quinta-feira, 7 de setembro de 2017

O questionamento libertário em Quando não olhamos o relógio, ele faz o que quer com o tempo

*Por Alexandra Vieira de Almeida

    Encontramos neste livro excepcional de Thiago Scarlata, Quando não olhamos o relógio, ele faz o que quer com o tempo (Multifoco, 2017),o descentramento, o deslocamento do que é usual e medido - o que é alcançado pela via do cômico, do humor puro e do humor negro. O riso fere os ponteiros do tempo. A sua obra é um profundo insight bem elaborado que provoca a quebra das barreiras conceituais. O conceito se afiniza com o tempo. Não é pura e simplesmente uma crítica ao senso comum, mas a algo bem mais arquitetado, o nível dos nossos conceitos fechados dentro de um labirinto de enganos, cuja saída revela uma resposta pronta e acabada e não inusitada, como Thiago Scarlata pensa e prioriza. Há um deslocamento dos conhecimentos previstos, conhecimentos de vários campos do saber, da história, da ciência, da geografia, da matemática etc. Pessoa já radicalizara o original do não-saber a partir de sua metafísica que não pensava em nada. Scarlata propõe: “que não pensar em nada/ é pensar em tudo ao mesmo tempo?”. Não agregando um saber específico, esse saber se traduz como sabedoria que questiona e não apenas uma crítica social e moral que cria outra espécie de sistema de códigos aceitáveis. 

         Nos 37 poemas que compõem esse livro rico e original, vemos no poema que abre o livro, “Colômbia”, a quebra de um paradigma da época. Apesar de já ser conhecida a teoria da rotundidade da Terra, Colombo dá força ao movimento de esfericidade da Terra, desconstruindo o que era mais aclamado e aprovado. Acreditava na possibilidade de o mundo ser esférico: “o mundo estava chato/Então Colombo arredondou”. Isso se deu ao fato das rotas, pois chegando ao mesmo ponto quando contornasse de leste a leste ou de oeste a oeste, o ser humano pode comprovar essa teoria, que se tornou prática. Para Colombo, domar o mundo não era apenas uma conquista geográfica. Ele queria dobrá-lo à sua cosmovisão de mundo que era aberta em um círculo. Maior que a conquista física, era a conquista das ideias, a libertação das amarras, do conhecimento fechado; apesar de se ter o lado físico também, uma “Ciência” se inaugurou: “o mundo era pequeno/não bastava ao homem seus castelos,/um reino ou um império/e os tantos seres que domou”. O ir além, ultrapassar as fronteiras do conhecido, dos conceitos é a tônica máxima desse livro, que percorrerá os outros 36 poemas da obra de Scarlata. Seus poemas quebram com os padrões vigentes, com o senso comum e vai até muito além dos conceitos ao fazer um questionamento, trabalhar com as questões que se expandem em aberto sem demonstrar uma crítica minimamente social ou moralista. A problematização enriquece a bela obra de Thiago: “a noite prossegue/uma noite de outra ordem/a que nunca vemos”.

         Em “Pescaria”, percebemos novamente esse olhar questionador que liberta, provoca uma ruptura com o que a sociedade pensa: Sem julgamento moral, culpa, o poeta diz: “Sem culpa, joga a rede o pescador/Sem culpa cai na rede o peixe”. As coisas ocorrem naturalmente na sua inversão de valores, o que é atingido pelo alto nível irônico e complexificante do poema. Há um paralelismo homem-peixe/peixe-homem, em que ambos se intercambiam, trocam de lugares. Há um questionamento a partir disso e não apenas um julgamento simplesmente moral. Vejamos: “após um dia pescando ao sol/o pescador tá até queimado/já o peixe ou tá frito/ou cozido, ou assado”. Aqui, o questionamento do que se faz socialmente é provocado pelo riso. O grande teórico e filósofo francês do cômico foi Henri Bergson (1859-1941). Ele produziu um livro fantástico sobre o assunto. Em O riso: ensaio sobre a significação da comicidade, ele diz: “Ao contrário, na emoção que nos deixa indiferentes e que se tornará cômica, há uma rigidez que a impede de entrar em relação com o restante da alma na qual ela assenta”. O cômico, provocando esse “enrijecimento para a vida social”, faz com que os defeitos e os vícios não sejam levados a sério, provocando o humor. É dessa forma que Scarlata alcança sua magnitude no seu livro.

Poema da 4ª capa do livro
            Mikhail Bakthin tem um livro que revela a força da cultura popular a partir da visão do mundo carnavalesco, que ele encontra no escritor francês Rabelais. No livro monumental A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, ele afirma: “O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época”. Percebemos em Scarlata a carnavalização da realidade, ao quebrar com os níveis identitários, amalgamando tudo num único lampejo de vida, ao afirmar, no poema “Península”: “me chamam homem/mas todo homem/é também mulher,/uma criança e um velho”. Essa quebra de uma essência do ser num único elemento perfaz a imagem do homem múltiplo e carnavalesco do poeta Scarlata que retoma a figura de nosso eterno Mário de Andrade que configurou a partir da personagem Macunaíma esse ser plural e fantasiado de camadas. Num de seus poemas, Mário de Andrade diz: “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta,/As sensações renascem de si mesmas sem repouso,/Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh! caiçaras!/Se um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!”.

