quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Entrevista com Tiago Franco - Tão fútil e de tão mínima importância

*Por Thiago Scarlata  

Tiago Franco nasceu em Niterói, em 1974. Escritor e psicanalista, publicou dois livros de contos e o romance Onde os paranoicos fracassam. Seus contos já lhe renderam prêmios literários, entre eles o Off FLIP. Tão fútil e de tão mínima importância recebeu o 1o lugar no Prêmio Rio de Literatura 2016, na categoria “novo autor fluminense”.






CROQUI – Conte-nos sobre como se deu a construção de F., o protagonista do livro e sobre como ele surgiu?

TIAGO FRANCO: A ideia original era acompanhar o desenvolvimento moral e psicológico do protagonista desde a infância à fase adulta, passando pelas experiências e situações que moldaram o caráter de F., como um romance de formação. Para isso, me inspirei no processo analítico, onde alguém se deita num divã e conta para um analista a própria vida no intuito de que, assim fazendo, possa saber mais sobre si mesmo. Na verdade, mais do que ao analista, essa narrativa que se elabora progressivamente durante a análise serve mais ao paciente. Em “Tão fútil e de mínima importância”, ela vai servir ao personagem principal para que enfim ele se torne aquilo que se é, para que ele se aproprie de uma parte obscura de si mesmo que insistia em negar.
         Todavia, ao contrário dos romances de formação, que mal ou bem desde sua origem têm um caráter moralista e conservador, eu quis subverter  um pouco essa ordem, tentando que o fútil, o ilegítimo, o infame pudessem paradoxalmente se transformar em algo sublime. “Tão fútil” é o negativo de um romance de formação. Em outras palavras, desde a epígrafe do livro tomada a Montaigne, na qual Os ensaios são lugar de uma investigação privilegiada do Eu, se meu romance se inspira nessa mesma linhagem de desbravadores do sujeito fundada pelo ensaísta francês, não o faz pela via da cultura e da civilização, mas da profanação.
         Então, para dar conta de F. e de seus avatares, foi preciso encontrar um narrador impessoal, que se refere ao anti-herói por meio do pronome ele, o que aproxima a narrativa do relato de um caso clínico, mas ao mesmo tempo instala o foco narrativo na intimidade do personagem, para que não haja garantia ao leitor de uma distância estética segura. Não se trata de um mero recurso técnico, pois ao final da narrativa percebe-se com mais clareza a razão da escolha de tal procedimento.



CROQUI – No sua visão, porque F. é considerado um anti-herói?

TIAGO FRANCO: Eu poderia lhe responder que F. é um anti-herói porque lhe faltam os atributos morais característicos de um herói. Sim, isso é em parte verdade, mas eu não estaria sendo totalmente sincero. No começo da narrativa, F. é uma criança. E as crianças muito pequenas não têm consciência moral, não têm noção de certo ou errado, o que lhes guia é fundamentalmente a busca por prazer. Depois é que elas vão assimilar a noção de interdito, a figura de um terceiro (o pai ou o seu substituto) que se interpõe entre a criança e a mãe, representando o não, a lei. A passagem edipiana da natureza à cultura, como alguns psicanalistas diriam.
         Nessa situação, além de criança, F. é bastardo. Desde a origem, a ausência do pai permitirá que ele seja governado apenas pelo próprio desejo, subtraindo-se à inibição de forças morais que atuam sobre os indivíduos. Essa condição irá perpassar toda sua existência e irá marcar todos os seus relacionamentos. Na verdade, é como se F. guardasse dentro de si, apesar de adulto, a criança que ele foi, como se ela continuasse atuando livremente, com a mesma inocência e a perversidade que só as crianças têm.
         Se por um lado, essa parte obscura de sua personalidade irá torná-lo vil e abjeto aos olhos da sociedade, por outro, isso que renegamos em nós mesmos F. irá assimilar, fazendo disso algo essencialmente seu, digno de admiração e enlevo. 




CROQUI – Acreditamos que, apesar da forte carga psicanalítica presente no livro, você conseguiu mesclar e dosar muito bem com a dimensão ficcional, suavizando um possível peso hermético de uma linguagem mais técnica e ao mesmo tempo ampliando as perspectivas do horizonte literário, criando com isso, um estilo forte e bem demarcado. Fale um pouco sobre esse processo de configuração da sua linguagem.

TIAGO FRANCO: Como a narrativa se aproxima ao relato de um caso, era preciso que o vocabulário da psicanálise atravessasse a linguagem da ficção, dotando a narrativa de uma condição intermediária, potencial, que criasse uma área de ilusão para o leitor.
         Para ser honesto, quando comecei a escrever o livro, esse artifício não estava presente, não de maneira consciente. É possível refletir sobre o que fiz agora, com o livro já publicado e, ainda assim, somente até certo ponto, porque acredito que nós autores não somos as melhores pessoas para avaliarmos nosso trabalho. Assim como os psicanalistas, os escritores também têm pontos cegos, áreas que escapam ao nosso campo de visão,  zonas de sombra, que os críticos e leitores poderão iluminar melhor que nós.
         Em razão da economia da narrativa, havia a necessidade de um narrador que ao mesmo tempo se identificasse com o protagonista, e tivesse certa empatia por ele, mas que também o analisasse com um ponto de vista clínico, como se buscasse extrair alguma verdade secreta que o próprio F. desconhecesse.





CROQUI – O que a divisão do livro nos três capítulos contribuiu para a narrativa? Teve algo a ver com algum procedimento presente na psicanálise, algo mais ligado ao ritmo do livro, ou algum outro fator?

