segunda-feira, 16 de abril de 2018

O mirábolo: por um novo hemisfério


*Por Thiago Scarlata

Perguntei ao poeta Lucas Rolim sobre o que seria O mirábolo (Moinhos, 2017). Devolveu-me: "Eu criei essa palavra a partir de "mirabolante". O livro gira em torno da ideia do sonho como um canal de sabedoria: conhecimento do todo e do eu. As revelações que o subconsciente nos guarda. O mirábolo seria um ser ou um artefato que provê o sonho aos homens. Contudo, não dei uma forma física ao mirábolo. Cada leitor cria sua própria versão. Às vezes imagino um artefato sagrado, às vezes um ancião enclausurado em uma outra dimensão tecendo a teia dos sonhos, às vezes um instrumento que é utilizado pelo artesão onírico, mas isso sou eu. Cada leitor tem sua versão e é isso o que importa. Embora o livro todo possua uma ideia, os poemas são independentes".

Como escreveu Sigmund Freud (1856 - 1939) em seu "A interpretação dos sonhos", "O sonho é uma estrada real que conduz ao inconsciênte. É um ato psíquico tão importante quanto qualquer outro; sua força propulsora é, na totalidade dos casos, um desejo que busca realizar-se". Nesse sentido, Lucas nos brinda com um livro repleto de construções oníricas. Seus acabamentos são os de um refinado artífice que elegeu cuidadosamente as peças para um mosaico poético extra-dimensional.

O poeta é arrojado. Não fica no lugar-comum, como apontou muito bem o poeta Demétrios Galvão (que assina o prefácio): "O jovem poeta não se rende ao que boa parte de sua geração faz - crônicas sem criatividade do cotidiano ou testemunhos engraçados". Vejamos em "no pátio dos sonhos II" (pág. 22), um pouco desse universo original criado por Lucas Rolim:



teu nome geométrico acende minha caixa de ruídos
- lembro que há uma floresta com teu nome em Astrakan

meu corpo se converte em moléculas fractais & poeira
- mapeio teu rosto feito um talismã secreto


E também no instigante "visão sob a lua" (pág. 24):



foge
à tua casa de ar,

abandona os sons
que restam inabitáveis

e te achega ao desfiladeiro,
aos intertícios da solidão.

a lua
no alto de tua cabeça
cultiva um diadema luminoso.

a ramagem se conecta à tua raiz sagrada,
ao teu espírito de terra.

debruçado sobre o delírio,
teu corpo adormece

e cai.

os pés estão alheios ao pavimento
e desconhecem a dureza dos passos.

concentra-te no sonho.
trespassa o irreal.

esquece
o que não for
vidência.


Neste almanaque poético composto por Rolim, há magia e paixão. Delírio e fábula. Temos aqui, sobretudo, a criação de um Oriente, possuidor de uma beleza, cultura, ritmo, e lógica próprios. O artesanato marcante do poeta, por vezes me remeteu a uma pegada shakespeariana, com pitadas clássicas, quase épicas, ao mesmo tempo envergado para uma interessantíssima orientalidade. Em suma, como o próprio autor proclamou, o malabarismo fica por conta do leitor.

Destaco, então, o poema "dois amantes e a metamorfose II" (pág. 29):

frente a frente no seio das dunas
os amantes sabem que não há miragem
- que de carne e toque é feito o momento

para que a palavra do primeiro acenda
como fogo vivo na orelha do segundo

é preciso que se ergam defronte de si

mirando a esfinge que no outro habita
&volvendo ao que o sonho tornou real

desnudando o enigma & virando peixe
no mar que engole o deserto em sua
vertigem & mudez.


Por fim, a fluidez presente em O mirábolo se assemelha a de uma canção árabe, com escalas e tonalidades que insistem em transgredir à nossa (ocidental). Num "mundo que está viciado em sombras", Lucas Rolim fez um inventivo e muito competente livro, que provoca uma gama sensorial vasta, capaz de nos arrancar de uma "zona neutra", tão comum em leituras opacas ou fomatos replicantes, para uma ala fértil e inaugural.



Finalizo com "os olhares eram hostis" (pág. 55):


                                                   acompanhado de double music tape


os olhares eram hostis
mas nos aproximávamos das fronteiras
e ignorávamos o nevoeiro de sua prole.

nossa envergadura era mais ampla
e escondia a gestação de um segredo.

por muito tempo seguimos o camiho avesso
e o retorno nos transformou em forasteiros
onde antes éramos cria.

os olhares eram hostis,
a língua assassinou o amor dos jovens,
a violência do tempo fendia o sonho e a vida.

como poderia o homem salvar-se da ignorância?
em que alto monte buscaria o socorro?

esperava-se dureza dos corações
e a curta medida do luto,

mas nos aproximávamos das fronteiras
e ignorávamos o nevoeiro de sua prole.

nossa envergadura era mais ampla,
nossa luta era sagaz.





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Lucas Rolim é poeta, tradutor e editor independente. Como poeta, publicou os livrinhos artesanais "Os Cantos de Eleanor" (2017), "Terrário" (2017) e "O Caderno Surrealista de Ibán" (2018), através do seu selo editorial de publicações artesanais independentes, Kizumba Edições, e seu livro de estreia, “O Mirábolo”, pela Editora Moinhos, também em 2017. Enquanto tradutor, publicou o fanzine “Mr. Mojo Risin’” com traduções de poemas de Jim Morrison, que também foram publicadas no Jornal RelevO e no site da Escamandro. Tem poemas publicados em jornais, sites e revistas do Brasil e de Portugal. Participa desde 2015 do projeto Roda de Poesia Tensão, Tesão & Criação, que promove saraus e exposições pelo centro histórico da cidade. É membro do Coletivo Acrobata, que publica a revista de arte contemporânea Acrobata, já em seu sétimo número. Nasceu em Teresina, onde habita e é habitado.


*Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Enfermaria 6, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Avenida Sul, Incomunidade, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).


2 comentários:

  1. Valeu, Thiago! É uma felicidade ler suas palavras e saber que visões te atravessaram na leitura d'O Mirábolo. Bom saber também que meu livro tem encontrado seus leitores e semeado espantos. A alegria de um poeta são as pontes afetivas que brotam pelo caminho. Salve salve e sigamos!

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    1. Lucas, eu que te agradeço pelo privilégio de conhecer tua belíssima obra. Forte abraço!

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