sábado, 9 de junho de 2018

Entrevista com Rafael Gallo - Rebentar

*Por Thiago Scarlata




Rafael Gallo nasceu em São Paulo em 1981. É autor de Rebentar (Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2016, e de Réveillon e outros dias (Record, 2012), livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2011/2012. Tem ainda contos publicados em diversas revistas e antologias, como a Desassossego (Mombak, 2014) e a Machado de Assis Magazine (Biblioteca Nacional, 2012), que publicou tradução do conto Réveillon para o espanhol.



CROQUI – Rebentar não adotou uma estrutura linear/tradicional, onde o mote principal seria “prender o leitor pela curiosidade de saber se a mãe acharia ou não o filho”. Logo no início é dado o que seria tido como “o fim da história”: Ângela desiste de procurar Felipe, depois de longos anos de devoção exclusiva à sua procura. Como se deu a decisão de adotar esse ótimo modelo?
RAFAEL GALLO – Veio justamente disso que você falou, de não querer a história direcionada para o suspense, nem por mim nem pelo olhar dos leitores. Histórias de desaparecimento costumam ter essa abordagem e, desde que comecei a pensar no Rebentar, sabia que ele não seria sobre a expectativa do reencontro ou não. Para mim, a história é sobre Ângela, a mãe, sobre o processo íntimo – e prático – dela, de descontruir e reconstruir o vínculo com esse filho, já perdido há anos. Não queria que os leitores se distraíssem desse “coração” da história, por conta de uma expectativa que não deveria estar ali. Por isso, a pergunta é eliminada de imediato, como se o livro logo dissesse: “Não, Felipe não será reencontrado; agora podemos falar do que importa aqui?”


CROQUI – Houve um processo de pesquisa para a composição do romance? Caso sim, como foi essa experiência?
RAFAEL GALLO – Sim, precisei pesquisar bastante, pois não conhecia praticamente nada do universo de crianças desaparecidas. Comecei pelas leituras - tanto de ficções quanto de materiais jornalísticos ou acadêmicos - mas o mais importante, sem dúvida, foram as conversas que tive com mães de filhos desaparecidos. O livro não teria sido o mesmo sem o que aprendi delas, devo muito, muito mesmo, a essa generosidade.


CROQUI – Discorra um pouco sobre a convenção do “amor incondicional de mãe” e o que isso carrega consigo.
RAFAEL GALLO – O termo “amor incondicional” me incomoda um pouco. Não lembro se algo assim é mencionado diretamente no livro, mas provavelmente é uma ideia que permeia a história. Não vejo o amor como algo desligado de condições, algo gratuito e sem razão de ser ou de permanecer. Talvez alguns pais e mães sintam isso, que chamam de amor incondicional, logo ao nascimento de seus bebês, até por uma questão de química do corpo: a preservação da espécie e seus recursos fisiológicos (bom, nesse caso, continua havendo uma condição, biológica). Por outro lado, já ouvi de muitas mães que a vinculação com o bebê não aconteceu de imediato, parecia até estranho não ter esse “amor” (quando é algo normal, a pressão sobre as mães é que é doentia). Para mim, o amor precisa ser tecido fio a fio, construído tijolo a tijolo, não tratado como algo que cai do céu. Aliás, acho que grande parte de sua força e beleza vêm daí, de não ser gratuito, como se fosse uma mágica alheia a quem ama ou é amado. O amor é o que se faz dele, o tempo todo. Tem de ser algo “esculpido” pelos amados e amantes, erigido e mantido de mãos dadas. Acredito em amores que ativamente fazem jus a si mesmos, que se formam por dedicação e cuidado, por entregas e compartilhamentos, por exigências também. Pelo zelo com as condições em que são cultivados, não por considerarem que essas condições são irrelevantes. E, talvez, Rebentar carregue essa ideia. Algo como “ainda que você seja meu filho, para te amar eu preciso te conhecer, preciso saber quem você é”.