TIAGO FRANCO: Se fôssemos tratar das razões manifestas para tal escolha, eu diria que a divisão ternária do livro contribuiu para situar o personagem primeiro em relação a ele mesmo, depois em relação à mãe e ao pai (ou seus substitutos), os personagens mais importantes depois de F., e por último, em relação àquilo que ele virá a se tornar. A primeira parte irá tratar da matéria do livro, essencialmente daquilo que o compõe, do que lhe dá substância, digamos assim. A segunda parte irá esmiuçar as razões determinantes para a formação do caráter de F., como as vivências da infância o transformaram naquilo que ele é então. A terceira e última parte irá criar as condições para que o protagonista vá de encontro a si mesmo, com a parte sombria que o constitui e que até então ficava de fora, assimilando-a e tornando sua afinal.
         Agora, se fôssemos tratar das motivações latentes, eu diria que o três remete ao complexo de Édipo, que está subjacente ao longo de toda a trama, às vezes de maneira mais evidente, às vezes de maneira sub-reptícia. É como se F. encenasse novamente, com outros personagens e noutra época, esse mito fundador da civilização, que impõe penas atrozes a quem não respeita o interdito do incesto e comete o parricídio. Freud se apropriou dessa tragédia criada por Sófocles há mais de vinte séculos para postular que toda criança nutre sentimentos amorosos em relação à mãe e hostis em relação ao pai, embora hoje saibamos que existem variações desse esquema clássico. O autor de O mal estar na civilização foi o primeiro a perceber os efeitos psíquicos dessa triangulação entre a criança, a mãe e o pai.
         Em “Tão fútil”, achei que essa divisão em três tempos podia funcionar como suporte para a narrativa que, em outro plano, desenrolava-se paralelamente ao redor das três figuras (F., a mãe, o pai) ou de seus substitutos (o analista, o avô, os patrões), criando um jogo de espelhos, que que não multiplicasse as imagens, antes as deformassem.



CROQUI – Um leitor desavisado pode crer que seu livro é meramente sobre o fetichismo (o que já daria muito pano pra manga, de modo positivo). Nós entendemos que a sua obra ultrapassa isto. O fetichismo está ali também como um instrumento para se chegar a embates morais e metafísicos, por outro lado, este mesmo elemento exibe força o suficiente na narrativa e se ramifica em diversos outros pontos através do narrador. Comente sobre essa relação.

TIAGO FRANCO: Se eu chegasse a escrever um romance sobre o fetichismo, me daria por plenamente satisfeito, porque teria a ilusão da companhia de Sade, Bataille e Sacher-Masoch. Todavia, ainda que o fetichismo compareça quase como um personagem à parte, o que me interessava mais do que o aspecto erótico  propriamente eram as relações que estabelece com o culto de objetos. Não é menos verdade que a admiração irrestrita, incondicional por uma coisa ou pessoa e, em última instância, a parcialidade, isto é, o ato de tomar partido a favor ou contra alguém, sem que importe a justiça ou a verdade, como o narrador faz do princípio ao fim, também eram aspectos que me interessavam relacionados ao tema, que procurei incorporar ao livro.



CROQUI – Quais são suas influências literárias mais importantes e o que está lendo atualmente?

TIAGO FRANCO: Eu não saberia dizer quais são minhas influências literárias, acho que nunca sabemos na verdade. Mesmo quando os escritores se põe a desfiar suas influências, eles mais erram do que acertam, porque os autores que mais os influenciam são os que parecem não ter tanta importância assim em sua formação.
         Nessa questão de influência, acho que quem melhor definiu esse assunto foi Borges, naquele assombroso ensaio sobre Kafka e seus precursores, que em muito se assemelha a um de seus contos, onde ele vai revelar que um escritor cria seus precursores, pelas múltiplas relações e afinidades que estabelece com os outros escritores e pelas modificações em nossa concepção do passado e na avaliação do futuro.
         No momento, estou lendo O caso Mersault, uma investigação que se propõe a dar uma outra versão de O estrangeiro, de Albert Camus. Um homem chamado Haroun recebe em Orã, na Argélia, um universitário de Paris interessado em conhecer a história subterrânea da obra-prima, cuja abertura já se tornou clássica: “Hoje, minha mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem”.



CROQUI – Está trabalhando em um novo livro? Caso sim, o que já nos pode adiantar?

TIAGO FRANCO: Já escrevi alguns começos em falso, agora tenho um prólogo e uma abertura, mas não sei aonde isso vai dar. Pode ser que não leve a nada, ainda é cedo para dizer, ou talvez seja o início de alguma coisa, vamos ver.
         Aprendi que a história que vou escrever não está ali desde o princípio ou, melhor, está, mas não exatamente da maneira como imaginava. No entanto, aos poucos, as coisas vão se revelando para mim, vou descobrindo o que fazer, mais do que propriamente ter conhecimento do que escrever de antemão. Nem sempre isso é fácil, ao contrário, às vezes é muito inquietante.
         Nesse caso, seria bom seguir o exemplo de Karen Blixen, autora de A festa de Babette: “Escrevo um pouco todos os dias, sem expectativas, sem desespero”, mas se não me falta disciplina, me sobram angústias.



CROQUI – O que é literatura para você?

TIAGO FRANCO: Eu diria, como Voltaire, que é aquilo que “ninguém encontrou nem jamais vai encontrar”.


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*Thiago Scarlata nasceu no Rio de Janeiro em 1989. É autor de Quando não olhamos o relógio, ele faz o que quer com o tempo (Multifoco, 2017), salobre (Urutau, 2018) e mantém o site de crítica literária Croqui. Em 2016 foi finalista do Prêmio SESC de Literatura e em 2017 venceu o Concurso MOTUS – Movimento Literário Digital (UNIPAMPA). Participou de antologias e teve poemas publicados e traduzidos em diversas revistas, jornais e sites literários.





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