quinta-feira, 22 de março de 2018

Arena: poesia em meia hora

*Por Thiago Scarlata





Arena (coleção megaminí / 7Letras, 2017) é um livro com menos da metade de número de páginas e tamanho de um livro convencional e, também por isso, deve ser lido com o dobro de atenção, pois trata-se de uma obra que tem muito a dizer. Desta maneira, não podemos acelerar muito, afinal, Arena é uma pista curta e de trânsito rápido, rodeada de incríveis paisagens, daquelas que nos obrigam a parar o carro para vislumbrá-las.


Assim como em alguns outros grandes poetas que já pude ter contato aqui mesmo através do Blog, a poesia de Frederico Klumb tem inegavelmente uma forte veia pictórica, nos transportando como que para dentro de uma película (neste caso, um curta-metragem) fragmentada em poemas que carregam um peso lírico, diria, polanskiano.


Frederico Klumb @2017



Podemos conferir em Arena II (pág. 07), a boa mão do poeta para as coisas do mundo:

"nos subúrbios ainda
os garotos tatuam sua carne
com pedras

duram todo o tempo
de beber este leite
correr a manhã

com seus couros
raspados á máquina
circulando em bicicletas
as arenas de terra

seus gladius
de fumaça e plástico
fumo e bolsas nos olhos

leite negro da madrugada
nós te bebemos de noite
te bebemos de manhã
e ao meio-dia
te bebemos ao anoitecer"


Um dos méritos de Klumb neste livro é conseguir dizer tudo o que disse em tão poucas páginas. Creio que esse "poder de concisão" muito bem exercido em Arena seja algo até mesmo mais complicado do que uma estruturação de um livro quantitativamente maior que, naturalmente, pode oferecer mais margens para erros e acertos. E aqui nada aponta para uma "aforização" da poesia. São poemas convencionais tanto na forma quanto em cadência.  Klumb não adaptou ou deformou absolutamente nada aqui em pról de um "encaixe" num molde pequeno.


Arena (coleção megaminí/7Letras,2017)
Os poemas de Arena parecem já terem sido um só, e, ao mesmo tempo, não se prendem numa arcada temática única, mas um DNA em comum está ali presente. Na minha interpretação isso advém do fato de que Klumb já encontrou sua voz. E "voz" aqui não significa meramente "estilo". Destaco as palavras do consagrado escritor norte-americano Philip Roth: "Não pretendo ter estilo. Eu quero ter voz: algo que começa mais ou menos na parte de trás dos joelhos e chega até bem acima da cabeça". Com isso, Roth quer dizer que a voz é o veículo por meio do qual o escritor/poeta se expressa como entidade viva, e o próprio Roth é totalmente voz. Estilo, no sentido formal ou floreando, o entedia; ele tem, assim escreveu, uma "resistência a metáforas lamurientas e analogias sob a forma de poesia".


Para o poeta, escritor e crítico norte-americano Alfred Alvarez, "Quando alguém lê um poema, geralmente fala sobre o que o dono dessa voz está sentindo; mas o principal aqui não é nem o meio nem a mensagem. O principal é que essa voz é diferente de qualquer outra que já se tenha escutado, e ela está falando diretamente com quem lê, comungando sua privacidade, bem no seu ouvido, e ao seu jeito peculiar". Arena tem voz. mais do que isso. Arena tem ouvido, antes que qualquer coisa. Seu poeta não foge da ecatombe, mergulha nela e nos traz, através, aí sim de sua boca, o que viu em seu pequeno inferno. E todo mundo enxerga um inferno único. Mas nem todos tem peito para processá-lo.


Melhor do que minhas palavras, o que pode sintetizar a poética de Klumb é obviamente sua poesia in-loco. Destaco a sequência final do livro para assumir essa responsabilidade:

V. período
mas ainda você
- alheia
ás lacerações
da carne
às horas -

                                    me disse
nós somos nossos próprios cupins

enquanto a br
corre
comigo dentro

e veloz
como as decisões
nos intervalos
                           gasosos

dos nós
das fotografias
e do shampoo
com que lava teus cabelos

é preciso tapear
todo o peso

impedir que seja
tão grande
como os elefantes
e a matéria escura
e acordar segurando
os pequenos instantes
antes das explosões
das fumaças tomarem os olhos

VI. acerto
sob esta falha
lixamos as bordas
aderentes da pele,
agora cicatrizes.




______________________________________________________________________




Frederico Klumb é um poeta, roteirista e artista visual brasileiro, nascido no Rio de Janeiro, em 1990. Cursou Cinema na PUC-RJ e publicou poemas em revistas especializadas, nacionais e estrangeiras, a exemplo de Modo de Usar & Co, Escamandro, Garupa e a americana Dusie. Integra a Oficina Experimental de Poesia, coletivo artístico-cultural hoje organizado com o apoio físico e financeiro do Centro Cultural Municipal João Nogueira, no Méier. É também responsável pela curadoria da seção Drive in da revista Garupa. Em 2016, publicou o volume Almanaque Rebolado (Azougue / Cozinha experimental / Edições Garupa), um guia artístico-pedagógico para criação poética, escrito a vinte mãos e fruto de residência no Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica (CMAHO). Em 2017 publicou Arena (coleção megamini / 7letras) e seu curta-metragem Agharta foi exibido em diversos festivais nacionais e internacionais de cinema. No segundo semestre, juntamente a Oficina Experimental de Poesia, coordenou residência artística no Polo Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Participou de algumas antologias, a exemplo de Golpe: manifesto (Nosotros editorial) e Cadernos do CEP. Fez parte, também, da exposição Rejuvenesça – Poesia expandida hoje, no Centro Municipal de Artes Helio Oiticica. Em 2018 publicou cinema circular (transferidaça) e mais um livro de poemas está confirmado: máquinas mancas da manhã (no prelo pela Edições Garupa).



*Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Incomunidade, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).

E-mail: scarlatatts@gmail.com  / croquiliteratura@gmail.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário