segunda-feira, 4 de junho de 2018

Entrevista com Franklin Carvalho - Céus e Terra

*Por Thiago Scarlata

Franklin Carvalho é jornalista, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho e jornalista na Assessoria de Imprensa do Tribunal do Regional do Trabalho. O baiano é autor de dos livros de contos independentes “Câmara e Cadeia” (2004) e “O Encourado” (2009). Em 2015, recebeu o 2º lugar no Prêmio de Jornalismo Barbosa Lima Sobrinho - Direitos Humanos, da Seção Bahia da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-BA), na categoria Webjornalismo. Em 2016, o seu romance Céus e Terra venceu o Prêmio Nacional de Literatura do Serviço Social do Comércio (Sesc), o mais importante do Brasil para autores inéditos na categoria. Em 2017, participou da comitiva brasileira na Primavera Literária Brasileira e no Salão do Livro de Paris, ambos os eventos realizados na capital francesa. No mesmo ano, venceu o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Autor Estreante com mais de 40 anos, e foi à Feira do Livro de Guadalajara (México), como representante do Brasil.

CROQUI – Fale-nos um pouco do processo de criação e desenvolvimento do personagem Galego.
FRANKLIN CARVALHO - Galego já surgiu como está lá no livro, um menino cheio de potências mas vulnerável, e com grandes expectativas em relação aos homens. É uma criança como as que eu vi na minha infância, com desafios de sobrevivência, obrigados a serem criativos para brincar, para comer, para crer e até para morrer. Vivo ou morto, prepondera a necessidade de inclusão, de encontro. Considerei importante manter essa sensação de grande medo das crianças, que eu mesmo já senti no meio do mato, crendo que seria resgatado. Não raro Galego cita casos de garotos que se perderam, e lembra do que seria o maior dos infortúnios, permanecer sozinho.

CROQUI – A questão da religiosidade/espiritualidade é muito forte na obra. Discorra como foi para você tratar sobre o sincretismo religioso brasileiro no romance. Esse fator estava presente desde as primeiras ideias de composição do livro?
FRANKLIN CARVALHO - Havia uma percepção justamente do desconforto que é a espiritualidade brasileira, por si só muito indefinida, confusa, cheia de culpas e insegura. É algo que não chamo de sincretismo, mas de um misticismo ao mesmo tempo reprimido, estigmatizado e hipertrofiado. Foi só com o livro pronto que encontrei uma definição mais exata do que me incomodava, na pesquisa do antropólogo espanhol Oscar Calavia Saez, que estudou manifestações religiosas em cemitérios brasileiros. Ele afirma que nossa população tem à disposição um panteão muito vasto (Jesus, Maria, santos, orixás, espíritos de luz, caboclos, milagreiros e outros) e que, embora se devote a um ramo, não descrê e, principalmente, não deixa de temer todas as outras entidades. Nossa religiosidade é também clientelista e regida pelo medo, algo que eu já tinha dito, que brasileiro tem medo de tudo, inclusive de lendas urbanas modernas, numa espiral crescente. O livro é uma tentativa de exorcizar esses medos, a começar pelo temor absurdo da morte e dos mortos, conferindo alguma leveza à narrativa.



CROQUI – Você é religioso?
FRANKLIN CARVALHO - Sou barroco, no dizer de Gregório de Matos, “Meu Deus, que estais pendente de um madeiro, em cuja lei protesto de viver, em cuja santa lei hei de morrer”. Tenho pulsões de busca e de recusa aos rituais do catolicismo popular no qual fui criado, num sentimentalismo paradoxal. Está tudo lá em Céus e Terra, as velas, as procissões, os silêncios e assombros comungados. Tenho dificuldade de lidar com a pregação eletrônica, com a performance ensaiada, o neoconservadorismo e o consumismo religioso. Tratei dessas práticas em textos ainda inéditos, com algum tom de ironia, como devem ser tratados os temas que se crêem muito sérios.

CROQUI – Galego é um menino que vira uma espécie de santo na trama. Seu autor acredita em milagres?
FRANKLIN CARVALHO - A ideia de transformar Galego num milagreiro surgiu depois de uma visita ao Cemitério da Consolação, em São Paulo, onde há o túmulo de um menino reverenciado como santo. Essa expressão ocorre amiúde Brasil afora com devoções a pessoas que tiveram mortes trágicas, escravizados, crianças, heróis cívicos, prostitutas etc. O milagre na vida brasileira acontece não só com episódios grandiloquentes, mas na vida ordinária, por exemplo, rogar e encontrar um objeto perdido, sonhar e ganhar no jogo, orar e voltar vivo da rua, sobreviver na crise. Creio em milagres e creio no absurdo, mas essas coisas não estão necessariamente relacionadas. Galego apenas tem fama de milagreiro, mas ele é antes de tudo mágico, extraordinário.

CROQUI – Na sua interpretação, o que há de cidade no sertão e de sertão na cidade (se é que há)?
FRANKLIN CARVALHO - A violência em todas as suas formas, principalmente a concentração de renda, e a resposta a ela, a solidariedade, estão presentes em todos os cenários brasileiros. Não há lugares idílicos, nem uma situação de harmonia a que se possa voltar. Como diz a socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz, o imigrante nordestino em São Paulo já era exilado em sua terra de origem, sem posse das condições de subsistência. Aliás, é preciso entender o caráter subjetivo dessas violências, como ela assassina crianças e adultos mesmo antes de matá-los de fome ou de bala. O Brasil é um país genocida de criatividades e de gênios, um país suicida. A miséria tem esse caráter subjetivo, de humilhação e de poda, e é possível perceber as tragédias individuais que ela provoca.

