Após
a leitura de Ratos & Outras Máquinas Orgânica, me deparei com uma
comparação daquelas de jornalismo meio chulo, onde elenca-se uma figura
contemporânea a uma clássica, feita seja para vender jornal, ganhar cliques a
partir das manchetes,ou simplesmente falta de alusão melhor. Todavia, tanto por
se tratar de um blog de literatura, que naturalmente tem poucos acessos (do
mais famoso ao mais tímido), o que me livra de ser tachado de “sensacionalista”
ou algo que valha, quanto pelo fato desta associação (meramente interpretativa,
é verdade) se colocar inevitável ante a mim, obrigo-me de fazê-la: Richard
Plácido é uma espécie de Kafka da
poesia.
Não
vou prosseguir este texto gastando tempo confrontando os dois autores, mesmo
porque quero me ater somente a este inquietante livro de poesia, tampouco antes
perguntar ao poeta (que é meu amigo) se Kafka o influenciou, pois isso
realmente não importa. “Kafkiano” é uma expressão. É a cidade, a desesperança,
o espanto, a resignação, etc... Mas ninguém precisa ler Kafka para ser
“kafkiano”. De qualquer modo, para além da obra geral de Kafka, separei e
compartilho agora, antes de entrar no livro em questão, um breve texto do
escritor tcheco muito pertinente e que pode ser tomado como uma chave
importante para discorremos sobre a poética de Plácido, chamado Pequena
Fábula, escrito no início do século passado:
‘“Ah”, disse o rato, “o mundo torna-se a cada dia mais
estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e
me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à
esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para
a outra que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual
eu corro”. -“Você só precisa mudar de direção”, disse o gato, e devorou-o.”
O “rato” de Richard, sendo máquina e orgânico
ao mesmo tempo, é o próprio feeling. Como
se o medo tivesse patas. A fome um nariz que fareja o podre, os restos
indesejados. E a cidade olhos de rato, apontados pra cada beco, para o underground das coisas. Disse o autor
numa entrevista: “Máquinas não tem sentimentos e o rato não tem sentimentos,
mas existe uma racionalidade nele que me assusta”. Ao longo da leitura dos três
capítulos do livro, “Entre Ratos”, “&” e “Outras
Máquinas Orgânicas”, a figura do rato vai se aproximando da nossa. Fui,
gradativamente, me identificando com este rato-homem, que através de uma
poética anti-lírica, seca, stoner,
cheia de punch, vai se alinhando e
traçando os mesmo passos que os nossos: um caminho sem volta. Essa “bifurcação”
que dá no mesmo lugar: o nada.
Richard Plácido @2017. Foto: Wilker Melo. |
Em A Tal Iluminação, fica clara
essa confluência entre homem, cidade e animal, como se todos fizessem parte de algo
único e inevitável. Vamos ao poema: “merda de pombo/caiu na boca do cachorro/o
cachorro cagou na minha porta/não mereço tal iluminação/boca do cachorro/me
mordeu na porta/o pombo se aninhou no telhado/não mereço tal iluminação/o rato
roeu a asa do pombo/a pata do cachorro/e a minha boca cagada”.
Richard Plácido é daqueles poetas que dizem
mais com menos (particularmente, meus prediletos). Ele, em momento algum,
confunde prosa com sua poesia. É daqueles escritores que gasta mais tempo
elegendo meia dúzia de palavras (certas) do que geralmente se perde escrevendo
um conto, uma crônica ou um capítulo de um romance, por exemplo. É meticuloso.
Me confessou que possui somente doze poemas para seu novo livro e que não tem
pressa. Entre Ratos & Outras Máquinas Orgânicas segue essa linha enxuta e vigorosa,
com um ritmo em que um poema puxa o outro e te leva como numa correnteza sem
volta. E realmente, depois de Richard não há volta.
Ilustração: Gustavo Morais |
Finalizo com um dos meus poemas prediletos do
livro, de nome O Mar: “o barco sempre afunda/pode
demorar/mas/afunda/afunda o barco/sempre afunda/como ontem o barco afundou/hoje
pode/o barco sempre afunda/mas ontem/sempre o barco/à margem afunda/mar no mar
o barco/ontem hoje o barco afundou/no fundo do barco/o mar fere o peixe-boi”.
Richard Plácido é poeta e contista. Em 2016, publicou o livro entre ratos & outras máquinas orgânicas (Imprensa
Oficial Graciliano Ramos). É mestrando em Estudos Literários pelo PPGLL/UFAL,
integrante do grupo de pesquisa Literatura & Utopia e do coletivo literário
ELISA. Em 2015, foi aluno do Laboratório Sesc de Criação e Expressão Literária,
ministrado pelo escritor Nilton Resende. Publicou nas revistas de literatura
Alagunas, Mallarmargens, Gueto e Escamandro. Foi premiado em três edições do concurso
de contos Arriete Vilela e na primeira edição do concurso Poesia & Utopia. Contato:
richardplacido.com | placidorichard@gmail.com.
*Thiago Scarlata
é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas
traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto,
Escamandro,
Mallarmagens,
Monolito,
Janelas
em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, Poesia Avulsa, MOTUS, Jornal RelevO, Literatura&Fechadura,
além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 e JAYME ROLDON 2011, e
vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO
LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando
Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).
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