terça-feira, 10 de abril de 2018

Ferrugem: Literatura que existe


*Por Thiago Scarlata

Se você é carioca, precisa ler Ferrugem (Record, 2017). Mas se você for natural de qualquer outro lugar... também precisa lê-lo.
Marcelo Moutinho revigora o conto brasileiro neste belo livro em que a pauta é o tempo agindo sobre as coisas, as pessoas, as relações... Há nele personagens aparentemente vencidos, mas Marcelo - escritor que veio para ficar - faz os que os grandes fazem (que é o máximo que a literatura pode fazer pelas pessoas): sugere. Dito isto, a leitura de seus contos nos deixa uma questão: o que é, na verdade, "vencer na vida"? Será que um cantor cover do Roberto Carlos (que quase todos os cariocas conhecem) é realmente um homem decadente, cantando semanalmente para meia dúzia de pessoas em inferninhos do Centro? E o garoto que sonhava em ser jogador de futebol mas acabou virando gandula; a trocadora e o amor passageiro no ônibus? Uma pessoa que descobre que tem HIV? Quais são os limites entre graça e desgraça? Entre permanência e corrosão? Como se dá a vida nessa gangorra entre apogeus (por "menores" que sejam) e danações (mesmo as extremas)?

Com uma forte veia cronística - Marcelo também é jornalista, inclusive - o autor retoma uma antiga tradição, remando contra a atual maré do privilégio do "como se conta" sobre "o que se conta". Ferrugem não é um livro de uma poética auto-sugerida, onde a casca brilha muito mais que o conteúdo, apesar da linguagem fluida, direta e em alguns bons momentos, lírica. Temos aqui, finalmente, uma obra em que a história em si é o mais importante. E como a literatura brasileira contemporânea cada vez mais entorpecida pelo grandes egos, onirismo, ambições que tentam abarcar (muita das vezes) mais do que podem e conseguem, enfim, por quase uma ditadura do Eu, Ferrugem se faz um livro altamente necessário e que trás, antes de tudo, um alívio por saber que ainda se faz literatura em que se pode tocar, como a de nomes como Fernando Sabino, Clarice Lispector, Rubem Braga e companhia.

Os contos de Ferrugem não são uma compilação de gaveta, ao contrário, há entre eles um brilhante fio condutor. A degradação (humana ou não), as conformações, os preconceitos, a cerveja gelada no copo, a espuma da praia, a fuligem deixada pelas coisas, enfim, tudo que é inalado e exaurido, tudo que acaba, recomeça e novamente se destrói é substância cara ao livro.


Marcelo Moutinho. Foto: Leo Aversa @2017.


Por fim, devo reforçar e destacar que as tramas presentes na obra (premiada, inclusive, com o Prêmio da Biblioteca Nacional 2017) não são, em nenhum sentido, histórias de "superação" ou de mera valorização de figuras supostamente à margem da sociedade. Em Ferrugem não há espaço para moralismos baratos. Cada personagem de Moutinho, aliás, contém uma lógica própria, sendo independentes entre si. Encaram o mundo e suas moléstias de modo específico. Suas ações aguçam no leitor a consciência da heterogeneidade do humano e do mundo. Joga luz sobre o que tanto nos difere (classe, cor, profissão, saúde, identidade), mas também no que nos une (essa tal ferrugem).

Para exemplificar todo esse teor que tratei até aqui, selecionei um trecho do conto "Nome de Deus" (pág 93), o qual trata-se da história de um homem que recolhe e coleciona todo tipo de panfleto ou mesmo qualquer pedaço papel que contenha o nome ou a palavra de Deus, andando pelas ruas e até mesmo em lixões para a realização de tal tarefa, quase sagrada. Segue:

"Terça-feira, lá em Gramacho, encontrei uma Bíblia inteira. Estava sem a capa, algumas páginas faltando. É a palavra de Deus ali dentro. Não pode ser misturada com casca de banana, móvel velho, garrafa pet.
Às vezes, preciso brigar com os urubus, porcos e ratos. à vezes, são famílias inteiras. De homens, mesmo. Já os conheço. Eles catam objetos para reciclagem e tentam a sorte de se deparar com algum material de valor. As pessoas jogam fora cada coisa."




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Foto: Leo Aversa
MARCELO MOUTINHO é jornalista e escritor. Autor dos livros "Ferrugem" (vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional, Record, 2017), "Na dobra do dia" (Rocco, 2015, indicado ao Prêmio Oceanos), "A palavra ausente" (Rocco, 2011, indicado ao Prêmio Portugal Telecom), "Somos todos iguais nesta noite" (Rocco, 2006) e "Memória dos barcos" (7Letras, 2001), além do infantil "A menina que perdeu as cores" (Pallas, 2013). Organizou várias antologias, entre elas "Conversas de botequim - 20 contos inspirados em canções de Noel Rosa" (Mórula, 2017, com Henrique Rodrigues), "O meu lugar" (Mórula, 2015, com Luiz Antonio Simas), "Dicionário Amoroso da Língua Portuguesa" (Casa da Palavra, 2009, com Jorge Reis-Sá), "Contos sobre tela" (Pinakotheke, 2006) e "Prosas cariocas - Uma nova cartografia do Rio" (Casa da Palavra, 2004), com Flávio Izhaki, das quais é também coautor, a seleta de ensaios "Canções do Rio – A cidade em letra e música" (Casa da Palavra, 2010) e a edição especial "Bravo! Literatura e Futebol" (Abril, 2010). Tem contos publicados na França, na Inglaterra, na Alemanha, nos Estados Unidos, em Portugal e na Argentina, entre outros países.


Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Enfermaria 6, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Avenida Sul, Incomunidade, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).

4 comentários:

  1. Que resenha brilhante e enriquecedora, Tiago!
    Prende-nos ao ser ver de olhos desbravadores e sentimentos literários vário.
    Parabéns!

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  2. Gostei tanto da resenha que vou comprar o livro. Parabéns!

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