quinta-feira, 24 de maio de 2018

Nuvens são rios que voam

Arte: Leonardo Mathias @2017
*Por Thiago Scarlata

Assim como os poemas, nenhuma nuvem é igual a outra. Da mesma forma, cada um desenha na nuvem, conforme a imaginação, a imagem que seu espírito bem associar. Num paralelo freudiano, talvez as nuvens sejam como os sonhos. Atribuímos a elas e suas formas uma projeção de nós mesmos ou de tudo o que nos afeta… Quem não se lembra da imagem (esteriotipada, é verdade) do psiquiatra mostrando ao paciente diversos desenhos meio obscuros e perguntando: “o que você vê nessa imagem?”?

Para além disso, outro viés interessante é o de que nuvens, também, são como lembranças: se dilatam, se deformam, tomam outros caminhos e assumem outros símbolos e significados conforme o tempo reage sobre elas. Mesmo que as cenas e momentos que guardamos permaneçam aparentemente intactas em nossa memória, a realidade é outra, como as nuvens, as lembranças sempre serão baseadas em escolhas feitas pelo nosso subconsciente, que nada mais é do que uma substância que permanece após diversas filtragens. O que fica, é o que julgamos importante. Sejam os episódios bons ou ruins. Vamos mudando. Somos como as nuvens. Escrevemos poemas, que por sua vez também vão se modificando, enfim, identidade é algo que talvez não seja um ponto de chegada, mas um conceito mais aberto, sobretudo no que se refere ao fazer artístico.

Como me disse a própria Carla Andrade, Caligrafia das Nuvens (Patuá, 2017) é um livro composto de lembranças. Lembranças de infância, ainda em Belo Horizonte – sua cidade natal -, de Brasília, que impelidas por seu eu lírico se fazem presente e o que há de intransitório e de presença nesses trajetos que a vida inscreve, e, como disse Fernando Pessoa, “quem muda de casa, muda de país”.

Caligrafia das Nuvens é um livro bem eclético. Há lirismo, humor e erotismo nele. Entretanto, Carla, que parece ter a caligrafia já bem treinada e definida para poesia, não faz da obra uma ciranda disforme e aleatória. Cada poema foi competentemente posto numa posição ideal, o que deu ao livro um ritmo instigante, que não cansa o leitor, ao contrário, a poeta escalou os poemas numa formação que não me fez em nenhum momento ter vontade de colocar o marca-página, interrompendo e adiando sua leitura para um outro momento.

Com uma linguagem guiada pela coloquialidade e com poemas, em sua maioria, de tiro mais curto, há também na obra, conteúdos com uma atmosfera mais onírica, o que faz uma interessante ligação com a rede sensorial e memorial que a própria autora sugeriu e construiu. Durante a leitura de alguns poemas, por vezes não sabemos se são memórias do mundo real ou de algum sonho. Ou seja, todos esses elementos, (aparentemente fragmentos distintos entre si): saudosismo, amor, riso, pecado, afeto, banal, ausência, revolta, delicadeza, peso, instinto e delírio, sempre fazem parte de uma coisa só. Essa coisa, aliás, somos nós. Nossos poemas e nossas nuvens imaginadas. Carla Andrade é uma poeta muito bem resolvida. Sabe o que, quando e como falar, fazendo de Caligrafia das Nuvens, leitura mais do que aconselhável pra quem gosta de poesia. Melhor prova disso são os poemas que selecionei e que em seguida compartilho com vocês:


Moinho

Se amanhecer:
o prato esmaltado
e o sangue depenado
em cova rasa,
a galinha mais lenta.

As linguiças enforcadas
expostas por seus crimes
no estandarte da cozinha,
o porco mais gordo.

Lambança do chiqueiro,
a lavagem – cevada de
bicho de pé, berne, barbeiro,
sanguessuga.

A descontinuidade da vida
resolvida no erotismo do moinho,
no gozo exterminador do moedor.

A violência da roça.
É disso que preciso.


Terra de Gigantes

Acostumada
a olhar formigas.
Hoje
elas olham
para mim.
Me reduzi
A
Gente
Dita
Grande.


Arqueologia

Só quero agradecer
por entrar em mim
e tirar aquele homem
fossilizado em minha carne
há 15 anos, 16 anos.


We can do it

na garupa de um rinoceronte branco
escorrego dedos na sua bunda
mais ma vez a mordo
como se fosse achar
um bicho de goiaba.

Sua bundinha
nas minhas mãos
um corvo encolhido.

Cravo meus dedos
enguiçados de desejo:
áspero é sempre meu rodopio
no meu conta-gotas

Espreguiço minha língua
no contorno de sua vir(ilha)
à espera do rio Tejo.

Flanar em várias encarnações,
e na janela de Botero,
fumar entre uma fresta
e festa de penetra.

Assim como nossos monólogos,
você não me deixa
colocar o dedo onde devo...






Carla Andrade Bonifácio Gomes é de Belo Horizonte de 77. Está em Brasília desde 2000, e atua como jornalista e poeta na capital. Tem quatro livros publicados: Caligrafia das Nuvens (Patuá, 2017), Conjugação de Pingos de Chuva (LGE), Artesanato de Perguntas (7Letras) e Voltagem (7letras). Inquieta e arteira, morou um tempo na Califórnia, onde tentou aprender até a surfar e falar inglês fluente. Herdou um grande talento da tradicional família mineira: a arte de boiar e atravessar pinguelas.



*Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Enfermaria 6, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Avenida Sul, Incomunidade, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Poesia Primata, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016, vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017 e da SELEÇÃO PÚBLICA PARA PUBLICAÇÃO DA EDITORA URUTAU 2018. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).
E-mail: scarlatatts@gmail.com / croquiliteratura@gmail.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário