terça-feira, 27 de março de 2018

Retratos Imateriais: fogo, fotografia e desistências

Foto: Luiz Octávio Oliani @2017
*Por Thiago Scarlata

Em seu Retratos Imateriais (Singularidade, 2017), Jean Narciso Bispo Moura no traz - como o nome do livro já sugere - um verdadeiro álbum de fotografias poéticas. O que a lente do poeta capta é o que todo poeta também captura: a vida. Entretanto, nesta obra há um esforço em subverter a mera descrição do óbvio. O que nos dá uma pista disto - de início - são os intrigantes títulos de seus poemas: "pensamentos de um aeronauta", "aparelhinho"; "balão-espírito" e "o boi e o patrão" são apenas alguns deles, e, seus conteúdo fazem jus aos interessantes nomes que possuem.

Jean não tem medo de assumir a sua voz. Em "querosene" (pág. 41), escreve: "ponha mais querosene no seu lampião/as palavras em nossa distração/apagam-se/e/às vezes acendem-se com força estelar de um pirilampo/ajuste a iluminação de sua sala", poema que lembrou-me a seguinte frase de Ezra Pound: "Se houver um incêndio em minha casa, a primeira coisa que eu salvo é o fogo". A poesia de Jean é esse fogo ao qual Ezra se referia. É a coisa em si. Sem necessidade de tradução, pois não é língua, não é código nem enfeite, mas sim, algo mais próximo a uma comunicabilidade mais orgânica, o que é muito interessante. Sua chama - que é sua poesia - parece independer de seu autor. Soa como se sempre tivesse existido, mesmo antes do próprio poeta, dado seu caráter inaugural e metafísico.

Retratos Imateriais, como já mencionado, é um álbum repleto de poemas-fotografias independentes entre si. E não entendam de nenhuma forma que este livro se trata de um apanhado de textos aleatórios de gaveta. Há uma substância que circunda e une cada verso. É o produto de uma revelação gerada pelo olhar deste poeta-fotógrafo. Já dizia Roland Barthes que "um fotógrafo é reconhecido pela fotografia que bate", não importando se clique paisagens distintas. Ele sempre será reconhecido pelo o seu tato, por essa mão e angulação, pela eleição das luzes, enfim, pelo seu modo de recotar e imortalizar suas imagens do mundo. E em Jean é assim: sua voz é presente e aguda. Em seu "álbum" há uma constância, ainda que os poemas não sejam regidos por temas que - aparentemente e só assim - não se falem (e "se falarem" pela via temática em poesia, no fim das contas é algo perfeitamente dispensável, se assim o poeta quiser).

Jean Narciso Bispo Moura @2017

Há muita filosofia na poesia de Jean. Vemos neste incrível poema de nome "relógio" (pág. 15), a subversão da noção corriqueira de tempo, nos empurrando para uma reflexão mais aprofundada do que seria realmente o que se convencionou a chamar de tempo. Como já escreveu o historiador Jacques Le Goff, "o tempo nem sempre foi o mesmo", destacando que, por exemplo, na Idade Média (e mesmo na Antiguidade), o tempo era muito mais cíclico do que em linha reta, como o concebemos hoje. O que antes havia não era o imperativo do relógio, mas sim a noite e o dia, as quatro estações, enfim... vamos, então, ao poema do qual me refiro: "o tempo corre menos que o relógio/não olhe a vida pelo ponteiro da basílica/o homem quer em dúzias tudo aquilo/que o tempo dá em unidade".

Por fim, devo acrescentar que Retratos Imateriais é, sobretudo, um exercício. Um exercício de pensar, resistir, idealizar, subverter, se posicionar ante a vida, mesmo que através da entrega, das desistências que vamos exercendo. Neste jogo dialético, Jean em momento algum perde a mão de seu lirismo. Ao mesmo tempo, não privilegia o erudito ante o popular, mas justamente equilibra essas ferramentas comunicacionais de modo a levar ao leitor a melhor experiência poética possível adivinda de suas convicções, indagações e mesmo dúvidas.
Para fechar o texto, escolhi o poema "rato" (pág. 49), que muito bem representa a poética de Jean da qual falei:

o rato

o álcool dopou a minha consciência
o rato em minha casa
devorou o gato
matou o cão em vigília
ele é um ser mais virulento que uma víbora?


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Jean Narciso Bispo Moura é poeta, autor de (6) seis livros de poemas. O mais recente, Retratos Imateriais (Singularidade, 2017). É também graduado em ciências humanas, editor responsável pela Literatura e Fechadura - Revista Digital. Estreou em livro no início dos anos 200 com o título A lupa e a sensibilidade. Também é autor de 75 ossos para um esqueleto poético (2005); Excursão incógnita (2008); Memórias secas de um aqualouco e outros poemas (2011) e Psicologia do efêmero (2013).


*Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Enfermaria 6, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Incomunidade, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).




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