Capa: Leonardo Mathias @2012 |
*Por Thiago Scarlata
Estava colhendo o material para essa publicação. Pedi ao autor o
envio, dentre projeto gráfico do livro (do excelente Leonardo Mathias, por sinal) e foto, uma minibiografia, como faço
sempre. Então me deparo com o seguinte texto: Editor de livros, produtor cultural e ex-poeta. Editor da Editora
Patuá e garçom do bar Patuscada. Esse
é Eduardo Lacerda, um homem bem humorado, de singelezas e
que se autodenomina “ex-poeta”. Um cara simples que nos faz refletir de que, no
final das contas, todos nós (que já escrevemos um livro de poesia) somos
ex-poetas. O poeta “acaba” no ato da conclusão de uma obra ou de um poema.
Depois disso, recobramos nossa banalidade no cotidiano, e, contra isso nada
podemos fazer. Poesia, então, seria um lugar “fora da poesia” e o que
entendemos por poeta, uma pessoa absolutamente comum, antes de qualquer coisa. Aliás,
Eduardo, com isso, sugere que não há “poeta”, só poesia. Sendo esta fruto da mediação do homem/mulher inserido(a) num mundo pulsante, indo de encontro a um
pequeno poema de W.H.Auden: “Não pretendo de passional/enforcar-me no
próprio verso/nem tampouco publicá-lo/na gramatura do ego/Não existe poeta/Só
poesia”.
Outro
dia de folia (Editora Patuá, 2012) é isso. É vivência. É
calor. É música, amizade e festa. O escape de temas “duros” para um plano mais
“líquido”. Uma obra onde fluidez e leveza ditam o ritmo de uma dança coletiva.
Essa, aliás, é uma importante marca deixada por Eduardo. A sensação que se tem
é a de que este é um livro coletivo escrito por somente um autor, que insere,
retira e troca (e se confunde com) seu elenco de amigas e amigos ao longo das páginas. E pelo visto, Eduardo é uma
pessoa muito bem acompanhada.
Ilustrações: Leonardo Mathias @2012 |
Graça e desgraça. Gargalhada e riso
cínico. Infância e juventude. E vigor. Sempre vigor. O ex-poeta nos brinda com
esses elementos em poemas como A Última Ceia (pág. 23): “Há regras à mesa/como em
um brinquedo/de quebra-cabeça./E eu não entendo/os dispostos à esquerda/dos
pais./Restos do pequeno/que sentavam ao meio/da mesa (como prato/que se enche/e
procura lugar entre/as pessoas)./Já não me encaixo/depois que aprendi/a olhar
de lado/e sair por baixo”, onde rompe com os parâmetros da família tradicional; Candelabro (pág.
36): “Já à primeira vez que foi
a um/cemitério, a mãe cobriu seus/olhos que choravam e sussurrou:/- Nunca
acenda velas em casa,/que os espíritos acostumam/e não raro no acompanham -/Nunca
mais acendeu/velas em casa, tinha era/medo dos espíritos./Teceu-lhe a vida
muitos passados,/outras passagens ao cemitérios. (Das/últimas vezes já as
trazia roubadas.)/Nunca quis acender velas em casa,/tinha era medo dos
espíritos. Teve/depois, muitos, muitos anos depois/medo da solidão. E acenderia
estes/presentes: a gift to the gost, pois/os espíritos acostumam e, não
raro,/nos acompanham”, apontando uma
versatilidade do autor em lidar com temáticas mais “pesadas” como a solidão,
dando-lhe um tom poético que é só seu, e Reflexos (pág.
53): “Eu e/meus amigos,/tão
sozinhos/que derramaremos/(aos litros)/ácool/aos/santos/e/espíritos./Tão
sozinhos que nos indagaremos:/- Eles também nos verão em dobro?”, um toque de humor
refinado e competente que sinaliza bem a pegada de grande parte da obra, que
acaba assumindo, também, um efeito de resposta (mesmo que não intencional) ao
moralismo nosso de cada dia.
Como já
demonstrado, neste livro nem tudo é só festa. Eduardo lida com a perda. Trata
em A dentadas (pág. 78) sobre como o tempo vai nos subtraindo
amigos (não necessariamente através da morte), dentes e sonhos (utopias?).
Segue um trecho: “Perco amigos/como/quem perde/dentes./Como/quem/
mastiga,/perco amigos.”.
Contudo,
como “Quebrar o brinquedo/é mais divertido”, frase
de Orides Fontela utilizada de epílogo em Domínio (pág.
86), retornemos a face de folia do livro. Uma verve carnavalesca que transborda e como febre, contagia o leitor. Eduardo, que definitivamente não tem medo de ser feliz, encerra o livro com o
capítulo Despachos, uma reunião de seis grandes poemas, todos
dedicados a amigas e amigos, com títulos de nomes de Orixás, que me fez lembrar uma frase de um antigo professor, em que dizia: "No Brasil, reza-se pra todos os santos. Pratica-se todos cultos. Do candomblé ao catolicismo. Assim, temos mais chances de ter a prece atendida", que expõe bem o sincretismo religioso no país. Destaco aqui, um
trecho de Oxossi, ou Farmácia de manipulação (pág.
112): “Esquentar o termômetro/no fogo do fósforo:/e
fabricar/febre/delírio/e/mercúrio”.
Outro dia de folia não poderia ser outra coisa senão seu
próprio autor. Uma ode à espontaneidade. Uma poesia que faz o caminho contrário
da grande maioria: vem de fora para dentro. E para finalizar, transcrevo este que considero um dos grandes poemas brasileiros
deste século, que congrega da melhor forma possível o que é o ex e futuro poeta
(nos promete um novo livro há tempos) Eduardo Lacerda. Senhoras e senhores, os deixo com Ovo (pág. 93):
A manhã. A solidão. A fome
O ovo.
A tarde. A tristeza. A fome.
O ovo.
A noite. A dor. A fome.
O ovo.
Os dias todos. A fome.
O ovo.
Os anos voam. A saudade. A fome.
O ovo.
As bodas de ouro. A despedida. A
fome.
O ovo.
A velhice. A morte que chega,
Oferecendo um último banquete.
Peço ovo.
Se pudesse faria tudo de novo.
Como ler de trás para frente – ovo.
Eduardo Lacerda é
editor de livros,
produtor cultural
e ex-poeta.
Editor da Editora Patuá e
garçom do bar Patuscada.
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*Thiago
Scarlata é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas
traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto,
Escamandro,
Mallarmagens,
Monolito,
Janelas
em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, Poesia Avulsa, MOTUS, Jornal RelevO, Literatura&Fechadura,
além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA
entre outros e vencedor do CONCURSO
MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando
Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017). E-mail: scarlatatts@gmail.com
/ croquiliteratura@gmail.com
Tenho o belo livro do poeta EDUARDO LACERDA,( Outro dia de folia ) são poemas de alta REFLEXÃO e beleza POÉTICA. Lobo Bruxo
ResponderExcluirVerdade, Toninho!
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