quinta-feira, 15 de junho de 2017

Trapaça não é blefe

*Por Thiago Scarlata


    Se você está naqueles momentos em que ficamos secos por um livro de poesia, leia Trapaça (Oito e Meio, 2017). Mas se o dia for daqueles em que hesitamos ler qualquer coisa, sem saco algum para absolutamente nada, exceto uma garrafa de vinho ou cerveja, também leia Trapaça, aliás, mais ainda neste último caso.

Tratamos aqui de um livro versátil, líquido, que dialoga e penetra facilmente, sem a carga de uma linguagem pesada, que em muitos casos, é só casca estética. Contudo, não podemos confundir versatilidade com aleatoriedade fraca. Apesar da leveza e fluidez que sentimos ao longo do jogo poético que Marcelo Labes rege, movimentando o leitor conforme sua dança, quem supor que a jogada do autor é só blefe, não terá a experiência plena do livro, no que nele há de melhor.

      Trapaça é dividido em quatro partes. O que norteia a primeira, é o próprio ofício (nome de um poema, inclusive). O que é um poema? E, mais ainda, “Por que poemas? Volta e meia me perguntam.”, caso o poeta respondesse, não estaríamos falando de Labes, que então saca um “[Eu me faço essa pergunta / todo dia]”. A inquietação segue e então surge Despoema: “Se os poemas ao menos / dissessem que a gente / nunca chega, de fato, / a ganhar. / Então os poemas / seriam sinceros / [e já não haveria / mais que escrevê-los]”. Labes, nessa abertura, manuseia a pré-poesia, a pré-coisa, o que aliás, não é uma prática limitada ao livro, pois o autor também é criador e editor do site O poema do poeta, onde recolhe e publica manuscritos de escritores e poetas novos e consagrados, marginais ou mesmo os que frequentam os chás da ABL, sem restrições, expondo a manufatura, o artesanato da língua, o garrancho, a rasura, o desenho distraído no canto da folha, enfim, o crescimento de um original antes de passar pelo crivo do editor e transformar-se em livro, ou não.

Marcelo Labes, em Espaço Plural - 2017 - Blumenau/SC

     Labes não atende a uma caretice organizacional, a uma tendência limitadora vista em algumas recentes obras “ganhadoras de prêmio”, onde nota-se a entediante necessidade de uma coleira temática “cool”, enforcando em maior ou menor medida o conteúdo. O que percebemos aqui, é muito mais um ajuste ou um filtro do que uma divisão brusca de capítulos, algo que só faria algum sentido mais sério em qualquer outro gênero, só em último caso para poesia.

      O lirismo da Parte II é seguido pelo peso melancólico do tempo, seduzindo a memória até o chão da velha infância, como em Daniel: “naquele tempo a gente / enterrava os pássaros / e ainda não sabia que / iria enterrar os amigos” e cravando em Reviravolta: “recitar lembranças como se amanhã / rever fotografias / como se o foco / como se a luz / reestruturar: / relembrar / para / esquecer.”, da terceira parte.

      A “trapaça” de Labes está nessa capacidade de pintar, rasgar a tela e fazer disso, quem sabe, uma obra de arte, ou um ponto de introspecção e prazer, está nesse florir a armadilha na qual gostamos de cair.

      No meio desse armar e desarmar, nos deparamos, então, com o último ato da peça. Nele, o poeta dirige competentemente o desfecho do livro, como ilustro agora através dos trechos de Receita de Bolo Estragado: “Um poema mais perverso / do que ratos / eu queria / e não consegui escrever / nada que não coubesse / nesse dia.”; Paus e Pedras: “Na primavera das datas, / mais do que arco e flecha / havia ali um silêncio / trancado” e Pindorama: “esta terra / não pode ter nome / a não ser que se chame / terra-que-nunca-foi / mas ia.”.

      Não acredito em notas ou classificações de obras, sobretudo de poesia, que possuam raízes minimamente maduras, e por isso não abrirei nesta uma exceção. Entretanto, me sinto empenhado em afirmar que Trapaça é um livro, sem dúvidas, indispensável para quem gosta da boa e velha poesia.
     

 “Que o poema fale por si”, disse Labes. E que nós o deixemos em silêncio, pois é dali que sua voz, presente em cada verso, vai construindo lentamente sua sonoridade até o grito pleno, que é o seu poema. 


Marcelo Labes é poeta nascido em 1984 em Blumenau-SC. Autor de Falações (EdiFurb, 2008), Porque sim não é resposta (Antítese/Hemisfério Sul2015), O filho da empregada (Antítese/Hemisfério Sul 2016) e Trapaça (Oito e Meio, 2016). Participa da mostra Poesia Agora (edição carioca). Publica no blog http://mmlabes.blogspot.com e mantém a revista O poema do poeta (http://opoemadopoeta.wordpress.com), onde publica originais manuscritos de autores vivos e mortos, do Brasil e do exterior.


*Thiago Scarlata é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas publicados nas Antologias “Âmago” (Editora Regência/SP - 2011) e “Prêmio Sesc de Poesia Carlos Drummond de Andrade 2016” e também nas Revistas “Gueto”, “Escamandro” “Mallarmagens” e “Poesia Brasileira Hoje”, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 , vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017 e finalista do III CONCURSO DE POESIA “PRÊMIO JAYME ROLDON 2011. Após esse hiato de 5 anos, retoma a escrita e agora publica seu primeiro livro de poesia, de título “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo”, pela Editora Multifoco.


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