CROQUI – Ariano Suassuna foi uma importante inspiração para a sua literatura? Nas suas palavras, o que ele representa para o país?
FRANKLIN CARVALHO - O teatro de Ariano Suassuna, de João Cabral de Melo Neto e de Dias Gomes, e a obra de Graciliano Ramos, me provocaram a tratar dos elementos da popular a partir de uma abordagem direta, do que era capturado na vivência. No caso de Suassuna, ele próprio reconhece sua opção por manipular histórias e personagens do cordel, que foi uma das minhas fontes de inspiração muito precoces. Em Araci, minha cidade, cheguei a ouvir a leitura desses livretos em almoços na roça. Aquele João Grilo que Suassuna resgatou do cordel também se manifesta na pessoa do Galego, ambos hábeis negociadores, malandros, tanto na terra como no céu – ou até no inferno.

CROQUI - Houve alguma pesquisa para a confecção do livro? Caso sim, como isso se deu?
FRANKLIN CARVALHO - Eu tinha excesso de informações com relação a ritos funerários, havia convivido e entrevistado muitas viúvas, tudo com vistas a fazer um mestrado sobre a morte no catolicismo popular. Acabei trocando o projeto acadêmico pela ficção e me desafiei a fazer um livro que não tendesse nem para o científico nem para o teológico, mas que buscasse uma solução poética para os personagens e seus dilemas. O importante nesse tipo de situação é justamente cortar toda a informação desnecessária e evitar o que parece ser mais fácil, mais óbvio.


CROQUI – Como é o seu processo de escrita?

FRANKLIN CARVALHO - Escrevo à mão, recorro a tópicos que já explorei em anotações, como se fizesse uma grande colagem. Mas não copio as anotações literalmente, faço uma nova elaboração no curso do romance. Em Céus e Terra, por exemplo, o trecho em que falo de perseguidos políticos, me inspirei numa entrevista que fiz com um idoso, que eu já havia publicado em jornal, mas criei outras nuances, incluindo meus personagens no contexto. Não é raro usar gráficos para calcular o tempo e a localização de cada fato ou personagem.


CROQUI – Quais são as suas influências literárias mais importantes e o que está lendo atualmente?

FRANKLIN CARVALHO - Gostava muito da ambientação rural e ressequida de alguns livros de Nikos Kazantzakis e de José Saramago. Um contexto camponês, quase medieval, que ainda diz respeito ao sertão. Em 2018, voltei aos clássicos com Dom Quixote e o Germinal, de Zola, que estou acabando de ler, além de outras leituras, que faço ao mesmo tempo. No último mês, resenhei a Instrução da Noite, de Maurício de Almeida, e Lincoln no Limbo, de George Saunders. Este último livro foi lançado neste ano e também tem cemitério como cenário e um protagonista criança.


CROQUI – Está trabalhando em um novo livro? Caso sim, o que já nos pode adiantar?

FRANKLIN CARVALHO - Tenho um romance e um livro de contos prontos e revisados, ambientados em cidades do interior, que estou tentando publicar, e estou obcecado na criação de um outro romance, uma sátira à cidade moderna, decadente, suas lendas e sua empáfia. Desconfio da modernidade, da diacronia e da tecnologia. Recolho situações concretas da comunicação e mostro o absurdo. Quando falta inspiração, vejo as pessoas e as notícias, os discursos invertidos e o comportamento submisso do homem informado.


CROQUI – Possui projetos literários para além de um novo livro, bem como palestras, cursos ou eventos dos quais participara?
FRANKLIN CARVALHO - O ano de 2017 foi de agenda muito cheia, no Brasil e no exterior. Consegui criar, até porque estava fazendo contos, mas agora priorizo o desenvolvimento de novas ideias e técnicas, para trazê-las a debate. Faço algumas palestras a convite de colegas e de professores, mas sinto alguma necessidade de produzir algo sempre mais arrojado. Pelo que estimo, volto a circular, mas com novos trabalhos.

CROQUI – O que é literatura para você?

FRANKLIN CARVALHO - É script, algo que deve conter imagens, gestos. Aos doze anos fiquei fascinado com o roteiro da peça Deus lhe Pague, de Joraci Camargo, e durante muito tempo quis escrever para o teatro, li muitas peças teatrais, Lorca, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos Sartre, Yonesco, Brecht, Becket e outros. O que admiro em Cervantes e em Gogol é que a prosa traduz a familiaridade dos dois com o contexto do palco, da cena, algo histriônico. Amo a prosa poética e subjetiva, também busco a densidade, mas acabo me voltando para a rapsódia.




*Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Enfermaria 6, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Avenida Sul, Incomunidade, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Poesia Primata, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016, vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017 e da SELEÇÃO PÚBLICA PARA PUBLICAÇÃO DA EDITORA URUTAU 2018. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).
E-mail: scarlatatts@gmail.com / croquiliteratura@gmail.com


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