Foto: Nádia Maria / Capa: Frede Tizzot


CROQUI – Obviamente que só quem passou ou passa por uma dessas situações sabe a dor real, mas na sua visão, é pior ter um filho desaparecido ou, tendo-o ao lado, perdê-lo para a morte?
RAFAEL GALLO – Eu não poderia mesmo dizer, talvez só quem passou por algo assim possa. Bom, acho que nem mesmo quem passou poderia apontar uma delas como pior do que a outra. Mas o desaparecimento tem algumas singularidades muito dolorosas, como o fato de a ausência ser tão completa quanto a da morte (você não tem nada mais da pessoa consigo, nenhuma possibilidade de contato), porém sem o fechamento que a morte, ao menos, dispõe. Depois que alguém próximo se foi pelo falecimento, só resta seguir adiante, de alguma forma. No desaparecimento, esse “depois” não se forma, nunca chega. Você pode ficar para sempre no “antes”, na iminência de a pessoa ser reencontrada. Quando não é (e isso acontece, de certa forma, todos os dias), o luto se renova, ele não tem fim, não tem um ponto de repouso. Você sequer pode chorar a perda por completo, porque ela sempre ameaça deixar de ser perda. É uma ferida que nunca chega ao período de cicatrização.


CROQUI – Um dos pontos fortes tratados pelo livro é o de como a condição social colabora para um desaparecimento ser tratado como um caso, ou como só mais um número nas estatísticas, configurado no exemplo dos personagens Felipe e Mateus. Esse realmente foi um dos debates que você também quis levantar?
RAFAEL GALLO – Sim. No caso desses dois desaparecimentos, quis colocar em jogo como pessoas (crianças ou adultos) têm tratamentos completamente diferentes, dependendo da classe social a que pertencem. Isso não é só no desaparecimento, é em tudo. Especialmente em um país tão desigual quanto o nosso, se você tem muito dinheiro vive em um “mundo” absolutamente discrepante de quem carece de poder. Nem as leis funcionam da mesma maneira. No caso de desaparecidos, isso se mantém, acentua-se: uma criança de classe média-alta desaparecida se torna notícia, comove o país, mobiliza a todos; crianças da periferia desaparecem e nada é dito. São dezenas de milhares de desaparecidos por ano no Brasil, de quantos a gente ouve falar?
A cena em que a mãe do Mateus é rechaçada e, depois, ameaçada pelos policiais, somente por exigir que seu filho seja buscado devidamente, não é algo que inventei. Repete-se com muitas mães, especialmente as negras e da periferia. Aquela própria ideia de que é preciso esperar 24 horas para começar as buscas, tão difundida, é falsa; não há nada disso na lei, é só uma praxe. Mas deixe o filho de alguém rico e famoso desaparecer, para vermos se os policias vão dizer a esses pais que têm de esperar tudo isso para começarem a se mexer. Nada disso, em menos de cinco minutos já teremos helicópteros sobrevoando a cidade, acompanhados pelas câmeras de TV, apelos em toda mídia, etc. Enquanto isso, mães da periferia têm de escutar que suas filhas pré-adolescentes desaparecidas devem estar em algum motel, escondidas, que seus filhos meninos devem estar metidos com o tráfico, e irem embora caladas para não receberem ameaças de prisão por desacato a autoridade.


CROQUI – Achamos a inclusão da expressão “rebentar” em vários momentos do livro algo bem interessante. O que há de metáfora, de concreto e como surgiu essa escolha do título do seu livro?
RAFAEL GALLO – Há algumas palavras e imagens que quis repetir ao longo do livro, usando-os como uma espécie de “material temático”, algo típico da música. Menções a espelhos, às dores nos joelhos de Ângela, ao mar e a outros elementos são retomadas a todo momento. A palavra “rebentar” foi uma das primeiras que me surgiu, desde os rascunhos. Ainda não tinha o título bem definido, mas já me atraíam seus sentidos de “rebento” (ligado ao filho) e de “rompimento”, especialmente em relação ao processo de Ângela, de romper com a condição de “mãe de filho desaparecido”. Enquanto pensava em tudo isso e tentava encontrar os outros elementos da história, me veio à cabeça a imagem (como se visse a cena de um filme) dessa mulher diante do mar, em algum canto isolado, meditando sobre sua vida. Então, pensei também no rebentar das ondas que ela via. O título, assim como a personagem e a introdução do livro, se delinearam melhor a partir dessa imagem primordial.


