*Por Thiago Scarlata
Antes da leitura de Corpo de Festim (Editora Penalux, 2016), de Alexandre Guarnieri, eu acreditava, assim como a maioria das pessoas, que uma das funções básicas de um poeta fosse a de extrair para uma folha, de modo a disponibilizar a todos que saibam ler, as nuances, sobretudo, de todas as menores coisas, e, com a habilidade de um artífice da língua, tornar essa leitura algo que provoque, entre outras sensações não menos interessantes, prazer e inquietação. Guarnieri, neste livro, mostra que nem só das pequenas coisas vive a poesia, mas também das absurdamente mínimas, que vão desde um átomo de carbono, seu poema abre-alas, carregando a origem de tudo neste “menor ponto de todos”, passando pela explosão do big-bang, o universo do próprio corpo humano até o desaparecimento completo, o que soou como uma analogia ao não-lugar de onde viemos (ou nos encontramos?).
Corpo
de Festim é um verdadeiro dicionário poético do corpo humano. Guarnieri, com
seu hiper-realismo inserido numa meta-linguagem (que de tão crua flerta com a
técnica), provoca, logo de cara, uma perplexidade íntima, uma auto-imersão no
leitor, levando-o ao âmago de sua própria máquina, a qual só temos
conhecimento, geralmente através de livros de biologia (à exceção dos que lidam
com saúde).
Essa
verdadeira “endoscopia” que o autor opera ao longo dos três capítulos: “Darwin
não joga dados, Mallarmé sim”; “Corpo de Festim” e “Vigiar
e punir” (título homônimo ao livro de Foucault), mostra através de uma poética cirúrgica, a dinâmica das
coisas químicas contida em tudo. É como se o autor quisesse deixar a mensagem: Há, até no objeto mais estático, muito
movimento, ou, como escreveu em no coração, pág. 42, figurar uma “Hidrografia
da fúria”.
Um
poema que ilustra bem o cerne da obra é o sangue, pág. 47: “no corpo / há tão
pouco espaço / entre um osso e outro / só o óleo dos glóbulos / passa (o
plasma) / quando não é pálido / (na ampulheta viva / sangue e tempo) / como a
graxa / (da máquina / escorre entre / as engrenagens / do relógio / bio lógico.”
Foto: Amanda Erthal |
Guarnieri brinca de Deus neste livro, e faz isso como poucos. Entre dissecações,
entupimentos, liberação de fluxos, tubos, resíduos, escoamentos, doenças,
pílulas, órgãos, micro, macro, célula e universo, o autor vai progredindo por
um campo geralmente hostil para a maioria dos poetas: o da construção
monotemática, onde, num plano mais geral, o título dita (ou poderia ditar) o
conteúdo do poema, o que só faz elevar seu vigor artístico à categoria dos
grandes nomes.
O
título da obra nos proporciona a maleabilidade da interpretação sugerida nele
mesmo. No meu caso, a metáfora extraída foi a do material “festim” unida a
outros ponto, que discorrerei em seguida. O cartucho de festim, é comumente utilizado
para uma adaptação do sistema nervoso do soldado (leitor) ao estampido do
disparo da arma (texto). Aliando isto a toda atmosfera predominantemente corpórea
do livro, destacando outro forte trecho, escrito em todo corpo, pág. 65, onde o poeta sintetiza: “todo homem tem o corpo como próprio logradouro”
e a figura recorrente de Houdini (um
dos maiores, senão o maior, ilusionistas da história), com seu corpo
acorrentado, nos fitando como quem provoca , como quem quisesse mostrar a
liquidez do corpo e da vida (uma ilusão?), entendi que um dos legados possíveis que Guarnieri nos deixa, é o de “descoisificação” da ciência, é o de decantação poética dos conceitos,
tão longe de nós (e da literatura) no alto de prateleiras das especialidades. E
seria essa umas das funções mais importantes da poesia? Eu não saberia
minimamente responder.
E
é num manifesto ao desaparecimento (não por acaso o poema que fecha o livro), em
mandala
de houdini que o poeta imprime um último sopro: “’ah, se harry houdini voltasse à vida!’ e se pudesse aprender com ele
(sem a interferência do medo), nestes dias de cansaço e desastre, na sentença
dessas tardes dominicais de tamanha descrença, num ato máximo de coragem,
livrar-se dos cadeados e das grades, (como se recebesse dele este presente
célere, entregue de uma só vez), num flash, num splash, no zás-trás ou
abracadabra, num golpe de mestre, ah se fosse possível simplesmente, e para
sempre, D E S A P A R E C E R D E V E Z.”
Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte.
Integra o corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens. Casa das
Máquinas (Editora da Palavra, 2011) seu livro de estreia disponível
online (ISSUU). Seu segundo livro é Corpo de Festim, vencedor o 57º
Prêmio Jabuti em 2015. Em 2016, publicou pela Patuá a antologia Escriptonita
(poemas tematizando super-heróis), do qual foi um dos organizadores. Seu
terceiro livro é Gravidade Zero (Penalux, 2016).
*Thiago Scarlata é
poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas
publicados nas Antologias “Âmago” (Editora Regência/SP - 2011) e “Prêmio Sesc
de Poesia Carlos Drummond de Andrade 2016” e também nas Revistas “Gueto”,
“Escamandro” “Mallarmagens” e “Poesia Brasileira Hoje”, além de blogs
literários. Foi finalista do PRÊMIO
SESC DE LITERATURA 2016 , vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017 e finalista
do III CONCURSO DE
POESIA “PRÊMIO JAYME ROLDON 2011. Após esse hiato de 5
anos, retoma a escrita e agora publica seu primeiro livro de poesia, de título
“Quando
Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo”, pela
Editora Multifoco.
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