         Num dos poemas, o poeta por ora aqui estudado nos revela: “a matemática de meu avô,/vejam só,/até ela me falta/suas certezas cirúrgicas”. Não é num mundo de certezas e redundâncias, que Scarlata vai se pautar. Ele vai buscar o tropel dos cavalos selvagens em sua viagem natural e desvairada. Rompendo a linguagem da decadência, dos escombros: “cumprindo toda a decadência/que escorre no mundo”. Ele busca o momento vivo da linguagem poética, que é tecida por imagens originais, não nomeadas pelo universo insosso da realidade sem a sua poeticidade: “a graxa do sol lambe a casa”. O que não é nomeado, identificado é o sol de seu lirismo, não carcomido pelo tempo, mas que ultrapassa todos os ponteiros do mundo, o relógio mortífero das horas: “e aquela coisa que não sabemos o nome”. Também temos a explosão da melancolia em meio ao riso, alternando a vida com seu paradoxo: “desde que deixei meu quarto/minha mãe vela ali/ a ausência de um menino”. É deste signo feito de ausências que se constrói a linguagem poética da obra em questão. O signo marca uma presença e uma ausência. Thiago coloca em pauta a força das ausências, dos interditos, de lembranças feitas de nuvens aéreas.

Foto de divulgação. @2017

         Em “Turista”, confrontamo-nos com o olhar estrangeiro, que é o lado cômico de nossa natureza, um lado repleto de grandiosidade e reflexão: “o olhar turista/é um olhar/faminto//de cômica violência//retina atônita//lambendo tudo/que o guia/aponta//rindo//pelos//olhos//levam na mala//outra cidade/que não a nossa.” Se em Thiago Scarlata há uma supervalorização do questionamento do cômico e seu valor ricamente social, nos primórdios da Comédia encontramos a concepção aristotélica, em sua Poética, de desvalorização desse gênero literário. Só na modernidade é que o cômico ganha com muita força sua dimensão grandiosa, principalmente, a partir das concepções de Bersgon, com sua teoria do riso, e Freud, com sua ideia dos chistes. Em Aristóteles, na sua Poética, temos: “A comédia, como dissemos, é imitação de pessoas inferiores; não, porém, com relação a todo vício, mas sim por ser o cômico uma espécie de feio. A comicidade, com efeito, é um defeito e uma feiura sem dor nem destruição; um exemplo óbvio é a máscara cômica, feia e contorcida, mas sem expressão de dor”. Em Scarlata, a comicidade é rica em mostrar sua face outra, estrangeira, como um turista que está aprendendo a amar a outra cidade, trazendo sua diferença, seu gosto outro, que requer um olhar perspicaz. O violento, o agressivo eo sério convivem com o lado cômico, revelando sua multiplicidade em não ser apenas um riso fácil, mas estratégico, bem urdido na sua tessitura poética e lírica.

         No poema “Desencanto”, temos a imagem da criança como crítica aos modelos, com a revelação do inusitado, do novo: “só criança entende mágico//a recusa do método//o bom do espanto”. O mundo adulto é visto como redução do mundo mágico e imaginário, com a rigidez dos conceitos fechados, sua cristalização:“enquanto a nós, desgraçados/muito adultos,/não basta a alegria/plena, crua//a nós o truque/é má fé/que hoje vende-se/na rua”. Esta desconfiança dos adultos constrói tudo num sistema organizado sem ter o mundo mágico e curioso do infantil. Esse é o que está na origem, nos primórdios, fonte de rio e riso.


Foto da 4ª capa do livro, "Casa de Passarinho", do próprio autor. Petrópolis/RJ, 2015.

         Para finalizar nosso estudo, podemos perceber também, na obra de Scarlata, doses de humor negro. Como exemplo, temos a seguinte passagem: “após sua leitura este poema/deve ser cremado e distribuído/ no mais próximo mato/[mini morte de métrica poesia]/fermentado, assim, de alguma maneira o devir do parto”. No riquíssimo dicionário online, organizado por Carlos Ceia, “E-Dicionário de Termos Literários”, temos uma concepção de humor negro: “Manifestação de humor desconcertante e com caráter libertário em que elementos macabros, absurdos ou violentos se associam ao cômico. O conceito de humor negro foi introduzido pelo surrealista André Breton...”. Nesse poema de Thiago, encontramos a subversão do cômico a partir de seu elemento oposto, em que, contra toda sentimentalidade e conformismo, encontramos um texto que explode em significados vastos e contraditórios, o que é triste, macabro e sombrio renasce na força potencial do cômico, no seu devir de vida, o parto. Morte e vida se mesclam, formando o paradoxo inaugural da poesia. Portanto, nesse livro original, que quebra com os parâmetros socialmente aceitos, temos um poeta-mestre, que faz de sua poesia o lugar do não-lugar, que ultrapassa o tempo, a memória, com o degredo de todas as concepções fechadas. E é a partir do questionamento do humor, que o poeta aqui em questão revela sua face mais sólida, não deixando a liquidez das águas afundar o que ele tem de mais visceral, que é seu canto poético traduzido em filosofia e reflexão. Um poeta que vai deixar marcas na nossa poesia nacional.




Thiago Scarlata é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas GuetoEscamandroMallarmagensMonolitoJanelas em RotaçãoPoesia Brasileira Hoje, Poesia AvulsaMOTUS, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 e JAYME ROLDON 2011, e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).



*Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.

Contato: alealmeida76@gmail.com

2 comentários:

  1. Ah, o humor inteligente, irônico, escrachado... Faz-se mais necessários principalmente agora, nestes tempos tão sombrios.
    Grande resenha!

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