CROQUI – O quarto intacto por mais de 30 anos e sua transformação simbólica numa espécie de altar, onde o tempo é congelado no intuito de conservar toda lembrança da criança desaparecida, e o recurso do envelhecimento digital com base na antiga foto. Como, na sua visão, se dá esse paralelo, bem como suas consequências na vida dos pais?
RAFAEL GALLO – A história do quarto foi baseada em uma lembrança, mais antiga, de certa matéria que vi em uma revista (uma pena não tê-la guardado), falando sobre pais que perderam seus filhos jovens, focada especialmente nos quartos deles, nessa manutenção simbólica dos pertences dos mortos. As fotos eram de cortar o coração: estavam todos arrumados como se a criança ou adolescente ainda vivesse ali, estivesse prestes a voltar. Além disso, os pais instalavam certos marcadores de tempo paralisados: relógios ou calendários parados na hora ou dia em que o filho se foi, coisas assim. Um dos quartos, não me esqueço disso, tinha uma tabela de basquetebol, na qual o pai instalou uma haste e prendou nela a bola, criando o efeito de essa bola estar parada no ar, para sempre prestes a cair no cesto.
A história do envelhecimento digital também foi curiosa, porque eu já tinha a ideia de utilizá-lo na história, mas não pensava em proporcioná-lo tanto peso. Seria apenas mais uma das coisas pelas quais Ângela tem de passar. Só que em uma das entrevistas que fiz, com a mãe de uma garota desaparecida, ela me mostrou o retrato que criaram da filha dela, mais de 20 anos depois do desaparecimento. Primeiro, essa mãe me mostrou a foto que carregava da menina, em suas buscas: os olhos bem arredondados, cabelos cheios, aquele rosto ainda infantil em uma pré-adolescente. Depois, ela me mostrou a simulação: a face adulta, bem mais velha e ríspida, de olhos duros, cabelos reduzidos, maxilar pontiagudo, completamente diferente. Foi um choque para mim, naquele momento, imagina para os pais. Perguntei como foi receber aquele retrato, ela me contou ter tido uma depressão comparável somente à época do desaparecimento. Porque é perder a filha mais uma vez, sabe? É ter sequestrada aquela imagem que se tinha dela, ser confrontada com a realidade de que aquela filha não existe mais, o que talvez ainda exista é essa pessoa irreconhecível, uma estranha. O que é seu filho, quando está transformado em um estranho? Essa se tornou uma questão fundamental de Rebentar.


CROQUI - Gustavo e Ângela permanecem juntos após o desaparecimento do filho. Conte-nos um pouco da sua escolha de, neste caso, ir contra as estatísticas, que apontam que 80% dos casais se separam quando ocorre um desaparecimento de filhos e filhas. Otávio era um personagem fundamental para a trama ou houve outras motivações por de trás da sua escolha?
RAFAEL GALLO – Além de o Otávio ser fundamental em alguns momentos, eu queria que a Ângela tivesse um universo ao redor dela, o qual, afora o filho ausente, estivesse funcionando de forma razoável. Não queria uma vida devastada, com casamento arruinado, solidão, parentes afastados, crises financeiras, etc. Porque, assim, ela teria um monte de problemas pra resolver, não somente o filho. Queria que ela fosse essa personagem que tem tudo à sua espera, mas que precisa sair de dentro desse lugar escuro onde está. A possibilidade de restauração está bem ali, embora pareça muito distante. Muitas vezes, pessoas e personagens são assim: de todas as peças do grande quebra-cabeças da vida, a atenção fica toda naquela que falta, os sentimentos mais intensos vêm da lacuna. Claro que no caso de uma mãe de filho desaparecido isso é absolutamente compreensível, até esperado, mas eu queria ter esse caminho possível de volta. E o Otávio, nisso também, é fundamental.


CROQUI – Conte-nos um pouco sobre como foi a sua transição do conto para o romance. Resumidamente, o que para você foi permanência e o que surgiu de novos elementos na sua escrita por conta da mudança de gênero literário?
RAFAEL GALLO – Eu acho que a diferença principal – e assustadora, a princípio (rs) – foi a medida das coisas, o tamanho dos gestos narrativos. Em um conto, você sabe que a história não vai chegar muito longe daquele ponto de partida; no romance, as ramificações vão a se perder de vista. É difícil se acostumar com isso no começo, habituar-se a uma escrita que você não chega nem perto de compreender o todo. Mas, aos poucos, fui me acostumando às novas dimensões das cenas, cenários e outros aspectos. Mais do que isso, gostei de ter esse “espaço” para explorar melhor certos elementos da história. Por exemplo, em um conto eu provavelmente teria de escolher apenas um “objeto” para simbolizar a paralisia do tempo, relativa à ausência do filho. Mas no romance eu posso ter vários: o quarto, a fachada da casa, os porta-retratos, o abandono profissional da Ângela, o casamento, os outros familiares, etc.
O que permanece, acho, além de questões estilísticas é aquilo que falei no começo: o cuidado com o “coração” da história, em não perdê-lo de vista, não se desgarrar dele, seja ao atravessar 10 páginas ou 400. De certa forma, me parece que o Rebentar é um pouco como um conto gigante, ele orbita ao redor de um núcleo muito próximo o tempo todo.


