*Por Thiago Scarlata
Se você é carioca, precisa ler Ferrugem (Record, 2017). Mas se você for natural de qualquer outro lugar... também precisa lê-lo.
Se você é carioca, precisa ler Ferrugem (Record, 2017). Mas se você for natural de qualquer outro lugar... também precisa lê-lo.
Marcelo Moutinho revigora o conto brasileiro neste belo livro em que a
pauta é o tempo agindo sobre as coisas, as pessoas, as relações... Há nele
personagens aparentemente vencidos, mas Marcelo - escritor que veio para ficar
- faz os que os grandes fazem (que é o máximo que a literatura pode fazer pelas
pessoas): sugere. Dito isto, a leitura de seus contos nos deixa uma questão: o
que é, na verdade, "vencer na vida"? Será que um cantor cover do
Roberto Carlos (que quase todos os cariocas conhecem) é realmente um homem
decadente, cantando semanalmente para meia dúzia de pessoas em inferninhos do Centro? E o garoto que sonhava em ser jogador de futebol mas acabou virando gandula; a trocadora e o amor passageiro no ônibus? Uma pessoa que descobre que tem HIV? Quais são os limites entre graça e desgraça? Entre permanência e corrosão? Como se dá a vida nessa gangorra entre apogeus (por "menores" que sejam) e danações (mesmo as extremas)?
Com uma forte veia cronística - Marcelo também é
jornalista, inclusive - o autor retoma uma antiga tradição, remando contra a
atual maré do privilégio do "como se conta" sobre "o que se
conta". Ferrugem não é um livro de uma poética auto-sugerida, onde a casca
brilha muito mais que o conteúdo, apesar da linguagem fluida, direta e em alguns bons
momentos, lírica. Temos aqui, finalmente, uma obra em que a história em si é o
mais importante. E como a literatura brasileira contemporânea cada vez mais entorpecida pelo grandes egos, onirismo, ambições que tentam abarcar (muita das vezes) mais do que podem e conseguem, enfim, por quase uma ditadura do Eu, Ferrugem se faz um livro altamente necessário e que trás, antes de tudo, um alívio por saber que ainda se faz literatura em que se pode tocar, como a de nomes como Fernando Sabino, Clarice Lispector, Rubem Braga e companhia.
Os contos de Ferrugem não são uma compilação de
gaveta, ao contrário, há entre eles um brilhante fio condutor. A degradação
(humana ou não), as conformações, os preconceitos, a cerveja gelada no copo, a
espuma da praia, a fuligem deixada pelas coisas, enfim, tudo que é inalado e
exaurido, tudo que acaba, recomeça e novamente se destrói é substância cara ao
livro.
Por fim, devo reforçar e destacar que as tramas
presentes na obra (premiada, inclusive, com o Prêmio da Biblioteca
Nacional 2017) não são, em nenhum sentido, histórias de
"superação" ou de mera valorização de figuras supostamente à margem
da sociedade. Em Ferrugem não há espaço para moralismos baratos. Cada
personagem de Moutinho, aliás, contém uma lógica própria, sendo independentes
entre si. Encaram o mundo e suas moléstias de modo específico. Suas ações
aguçam no leitor a consciência da heterogeneidade do humano e do mundo. Joga
luz sobre o que tanto nos difere (classe, cor, profissão, saúde, identidade),
mas também no que nos une (essa tal ferrugem).
Para exemplificar todo esse teor que tratei até aqui,
selecionei um trecho do conto "Nome de Deus" (pág 93),
o qual trata-se da história de um homem que recolhe e coleciona todo tipo de
panfleto ou mesmo qualquer pedaço papel que contenha o nome ou a palavra de
Deus, andando pelas ruas e até mesmo em lixões para a realização de tal tarefa, quase sagrada. Segue:
"Terça-feira, lá em Gramacho, encontrei uma Bíblia inteira. Estava sem a capa, algumas páginas faltando. É a palavra de Deus ali dentro. Não pode ser misturada com casca de banana, móvel velho, garrafa pet.
"Terça-feira, lá em Gramacho, encontrei uma Bíblia inteira. Estava sem a capa, algumas páginas faltando. É a palavra de Deus ali dentro. Não pode ser misturada com casca de banana, móvel velho, garrafa pet.
Às
vezes, preciso brigar com os urubus, porcos e ratos. à vezes, são famílias
inteiras. De homens, mesmo. Já os conheço. Eles catam objetos para reciclagem e
tentam a sorte de se deparar com algum material de valor. As pessoas jogam fora
cada coisa."
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Foto: Leo Aversa |
Thiago Scarlata
(1989) é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog
Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados
em antologias e também nas Revistas Gueto, Enfermaria 6, Escamandro,
Mallarmagens, Monolito, Avenida Sul, Incomunidade,
Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O
poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Vero o
Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além
de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016
e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017.
É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo”
(Editora Multifoco, 2017).
Que resenha brilhante e enriquecedora, Tiago!
ResponderExcluirPrende-nos ao ser ver de olhos desbravadores e sentimentos literários vário.
Parabéns!
Muito obrigado pelo retorno positivo, Tonho!
ExcluirAbraço!
Gostei tanto da resenha que vou comprar o livro. Parabéns!
ResponderExcluirObrigado, Sueli. Compre mesmo! Abraço!
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