terça-feira, 3 de abril de 2018

A Organicidade de Coração de Boi


*Por Thiago Scarlata

Um coração de boi. Desses que a gente compra em supermercado. Tudo o que essa peça, elegida na seção do açougue, traz consigo de vida interrompida. De imagem, afeto e dor. Afinal, o que de difere o coração desse animal do nosso? Ana Estaregui, em Coração de Boi (7Letras, 2016), descarna a ala sombria que cada corpo carrega. Não desassocia a carne da alma e nos traz um evangelho a ser inaugurado através das fibras:

1.

o coração de boi sobre a pia
vai esfriando á medida
em que o músculo absorve
a friúra do granito e lança nele
seus desejos de sempre, meio vis
quantes, como tudo o que nele era
pastos, pelos, as tetas esplêndidas
das vacas de leite
e em pouco tempo tudo que dele se cala
se equipara ao grau da pedra
as artérias e veias
os espaços entre os átrios, o feno, tudo

Como bem notou Noemi Jaffe, que assina a orelha do livro, "Ana extrai as faces íntimas e próprias - a cada ser sua coisidade", também retratando aqui o ordinário. Dando voz ao mínimo cômodo ou troço da casa. Ana costura o banal (retalhos invisíveis do nosso cotidiano) e oferta ao leitor uma inscrição em seu bordado lírico que faz o simples ser urgente e fundamental, como podemos notar em "2" (pág. 10):levar o copo à boca:

sempre na mesma inclinação
e com a mesma força
aplicada ao bícepis
levantar da cama
sempre pela lateral
girar o corpo noventa graus
primeiro o pé esquerdo no chão
depois o outro
as mãos apoiadas sobre o colchão
então flexionar os joelhos
e impulsionar de leve
até que tudo esteja de pé
erguer os braços pro alto
alcançar a máxima estatura
que o corpo admitir
se nada falhar
caminhar até a cozinha
ferver a água
soprar o chá algumas vezes
antes de beber
continuar, continuar

A poeta também se faz refém em "3" (pág. 11) para nos questionar: será que falta ao escritor menos literatura e mais vida? Até que ponto a palavra é uma substância saudável (se é que é) a qualquer um? Observamos no trecho "a palavra ocupou a sala toda/[...] e ficamos todos espremidos entre ela/e a parede, ela e o teto/[...]e agora passamos nossos dias presos/olhando pra ela, uma estrela", algo implícito - ainda que interpretável. Para que direção o artista está olhando? Será que estamos olhando para o que realmente interessa? Ou a palavra nos cegou?
A organicidade presente em Coração de Boi, como já mencionado, transborda. Faz do inóspito uma fogueira em tempos frios e sombrios. Denuncia os tilitares camuflados das coisas mais inauditas. E contrafaz velhos procedimentos que, só a poesia, pelas mãos de uma mulher, é capaz. Vamos ao incrível "14" (pág. 23):

no meio do pátio tinha um jacarandá
e através dele nós
podíamos decifrar as horas do dia
pela cor das flores
e o tamanho das sombras no chão
e se era sábado e se ventaria
girávamos em seu redor como abelhas
nos escondendo da noite
que chegava mais tarde abaixo do tronco
sabíamos quando nos abraçávamos
com a força e a obstinação vertical
de uma árvore daquelas
que poderíamos ser como os jacarandás
saber mais sobre os segredos da seiva
e menos sobre as horas

Eu poderia (e deveria) substituir todo este texto crítico pela transcrição integral desse magnífico livro de poesia, mas francamente, isso, de alguma maneira, seria privá-los de adquiri-lo ou, de adiantar os encantos (e espantos) que a leitura dele provoca. Fica aqui uma certeza: Ana Estaregui está entre as melhores poetas que já li. E o melhor: ela é brasileira e nossa contemporânea.

Ainda que não possa replicar o livro inteiro nessa publicação, me sinto impelido a finalizá-la, como geralmente faço, com mais um poema. Mas adianto: seria impossível defini-lo como o melhor ou o que sintetize mais competentemente a ideia da obra. Nada substitui a leitura completa de Coração de Boi. Mais por aleatoriedade do que por predileção, elejo "67" (pág. 77) para este papel:

para onde estão indo
essas pessoas todas
com que força e direção
saem dos metrôs
saltam felinas
e caminham duro como se soubessem
pra onde vão de fato
pro trabalho pra casa pro oftalmologista
com tal gana marcham seus pés de chumbo
carregando mochilas e maletas e sacolas
como se fossem tochas
pra onde estão indo deus
essa caravana com cara de cavalo
que galopa deixando pra trás
o vão da plataforma o trem




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Ana Estaregui (1987) é formada em artes visuais e tem
dois livros de poesia publicados: Chá de Jasmim (Patuá, 
2014) e Coração de boi (7Letras, 2016). Os dois foram 
contemplados pelo ProaC de poesia e o último foi 
finalista do Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da 
Biblioteca Nacional em 2017.










*Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Enfermaria 6, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Avenida Sul, Incomunidade, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).

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