*Por Thiago Scarlata
Franklin
Carvalho é jornalista, pós-graduado em Direito e Processo do
Trabalho e jornalista na Assessoria de Imprensa do Tribunal do
Regional do Trabalho. O baiano é autor de dos livros de contos
independentes “Câmara e Cadeia” (2004) e “O Encourado”
(2009). Em 2015, recebeu o 2º lugar no Prêmio de Jornalismo Barbosa
Lima Sobrinho - Direitos Humanos, da Seção Bahia da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB-BA), na categoria Webjornalismo. Em 2016, o
seu romance Céus e Terra venceu o Prêmio Nacional de Literatura do
Serviço Social do Comércio (Sesc), o mais importante do Brasil para
autores inéditos na categoria. Em 2017, participou da comitiva
brasileira na Primavera Literária Brasileira e no Salão do Livro de
Paris, ambos os eventos realizados na capital francesa. No mesmo ano,
venceu o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Autor
Estreante com mais de 40 anos, e foi à Feira do Livro de Guadalajara
(México), como representante do Brasil.
CROQUI
– Fale-nos um
pouco do processo de criação e desenvolvimento do personagem Galego.
FRANKLIN
CARVALHO - Galego
já surgiu como está lá no livro, um menino cheio de potências mas
vulnerável, e com grandes expectativas em relação aos homens. É
uma criança como as que eu vi na minha infância, com desafios de
sobrevivência, obrigados a serem criativos para brincar, para comer,
para crer e até para morrer. Vivo ou morto, prepondera a
necessidade de inclusão, de encontro. Considerei importante manter
essa sensação de grande medo das crianças, que eu mesmo já senti
no meio do mato, crendo que seria resgatado. Não raro Galego cita
casos de garotos que se perderam, e lembra do que seria o maior dos
infortúnios, permanecer sozinho.
CROQUI
– A questão da
religiosidade/espiritualidade é muito forte na obra. Discorra como
foi para você tratar sobre o sincretismo religioso brasileiro no
romance. Esse fator estava presente desde as primeiras ideias de
composição do livro?
FRANKLIN
CARVALHO - Havia
uma percepção justamente do desconforto que é a espiritualidade
brasileira, por si só muito indefinida, confusa, cheia de culpas e
insegura. É algo que não chamo de sincretismo, mas de um misticismo
ao mesmo tempo reprimido, estigmatizado e hipertrofiado. Foi só com
o livro pronto que encontrei uma definição mais exata do que me
incomodava, na pesquisa do antropólogo espanhol Oscar Calavia Saez,
que estudou manifestações religiosas em cemitérios brasileiros.
Ele afirma que nossa população tem à disposição um panteão
muito vasto (Jesus, Maria, santos, orixás, espíritos de luz,
caboclos, milagreiros e outros) e que, embora se devote a um ramo,
não descrê e, principalmente, não deixa de temer todas as outras
entidades. Nossa religiosidade é também clientelista e regida pelo
medo, algo que eu já tinha dito, que brasileiro tem medo de tudo,
inclusive de lendas urbanas modernas, numa espiral crescente. O livro
é uma tentativa de exorcizar esses medos, a começar pelo temor
absurdo da morte e dos mortos, conferindo alguma leveza à narrativa.
CROQUI
– Você é
religioso?
FRANKLIN
CARVALHO - Sou
barroco, no dizer de Gregório de Matos, “Meu Deus, que estais
pendente de um madeiro, em cuja lei protesto de viver, em cuja santa
lei hei de morrer”. Tenho pulsões de busca e de recusa aos rituais
do catolicismo popular no qual fui criado, num sentimentalismo
paradoxal. Está tudo lá em Céus e Terra, as velas, as procissões,
os silêncios e assombros comungados. Tenho dificuldade de lidar com
a pregação eletrônica, com a performance ensaiada, o
neoconservadorismo e o consumismo religioso. Tratei dessas práticas
em textos ainda inéditos, com algum tom de ironia, como devem ser
tratados os temas que se crêem muito sérios.
CROQUI
– Galego é um
menino que vira uma espécie de santo na trama. Seu autor acredita em
milagres?
FRANKLIN
CARVALHO - A
ideia de transformar Galego num milagreiro surgiu depois de uma
visita ao Cemitério da Consolação, em São Paulo, onde há o
túmulo de um menino reverenciado como santo. Essa expressão ocorre
amiúde Brasil afora com devoções a pessoas que tiveram mortes
trágicas, escravizados, crianças, heróis cívicos, prostitutas
etc. O milagre na vida brasileira acontece não só com episódios
grandiloquentes, mas na vida ordinária, por exemplo, rogar e
encontrar um objeto perdido, sonhar e ganhar no jogo, orar e voltar
vivo da rua, sobreviver na crise. Creio em milagres e creio no
absurdo, mas essas coisas não estão necessariamente relacionadas.
Galego apenas tem fama de milagreiro, mas ele é antes de tudo
mágico, extraordinário.
CROQUI
– Na sua
interpretação, o que há de cidade no sertão e de sertão na
cidade (se é que há)?
FRANKLIN
CARVALHO - A
violência em todas as suas formas, principalmente a concentração
de renda, e a resposta a ela, a solidariedade, estão presentes em
todos os cenários brasileiros. Não há lugares idílicos, nem uma
situação de harmonia a que se possa voltar. Como diz a socióloga
Maria Isaura Pereira de Queiroz, o imigrante nordestino em São Paulo
já era exilado em sua terra de origem, sem posse das condições de
subsistência. Aliás, é preciso entender o caráter subjetivo
dessas violências, como ela assassina crianças e adultos mesmo
antes de matá-los de fome ou de bala. O Brasil é um país genocida
de criatividades e de gênios, um país suicida. A miséria tem esse
caráter subjetivo, de humilhação e de poda, e é possível
perceber as tragédias individuais que ela provoca.
