forças,
vira uma extensão
da própria navegação
por isso cautela
reduzir os nós
(manobras bruscas podem rasgar a pele
e condenar a mercadoria às profundezas do sal)

a essa altura
o navio-fábrica
já tem de estar circulando
nos arredores do arpoador
para que quando
sua enorme boca abrir,
a vitima seja içada
por cabos inoxidáveis,
vendo seu fio de dignidade
escorrido numa esteira

para nós, caçadores,
essa é a parte fácil

pois nesse instante,
carniceiros profissionais
assumem a responsabilidade
de enfrentar o olhar
dilacerado da baleia

vem o esquartejamento:
a serra
do osso
a ceifa
de toda cartilagem
e o ultrapocessamento

seu óleo e carne
são reservados,
seu sangue
escoado direto no mar
deixando o oceano, a cada abate,
um pouco menos azul
e mais escarlate






           *







*Lançamento do livro: 19/10/2018, às 19:00 na Rua do Resende / Lapa.


 


Thiago Scarlata nasceu no Rio de Janeiro em 1989. É autor de Quando não olhamos o relógio, ele faz o que quer com o tempo (Multifoco, 2017), Salobre (Urutau,2018) e mantém o site de crítica literária Croqui. Em 2016 foi finalista do Prêmio SESC de Literatura com o poema “Rio Velho” (presente neste livro) e em 2017 venceu o Concurso MOTUS – Movimento Literário Digital (UNIPAMPA). Participou de antologias e teve poemas publicados e traduzidos em diversas revistas, jornais e sites literários.
 
 

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