Abro
o texto com o primeiro poema do livro, de nome Recanto, pág 19: “ergo um museu de silêncios / entre
besouros cegos e esporões perdidos / em uma praça que fica no coração da
memória. / aprendi que a verdade é um signo inflamável, / que os bares vendem
ausências / e que as pessoas estão cheias de vazios. / meu recanto é uma
varanda no hipotálamo / ateliê onde rumino um orfanato de cartas / e rabisco
pequenos infinitos. / carrego sempre um peso a mais / um insólito equilíbrio,
uma poética selvagem / para me defender do grito sanguíneo do tempo suicida / -
escondo minhas relíquias no avesso da lâmpada / onde as palavras têm febre e a
matéria se bifurca.”.
Como
uma inscrição na entrada de um templo, o poema abre-alas sintetiza bem toda a
arquitetura e estrutura do livro. O avesso das coisas é a morada da poética de Demetrios Galvão. Não espere em Avesso
da Lâmpada (Moinhos, 2017) nada puramente descritivo ou literal. O poeta não confunde,
em nenhum dos poemas, prosa com poesia, e, para além da forma, sabe que não
basta o formato de um poema para um poema ser poesia. É preciso outros
elementos, muitos deles sem nomes, e que tampouco podem ser “ensinados”, como
algumas oficinas de escrita criativa tentam, mas que Demetrios sabe manejar,
através de uma mão que é só dele.
Senti
no primeiro capítulo, que possui o mesmo título do livro, uma forte pegada
fílmica. Musculatura Cinética, pág 23, fez-me recordar do cinema russo
clássico, com sua valorização da pura imagem, de tomadas longas em pontos
fixos, sem fala alguma (apesar do texto e da brevidade do poema), como um
transcorrer das águas de um rio num filme de Eisenstein, um dos pioneiros do
que poderíamos chamar de “filmagem poética”. Vejamos a seguir, o poema o qual
me refiro: “os rios seguem um curso
imaginário / em uma parte do corpo, as águas transbordam / em outra, elas se
afogam / na margem do silêncio esférico / as árvores frutificam / uma espiritualidade
indomável / reviro a linguagem / à procura de um amuleto / - palavras que
alimentem a vida. / resisto com todas as manhãs / - não tenho tempo para
envelhecer.”
Demetrios Galvão - 2017 |
Em Silêncio das Formas,
segundo capítulo do livro, o autor prossegue com seu ritmo característico e a
ele adiciona algo, o qual eu não seria capaz de nomear, mas que faz drenar mais
substância ainda das coisas. Em trechos como os dos poemas Sonho Hereditário, pág 43:
“os cactos / tem a paciência / os gatos
/ a elegância”, e de Voz Vegetal, pág 44: “desvendar / a memória / das plantas / -
suas raízes / mais profundas”, já nos fornecem os fragmentos necessários
para seguirmos no enlaço do mais fino dessa vigorosa arte que Demetrios nos
proporciona, entretanto, eu não poderia fechar o meu comentário sobre este
capítulo sem transcrever, na íntegra, o meu poema predileto do livro. Falo de O
Besouro, pág 47: “os besouros /
são mestres / de lições incomuns. / preferem o silêncio / e o passo arrastado.
/ não sofrem de ansiedade / ou com a angústia dos homens. / habitam uma espessa
carapaça, / uma caixa forte, / para proteger um segredo / sem voz. /
desembrulham no ar / um impreciso movimento, / um voo sem conciliação. / - são
convencidos / do seu estranho / lirismo.”.
Metais Pesados, aloca-se na ideia integral
do livro, como uma ramificação impressionista, e, como o autor já havia provado
pelos outros capítulos, sua obra pode funcionar tanto num paralelo com um filme,
quanto com uma tela. Os oito poemas que o integram, pensados em conjunto,
acrescentam uma luz necessária à beleza do livro, como podemos exemplificar em Correspondência
#1, pág 56: “houve um tempo /
que meu coração / não tinha o infinito / dos dias de hoje. / - estadia no
subsolo - / não era permitido / o cheiro do café e / o sabor das palavras. /
não existia varanda / visita da lua / música iluminando os ouvidos. / -
colecionava planos de fuga / para um apocalipse inesperado - / no fundo do
aquário / os peixes desenterram o passado / como exercício de memória. / - me
acostumei a enterrar cadáveres / dentro de livros.”.
No epílogo de Cidades
Rabiscadas , parte final da obra, o autor escolhe competentemente um forte
trecho de Afonso Henrique Neto, que
agora compartilho com vocês: “desenterrar
uma cidade é surpreender uma fábrica de espaços. [...] desenterrar uma cidade é
uma montagem de abismos.”, e é isso que Demetrios faz neste desfecho. Nos
traz, dessa vez, não mais um “filme” ou um “quadro”, mas um álbum com trinta
distintas “fotografias”, com seu olhar tão peculiar sobre a cidade, das quais
destaco a décima, pág 73: “fechar as janelas diante do simulacro e
/ se derramar pelos diversos andares da cidade / “pelo hipertexto de suas
entranhas / de suas tripas magnéticas / de sua fauna nervosa e / sua flora
deserta em seu rizoma de concreto.”; a décima oitava, pág 77: “buscar uma fenda onde se esconder / no
paradoxo luz/sombra / um itinerário desconhecido nos bastidores do trânsito /
sob as sobrancelhas das janelas.” e a última, pág 83: “todo poema esconde uma cidade: / rostos dopados, entorpecidos de
vertigens. / e para lá... / para além do arame farpado / para além da janela de
tinta / para além do mau humor ou da felicidade da palavra / ecos telepáticos
da cidade subterfúgio / ecos subterrâneos da cidade nômade.”.
As analogias que fiz com outros gêneros artísticos, não
devem ser tomadas como fixos a cada capítulo que deleguei, mas de uma maneira
perceptiva completamente livre. A poética de Demetrios Galvão é de uma liquidez
absurda e foi isso que busquei apontar neste breve texto. Ler O
Avesso da Lâmpada é a prática do exercício dos contrários. Uma imersão
profunda em pequenos infinitos, personificados nos versos deste grande poeta
piauiense. Uma experiência, sem dúvida, transcendental.
Foto: Emanuelle Chaves - 2016 |
Demetrios Galvão, Teresina/PI. É poeta, professor e historiador,
com mestrado em História do Brasil. Autor dos livros de poemas Fractais Semióticos (2005), Insólito (2011), Bifurcações (2014), o Avesso da Lâmpada (2017) e
do objeto poético Capsular (2015).
Participou do coletivo poético Academia Onírica e foi um dos editores do blog Poesia Tarja Preta (2010-2012)
e da AO-Revista (2011-2012).
Edita a revista Acrobata, o blog Janelas em Rotação e colabora no
site LiteraturaBr.
*Thiago Scarlata é
poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas
publicados nas Antologias “Âmago” (Editora Regência/SP - 2011) e “Prêmio Sesc
de Poesia Carlos Drummond de Andrade 2016” e também nas Revistas “Gueto”,
“Escamandro” “Mallarmagens” e “Poesia Brasileira Hoje”, além de blogs
literários. Foi finalista do PRÊMIO
SESC DE LITERATURA 2016 , vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017 e finalista
do III CONCURSO DE
POESIA “PRÊMIO JAYME ROLDON 2011. Após esse hiato de 5
anos, retoma a escrita e agora publica seu primeiro livro de poesia, de título
“Quando
Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo”, pela
Editora Multifoco.
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