CROQUI
– Ariano Suassuna
foi uma importante inspiração para a sua literatura? Nas suas
palavras, o que ele representa para o país?
FRANKLIN
CARVALHO - O
teatro de Ariano Suassuna, de João Cabral de Melo Neto e de Dias
Gomes, e a obra de Graciliano Ramos, me provocaram a tratar dos
elementos da popular a partir de uma abordagem direta, do que era
capturado na vivência. No caso de Suassuna, ele próprio reconhece
sua opção por manipular histórias e personagens do cordel, que foi
uma das minhas fontes de inspiração muito precoces. Em Araci, minha
cidade, cheguei a ouvir a leitura desses livretos em almoços na
roça. Aquele João Grilo que Suassuna resgatou do cordel também se
manifesta na pessoa do Galego, ambos hábeis negociadores, malandros,
tanto na terra como no céu – ou até no inferno.
CROQUI
- Houve
alguma pesquisa para a confecção do livro? Caso sim, como isso se
deu?
FRANKLIN
CARVALHO - Eu
tinha excesso de informações com relação a ritos funerários,
havia convivido e entrevistado muitas viúvas, tudo com vistas a
fazer um mestrado sobre a morte no catolicismo popular. Acabei
trocando o projeto acadêmico pela ficção e me desafiei a fazer um
livro que não tendesse nem para o científico nem para o teológico,
mas que buscasse uma solução poética para os personagens e seus
dilemas. O importante nesse tipo de situação é justamente cortar
toda a informação desnecessária e evitar o que parece ser mais
fácil, mais óbvio.
CROQUI
– Como
é o seu processo de escrita?
FRANKLIN
CARVALHO - Escrevo
à mão, recorro a tópicos que já explorei em anotações, como se
fizesse uma grande colagem. Mas não copio as anotações
literalmente, faço uma nova elaboração no curso do romance. Em
Céus e Terra, por exemplo, o trecho em que falo de perseguidos
políticos, me inspirei numa entrevista que fiz com um idoso, que eu
já havia publicado em jornal, mas criei outras nuances, incluindo
meus personagens no contexto. Não é raro usar gráficos para
calcular o tempo e a localização de cada fato ou personagem.
CROQUI
– Quais
são as suas influências literárias mais importantes e o que está
lendo atualmente?
FRANKLIN
CARVALHO - Gostava
muito da ambientação rural e ressequida de alguns livros de Nikos
Kazantzakis e de José Saramago. Um contexto camponês, quase
medieval, que ainda diz respeito ao sertão. Em 2018, voltei aos
clássicos com Dom Quixote e o Germinal, de Zola, que estou acabando
de ler, além de outras leituras, que faço ao mesmo tempo. No último
mês, resenhei a Instrução da Noite, de Maurício de Almeida, e
Lincoln no Limbo, de George Saunders. Este último livro foi lançado
neste ano e também tem cemitério como cenário e um protagonista
criança.
CROQUI
– Está
trabalhando em um novo livro? Caso sim, o que já nos pode adiantar?
FRANKLIN
CARVALHO - Tenho
um romance e um livro de contos prontos e revisados, ambientados em
cidades do interior, que estou tentando publicar, e estou obcecado na
criação de um outro romance, uma sátira à cidade moderna,
decadente, suas lendas e sua empáfia. Desconfio da modernidade, da
diacronia e da tecnologia. Recolho situações concretas da
comunicação e mostro o absurdo. Quando falta inspiração, vejo as
pessoas e as notícias, os discursos invertidos e o comportamento
submisso do homem informado.
CROQUI
– Possui
projetos literários para além de um novo livro, bem como palestras,
cursos ou eventos dos quais participara?
FRANKLIN
CARVALHO - O
ano de 2017 foi de agenda muito cheia, no Brasil e no exterior.
Consegui criar, até porque estava fazendo contos, mas agora priorizo
o desenvolvimento de novas ideias e técnicas, para trazê-las a
debate. Faço algumas palestras a convite de colegas e de
professores, mas sinto alguma necessidade de produzir algo sempre
mais arrojado. Pelo que estimo, volto a circular, mas com novos
trabalhos.
CROQUI
– O
que é literatura para você?
FRANKLIN
CARVALHO - É
script, algo que deve conter imagens, gestos. Aos doze anos fiquei
fascinado com o roteiro da peça Deus lhe Pague, de Joraci Camargo, e
durante muito tempo quis escrever para o teatro, li muitas peças
teatrais, Lorca, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos Sartre, Yonesco,
Brecht, Becket e outros. O que admiro em Cervantes e em Gogol é que
a prosa traduz a familiaridade dos dois com o contexto do palco, da
cena, algo histriônico. Amo a prosa poética e subjetiva, também
busco a densidade, mas acabo me voltando para a rapsódia.
*Thiago
Scarlata
(1989) é poeta, músico, escritor e editor do Blog
Literário Croqui.
Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e
também nas Revistas Gueto,
Enfermaria
6,
Escamandro,
Mallarmagens,
Monolito,
Avenida
Sul,
Incomunidade,
Janelas
em Rotação,
Poesia
Brasileira Hoje,
O
poema do poeta, Poesia Avulsa,
Literatura&Fechadura,
Poesia Primata, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio
Braziliense, Jornal RelevO, além
de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO
SESC DE LITERATURA 2016, vencedor do CONCURSO
MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017 e
da SELEÇÃO PÚBLICA PARA PUBLICAÇÃO DA EDITORA URUTAU 2018.
É autor do livro de poesia “Quando
Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo”
(Editora
Multifoco,
2017).
E-mail: scarlatatts@gmail.com / croquiliteratura@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário