sexta-feira, 23 de junho de 2017

José J. Veiga e a Normalidade do Absurdo

Veiga, numa foto da década de 60 no escritório de Seleçőes do Reader´s Digest
*Por Saulo Dourado

        
     Basta que um absurdo se instale e permaneça, e em pouco tempo, por hábito após hábito, o que seria um escândalo até tempos atrás já se torna parte da convivência. Descobre-se que o descontentamento não se tornou uma reação de incômodo para os autores dos absurdos, a revolta se misturou com a resignação da labuta diária, ninguém estaria pelos mais fracos e o escárnio se esvai no esquecimento... É um processo doloroso que os romances e contos de José J. Veiga tornam sempre a apontar.

         Em Sombras de Reis Barbudos, uma empresa é montada por um homem com grandes ideias e de forte agrado para a população de uma cidade. Despertando a ambição de frentes maiores, o dono, tio do narrador, é deposto e obrigado a se retirar para longe. Só se ouve o burburinho nas casas, sem compreender. A nova administração tampouco se revela, e convoca alguns dos cidadãos para vigiar outros, assim girando a roda da própria cidade contra ela mesma. Muros são erguidos lá onde haviam ruas (e em poucos meses, ninguém mais se lembra onde davam esses caminhos), regras são impostas de comportamento, até rir e olhar para cima se tornam proibidos, e nada mais prospera senão a empresa.

Algumas das inúmeras edições da obra, atualmente editada pela Companhia das Letras.

        A cada nova investida, o povo se espanta, mas logo assimila. Mesmo a aparição de urubus, que antes era vista como mau presságio, passa a ser uma constante. As aves pretas pousavam sobre os muros e se tornavam sombras. Perdendo o medo dos humanos, entram nos quintais, roubam comida, e os humanos, afeiçoando-se àquela presença, tornam os urubus animais de estimação. Até a empresa se surpreende com aquela capacidade de acolhimento e passa a perseguir também os animais.


        
Versão espanhola de A Hora dos Ruminantes
Não é diferente em A Hora dos Ruminantes. Um acampamento se instala misteriosamente nas áreas de circunferência de Manarairema e muda a dinâmica da pequena cidade em pouco tempo. Para cada cidadão que tenta ir na usina descobrir as razões da chegada e dialogar, retorna um capanga a serviço dos destinos secretos. Deixando então que as coisas se resolvessem por si só, um dia qualquer aparece uma matilha invadindo as ruas, obrigando as pessoas a se recolherem com medo de mordidas. Passados os cachorros, e esquecido o assunto, um estrondo se dá: surge uma boiada como se fosse um mar, que faz da cidade um curral. Ninguém consegue abrir a porta de casa, e só as crianças sobem nos lombos dos bichos para buscarem mantimentos.



         Se podemos ler os dois romances com a ótica do realismo fantástico, no qual o estranho se instala sem explicações, ou pela referência ao sufocamento social e existencial de Franz Kafka, escritor das predileções de Veiga, também se soma uma alegoria da brasilidade enquanto gente política. O próprio autor, em entrevista em fevereiro de 87, diz: “As populações de Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas etc. têm sido submissas e aceitado todas as opressões desde que o Brasil existe (as revoltas que a história registra foram tentadas por pouquíssimas pessoas esclarecidas, por isso fracassaram). Qual será a atitude verdadeiramente revolucionária de um escritor: mostrar ficcionalmente uma população oprimida reagindo e acabando com a opressão (uma mentira), ou mostra-la sofrendo resignadamente? Esses livros foram escritos para desassossegar, e achei que se mostrasse os oprimidos derrubando as bastilhas, o leitor fecharia o livro aliviado, e não desassossegado.” 

         Não seria de hoje, por esse leitura, que estaríamos nós, povo brasil, a nos acostumarmos com o puro escândalo, até um ponto que os inimigos acima instalam fábricas fantásticas e fazem dos princípios inconstâncias e oscilações do que vale e do que não vale. A leitura de José J. Veiga desassossega, no sentido de Pessoa, que assim torna viva a questão, que instaura a angústia enquanto abertura e evita o fechamento da novidade como fato banal. Com o desassossego, não esqueceremos.  


Veiga na BBC no final da década de 40.
José J. Veiga nasceu no dia 2 de fevereiro de 1915, em Corumbá de Goiás. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde estudou na Faculdade Nacional de Direito. Foi comentarista na BBC de Londres e trabalhou como jornalista d’O Globo e da Tribuna da Imprensa, entre outros veículos. Aos 44 anos, estreou na literatura com Os Cavalinhos de Platiplanto. Seus livros foram traduzidos para diversos países, entre eles Portugal, Espanha, Estados Unidos e Inglaterra, e pelo conjunto da obra ganhou o prêmio Machado de Assis, outorgado pela Academia Brasileira de Letras, além de três Jabutis. Faleceu no dia 19 de setembro de 1999.





*Saulo Dourado é escritor e professor. Mestre em Filosofia pela UFBA, é autor dos livros de contos "O mar e seus descontentes" (2016) e "O autor do leão" (2014), além do infanto-juvenil "Mailon, o cão late para o espelho", adotado em escolas de Salvador, Bahia, onde vive. Colabora com contos para o Jornal A Tarde desde 2010 e escreve em portais literários como Homo Literatus.

2 comentários:

  1. Vou reler os dois livros. Infelizmente, para o povo brasileiro, José J. Veiga continua muito atual.

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