CROQUI – Quais são as suas influências literárias mais importantes e o que está lendo atualmente?
RAFAEL GALLO – Minhas influências têm mudado bastante ao longo do tempo. Começaram principalmente com Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Julio Cortázar e Guimarães Rosa, passaram por Di Cavalcanti e Tom Jobim, Michael Haneke e Magritte, Debussy e Chico Buarque, Stanley Kubrick e Noel Rosa, tantos outros. Hoje, além desses, há muito da literatura contemporânea, especialmente brasileira e portuguesa. Adriana Lisboa, João Carrascoza, Maurício de Almeida, Inês Pedrosa, José Luís Peixoto, Dulce Maria Cardoso, Gonçalo M. Tavares, Afonso Cruz, esses autores têm feito a minha cabeça.


CROQUI – Está trabalhando em um novo livro? Caso sim, o que já nos pode adiantar?
RAFAEL GALLO – Estou trabalhando em dois, na verdade. Tenho um de contos praticamente pronto, com as histórias que tenho escrito desde que publiquei o Réveillon e outros dias, em 2012. E estou trabalhando em um romance também. Digo que, se Rebentar é o “livro da mãe”, esse próximo é o “livro do pai”. É outra história, são outros personagens, mas alguns dos temas mais subterrâneos do Rebentar estão ali. E quis voltar meus olhos para questões mais tipicamente masculinas: o analfabetismo afetivo, a cobrança por sucesso e desempenho no ofício, o autoritarismo, etc.


CROQUI – Possui projetos literários para além de um novo livro, bem como palestras, cursos ou eventos dos quais participara?
RAFAEL GALLO – Eu dou oficinas de escrita de vez em quando. Acabei de terminar minha participação no CLIPE, o Curso Livre de Preparação de Escritores, da Casa das Rosas, e fiquei impressionado com a qualidade de alguns dos trabalhos de lá. Pretendo dar mais oficinas em breve, mas ainda não há datas confirmadas. Esse ano – de crise, Copa e eleições – está bem parado de eventos, não tenho nenhum em vista, então estou aproveitando para focar bastante na escrita do meu romance. Sou bem demorado para escrever, preciso investir muito no tempo de trabalho.


CROQUI – O que é literatura para você?
RAFAEL GALLO – Eu oscilo entre a vontade, por um lado, de responder algo grandioso - como se a literatura salvasse vidas ou fosse um ativismo político impactante – e, por outro lado, de responder que a literatura é só mais uma das pequenas partes que formam o grande caos do mundo, talvez uma das que têm menos peso. E quando essas dúvidas em relação à literatura assaltam minha cabeça de escritor, volto sempre a pensar como leitor, que é o lugar das fundações da literatura para mim. E, enquanto leitor, a literatura foi, para mim, uma das grandes fontes de formação afetiva e intelectual. Me apresentou novas possibilidades de se ver o mundo, de perceber que a vida pode ser muito diferente da que me impunham, pode ter muitas outras maneiras de se realizar além do meu pequeno e restrito universo. Acho que isso é a literatura (mas também muitas outras coisas podem sê-lo, como a música ou o esporte, para alguns): uma espécie de abertura, como se antes vivêssemos em uma casa fechada, mas de repente pudéssemos abrir janelas para vislumbrar outros horizontes, receber outras luzes e brisas, além do ar viciado da casa fechada. E isso, de certa forma, é fundamental. Se todos os indivíduos tivessem algo assim, tão potente e transformador, o coletivo poderia ser diferente.


*Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Enfermaria 6, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Avenida Sul, Incomunidade, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Poesia Primata, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016, vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017 e da SELEÇÃO PÚBLICA PARA PUBLICAÇÃO - EDITORA URUTAU 2018. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).
E-mail: scarlatatts@gmail.com / croquiliteratura@gmail.com



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