quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

O Adágio de Crisântemos depois da ausência

*Por Thiago Scarlata



         Crisântemos depois da ausência (Giostri, 2017), do premiado poeta Airton Souza, é um livro, antes de tudo, sobre o tempo. Uma ciranda de vida e morte, de perda e saudade rodeia versos de um lirismo quase épico, que através de uma veia altamente memorial, dá vigor a uma melancolia madura, de uma beleza única: “a impiedade dos dias/caminha para dentro/de mim”.

         A impressão que se tem é que Airton não escreve exatamente em português, mas que seu texto foi traduzido de alguma língua ainda desconhecida. E aqui não falo meramente de estilo, mas de uma estrutura comunicacional distinta, com sua própria mecânica e fluido, não se tratando de enxertos de linguagem como, por exemplo, neologismos, construções herméticas, eliminações de artigos ou inversões predicativas (nada contra quem os utiliza). Os poemas de Airton soam como enigmas inscritos numa língua mista, isto é, estão em português, mas há algo ali que nos instiga. Que, apesar da leitura, vai além da leitura. O poeta parece ter alcançado, se me permitem um clichê necessário, a verdadeira voz de sua alma: “se pudéssemos eleger telhados/sombras retiravam as imagens mudas que os/espelhos sempre identificam/mão fosse o assombro dos dias”.

         A poesia airtoniana é altamente sinfônica. Um adágio em consonância com o que há de mais valioso num poeta: a capacidade de provocar reflexão, espanto ou simplesmente a extração da beleza oculta das coisas.

         “deus e sua cicatriz no olho destro/construíram o estranhável mundo/e tudo aquilo imperceptível/na afiançada língua/ardil de perda e busca”. Os poemas de Crisântemos depois da ausência me remetem muito a mesma essência e ritmo presente nas preces. Aqui, um rogo feito a um deus errante. Não precisamente um pedido ou um questionamento a este, mas a feitura de algo com a matéria-prima (quase sempre devastadora) que Ele deixou ao poeta que, diante da impossibilidade humana de reaver o amor cimentado pela morte, faz de seus poemas flores acomodadas em lápides: signo perpétuo da saudade.

         Crisântemos depois da ausência é tudo isto e mais. Ele é como uma anti-Bíblia. Uma resposta indireta ao livro sagrado, mas não por uma via óbvia, antagônica, ateísta ou qualquer outra coisa de fira a fé alheia. Diria até que são livros complementares. Airton aqui, revela apenas uma outra face de Deus. Um contorno que é só dele. Cada um, aliás, possui uma experiência distinta do divino, negando ou não a religiosidade.

         O poeta, nesta indispensável obra, tece um inventário sensitivo e biográfico. Mostra que, o passado é indissociável do presente. Que estar no mundo, é viver acumulando tanto ausências quanto novas permanências. Assume, em vários momentos, a própria voz do morto, que é a personificação do não-ser, nos deslocando para lugares em que a mera razão não é, nem nunca será, capaz de alcançar. Airton não foge ao seu ofício mais urgente: ser poeta.

         A melhor forma de terminar um texto sobre este poeta, que já se firma como um dos principais nomes da poesia no país, e a obra presente, não é com um parágrafo crítico, mas com um de seus inevitáveis poemas:


  não tenho ramagem para o amanhã
                  contrai espera pela boca
                         que não desperta risos       

             também não antecipo instantes
                      vou até depois das flores
                                   a tanger o canto
 [inaudível verdade sem importância]

                                     tingido de cova
                 lanço o tombo resguardado
           na herança de forjados ombros

                                sou só impassível!

           se nos resta ainda alguma coisa
              entre elas a mão & o mistério
                     a lavar os joelhos difusos
              a calar os murmúrios oclusos

            onde estará, depois da nervura,
                            o naufrágio que cura
                          a véspera da loucura?









Airton Souza é poeta e tem publicado 30 livros entre poemas e literatura infanto-juvenil, além de ter participação em mais de 70 antologias literárias. Venceu diversos prêmios literários, entre eles: Prêmio Proex de Literatura, promovido pela Universidade Federal do Pará – UFPA, 5º Prêmio Cannon de Poesia, Prêmio LiteraCidade de Poesia 2013, Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura 2013, IV Prêmio Proex de Arte e Cultura, com o livro de poemas manhã cerzida,  III Prêmio de Literatura da UFES, promovido pela Universidade Federal do Espírito Santo, com o livro de poemas Cortejo & outras begônias, Prêmio Nacional Machado de Assis, promovido pelo Canal 6 Editora, 1º Lugar no Prêmio LiteraCidade Prosa 2014, 1º Lugar no Prêmio Gente de Palavra 2017, organizado pela Editora Litteris, do Rio de Janeiro, 5º SFX de Literatura 2017, Prêmio Carlos Drummond de Andrade 2017, promovido pelo Sesc de Brasília, I Prêmio CAPT de Literatura 2017, obteve ainda menção honrosa no Prêmio Letrinhas do Brasil, com o livro infantil Os dias dentro da saudade, foi finalista no Prêmio Kazuá de Literatura 2016, com o livro um acenos aos girassóis e só em 2017 esteve entre os vencedores de mais de vinte prêmios literários, entre os quais: 1º Lugar no Prêmio de Poesia Cruz e Sousa, promovido pela Editora Do Carmo, de Brasília, o Prêmio Vicente de Carvalho, da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro, com o livro crisântemos depois da ausência, o Prêmio da Academia Ferroviária de Letras, o Prêmio Clóvis Meire – categoria monografia e o Prêmio Vespasiano Ramos – categoria poesia, da Academia Paraense de Letras de 2017 e o Prêmio Nacional de Literatura da Fundação Cultural do Pará 2017, com o livro o tumulto das flores. Atualmente é mestrando de Letras, pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará.



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Thiago Scarlata é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, Poesia Avulsa, MOTUS, Jornal RelevO, Literatura&Fechadura, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA entre outros e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).


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