Arte: Leonardo Mathias @2017 |
*Por
Thiago Scarlata
Assim
como os poemas, nenhuma nuvem é igual a outra. Da mesma forma, cada
um desenha na nuvem, conforme a imaginação, a imagem que seu
espírito bem associar. Num paralelo freudiano, talvez as nuvens
sejam como os sonhos. Atribuímos a elas e suas formas uma projeção
de nós mesmos ou de tudo o que nos afeta… Quem não se lembra da
imagem (esteriotipada, é verdade) do psiquiatra mostrando ao
paciente diversos desenhos meio obscuros e perguntando: “o que você
vê nessa imagem?”?
Para
além disso, outro viés interessante é o de que nuvens, também,
são como lembranças: se dilatam, se deformam, tomam outros caminhos
e assumem outros símbolos e significados conforme o tempo reage
sobre elas. Mesmo que as cenas e momentos que guardamos permaneçam
aparentemente intactas em nossa memória, a realidade é outra, como
as nuvens, as lembranças sempre serão baseadas em escolhas feitas
pelo nosso subconsciente, que nada mais é do que uma substância que
permanece após diversas filtragens. O que fica, é o que julgamos
importante. Sejam os episódios bons ou ruins. Vamos mudando. Somos como
as nuvens. Escrevemos poemas, que por sua vez também vão se
modificando, enfim, identidade é algo que talvez não seja um ponto
de chegada, mas um conceito mais aberto, sobretudo no que se refere
ao fazer artístico.
Como
me disse a própria Carla Andrade, Caligrafia das Nuvens
(Patuá, 2017) é um livro composto de lembranças. Lembranças
de infância, ainda em Belo Horizonte – sua cidade natal -, de
Brasília, que impelidas por seu eu lírico se fazem presente e o que
há de intransitório e de presença nesses trajetos que a vida
inscreve, e, como disse Fernando Pessoa, “quem muda de casa, muda
de país”.
Caligrafia
das Nuvens é um livro bem eclético. Há lirismo, humor e erotismo
nele. Entretanto, Carla, que parece ter a caligrafia já bem treinada
e definida para poesia, não faz da obra uma ciranda disforme e
aleatória. Cada poema foi competentemente posto numa posição
ideal, o que deu ao livro um ritmo instigante, que não cansa o
leitor, ao contrário, a poeta escalou os poemas numa formação que
não me fez em nenhum momento ter vontade de colocar o marca-página,
interrompendo e adiando sua leitura para um outro momento.
Com
uma linguagem guiada pela coloquialidade e com poemas, em sua
maioria, de tiro mais curto, há também na obra, conteúdos com uma
atmosfera mais onírica, o que faz uma interessante ligação com a
rede sensorial e memorial que a própria autora sugeriu e construiu.
Durante a leitura de alguns poemas, por vezes não sabemos se são
memórias do mundo real ou de algum sonho. Ou seja, todos esses
elementos, (aparentemente fragmentos distintos entre si): saudosismo,
amor, riso, pecado, afeto, banal, ausência, revolta, delicadeza,
peso, instinto e delírio, sempre fazem parte de uma coisa só. Essa
coisa, aliás, somos nós. Nossos poemas e nossas nuvens imaginadas. Carla
Andrade é uma poeta muito bem resolvida. Sabe o que, quando e como
falar, fazendo de Caligrafia das Nuvens, leitura mais do que
aconselhável pra quem gosta de poesia. Melhor prova disso são os
poemas que selecionei e que em seguida compartilho com vocês:
Moinho
Se
amanhecer:
o
prato esmaltado
e
o sangue depenado
em
cova rasa,
a
galinha mais lenta.
As
linguiças enforcadas
expostas
por seus crimes
no
estandarte da cozinha,
o
porco mais gordo.
Lambança
do chiqueiro,
a
lavagem – cevada de
bicho
de pé, berne, barbeiro,
sanguessuga.
A
descontinuidade da vida
resolvida
no erotismo do moinho,
no
gozo exterminador do moedor.
A
violência da roça.
É
disso que preciso.
Terra
de Gigantes
Acostumada
a
olhar formigas.
Hoje
elas
olham
para
mim.
Me
reduzi
A
Gente
Dita
Grande.
Arqueologia
Só
quero agradecer
por
entrar em mim
e
tirar aquele homem
fossilizado
em minha carne
há
15 anos, 16 anos.
We
can do it
na
garupa de um rinoceronte branco
escorrego
dedos na sua bunda
mais
ma vez a mordo
como
se fosse achar
um
bicho de goiaba.
Sua
bundinha
nas
minhas mãos
um
corvo encolhido.
Cravo
meus dedos
enguiçados
de desejo:
áspero
é sempre meu rodopio
no
meu conta-gotas
Espreguiço
minha língua
no
contorno de sua vir(ilha)
à
espera do rio Tejo.
Flanar
em várias encarnações,
e
na janela de Botero,
fumar
entre uma fresta
e
festa de penetra.
Assim
como nossos monólogos,
você
não me deixa
colocar
o dedo onde devo...
Carla
Andrade Bonifácio Gomes é de Belo Horizonte de 77. Está em
Brasília desde 2000, e atua como jornalista e poeta na capital. Tem
quatro livros publicados: Caligrafia das Nuvens (Patuá, 2017),
Conjugação de Pingos de Chuva (LGE), Artesanato de Perguntas
(7Letras) e Voltagem (7letras). Inquieta e arteira, morou um tempo na
Califórnia, onde tentou aprender até a surfar e falar inglês
fluente. Herdou um grande talento da tradicional família mineira: a
arte de boiar e atravessar pinguelas.
*Thiago
Scarlata
(1989) é poeta, músico, escritor e editor do Blog
Literário Croqui.
Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e
também nas Revistas Gueto,
Enfermaria
6,
Escamandro,
Mallarmagens,
Monolito,
Avenida
Sul,
Incomunidade,
Janelas
em Rotação,
Poesia
Brasileira Hoje,
O
poema do poeta, Poesia Avulsa,
Literatura&Fechadura,
Poesia Primata, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio
Braziliense, Jornal RelevO, além
de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO
SESC DE LITERATURA 2016, vencedor do CONCURSO
MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017 e
da SELEÇÃO PÚBLICA PARA PUBLICAÇÃO DA EDITORA URUTAU 2018.
É autor do livro de poesia “Quando
Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo”
(Editora
Multifoco,
2017).
E-mail: scarlatatts@gmail.com / croquiliteratura@gmail.com
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